26 janeiro 2017

s. kierkegaard / que é um poeta?



Que é um poeta? Um homem infeliz que esconde profundas agonias no seu coração, mas cujos lábios estão conformados de tal modo que, quando o suspiro e o grito por eles fluem, soam como uma bela música. Passa-se com ele como com os infelizes que eram demoradamente torturados com fogo brando no touro de Fálaris: os seus gritos não podiam chegar aos ouvidos do tirano para o aterrorizar – a ele soavam-lhe como uma doce música. E os homens aglomeram-se em torno do poeta e dizem-lhe: «depressa, canta outra vez», [o que] quer dizer, «que novos sofrimentos martirizem a tua alma e que os lábios continuem a estar conformados como antes, pois o grito apenas nos angustiaria, mas a música é encantadora». E vêm os autores de recensões, que dizem: «está correcto, assim deve ser, de acordo com as regras da estética». Ora, isso percebe-se: também um autor de recensões se parece com um poeta como duas gotas de água, só não tem agonias no coração, nem música nos lábios. Eis por que prefiro ser guardador de porcos em Amagerbro e ser entendido pelos porcos a ser poeta e mal entendido pelos homens.




s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011




25 janeiro 2017

egito gonçalves / a aventura é ficar…




Calafetado contra os sonhos, fico
Contigo, prisioneiro dos liames
Que te cercam e cercam o teu rosto,
A tua carne rasgada nos arames.

Extinguiu-se o apelo da partida…
As quilhas já não sofrem a espuma.
Fico contigo na luta pelo dia
No endurecido leito de caruma.

Tu estás sentada sobre a terra…
Pelas searas corre um vento rude.
Teu corpo é uma espiga amadurecida
Pela água aprisionada do açude.

Corsários acamaradam no mar largo…
Mas do teu caule fino, nasce e ondeia
À minha volta, uma canção serena
Que me prende docemente à sua teia.



egito gonçalves
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




24 janeiro 2017

ruy cinatti / momento num café



As mãos lindas que vi deixam-me absorto:
compridos dedos, polegares de espátula,
um dedilhar de flores em jardins ociosos,
só comparável a conversa amena
de duas mulheres simples debruçadas
sobre o tampo liso de uma mesa.

A riqueza da vida reside nisto:
um leve toque no ombro do próximo…
uma cortina de chuva vedando a verdade
olhos indiferentes, indiscretos…
e um ar de encanto, um fácil soluço
ouvido longe, como que em segredo.

9/11/76


ruy cinatti
56 poemas
de antiguidades burlesco-sentimentais
relógio d´agua
1981




23 janeiro 2017

álvaro feijó / os dois sonetos de amor da hora triste



1
Quando eu morrer – e hei-de morrer primeiro
do que tu – não deixes fechar-me os olhos
meu Amor. Continua a espelhar-te nos meus olhos
e ver-te-ás de corpo inteiro


como quando sorrias no meu colo.
E, ao veres que tenho toda a tua imagem
dentro de mim, se, então, tiveres coragem
fecha-me os olhos com um beijo.
                                                          Eu, Marco Pólo,


farei a nebulosa travessia
e o rastro da minha barca
segui-lo-ás em pensamento. Abarca


nele o mar inteiro, o porto, a ria…
E, se me vires chegar ao cais dos céus,
ver-me-ás, debruçado sobre as ondas, para dizer-te adeus.



2
Não um adeus distante
ou um adeus de quem não torna cá,
nem espera tornar. Um adeus de até já,
como a alguém que se espera a cada instante.


Que eu voltarei. Eu sei que hei-de voltar
de novo para ti, no mesmo barco
sem remos e sem velas, pelo charco
azul do céu, cansado de lá estar.


E viverei em ti como um eflúvio, uma recordação.
E não quero que chores para fora,
Amor, que tu bem sabes que quem chora


assim, mente. E se quiseres partir e o coração
to peça, diz-mo. A travessia é longa… Não atino
talvez na rota. Que nos importa, aos dois, ir sem destino.


álvaro feijó
os poemas de álvaro feijó
portugália
1961



22 janeiro 2017

alberto caeiro / talvez quem vê bem não sirva para sentir



Talvez quem vê bem não sirva para sentir
E não agrada por estar muito antes das maneiras.
É preciso ter modos para todas as coisas,
E cada coisa tem o seu modo, e o amor também.
Quem tem o modo de ver os campos pelas ervas
Não deve ter a cegueira que faz fazer sentir.
Amei, e não fui amado, o que só vi no fim,
Porque não se é amado como se nasce mas como acontece.
Ela continua tão bonita de cabelo e boca como dantes,
E eu continuo como era dantes, sozinho no campo.
Como se tivesse estado de cabeça baixa,
Penso isto, e fico de cabeça alta
E o dourado sol seca a vontade de lágrimas que não posso deixar de ter.
Como o campo é vasto e o amor interior...!
Olho, e esqueço, como seca onde foi água e nas árvores desfolha.
Eu não sei falar porque estou a sentir.
Estou a escutar a minha voz como se fosse de outra pessoa,
E a minha voz fala dela como se ela é que falasse.
Tem o cabelo de um louro amarelo de trigo ao sol claro,
E a boca quando fala diz coisas que não só as palavras.
Sorri, e os dentes são limpos como pedras do rio.

8-11-1929


alberto caeiro
o pastor amoroso
poemas completos de alberto caeiro
fernando pessoa
presença
1994



21 janeiro 2017

vasko popa / canção da verdade jovem



A verdade cantava no escuro
No cimo da tília sobre o coração

O sol há-de amadurecer dizia
No cimo da tília sobre o coração
Se os olhos o iluminarem

Troçámos da canção
Agarrámos prendemos a verdade
Cortámos-lhe a cabeça debaixo da tília

Os olhos estavam noutro sítio
Ocupados com outra obscuridade
E nada viram


vasko popa
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de eugénio de andrade
assírio & alvim
2001





20 janeiro 2017

thom gunn / a visão da morte de um motociclista perturbado



Em pleno campo,
Avanço por entre muralhas de chuva
Que me fustiga o rosto e me ensopa os joelhos,
Mas sou o homem que quero ser.

A charneca firme acaba e surge o pântano.
Estamos agora em guerra: quem ganhar
Não conseguirá submeter a minha vontade humana
À natureza embora seja de lá que ela veio.
As rodas afundam-se; o ruído nítido torna-se confuso:
Porém, curvado sobre o volante,
Lanço esta minha máquina que escolhi
Contra a possibilidade de ser um corpo ainda.
A roda da frente penetra com firmeza entre
Dois arbustos de um verde esmaltado e insensível
 – Gigantesco equilíbrio no contorno
De cada folha lisa. Redemoinhos negros sobem
Em redor do meu pé que, comprimindo com força,
Acelera o sono que espera.

Costumava viver no ruído e desconhecia
A existência da realidade calma ou rastejante,
Mas agora as águas paradas, coladas ao meu rosto
Sob o peso da morte, retiram-me o alento;
Embora angustiado julgo que posso
Mover-me através da matéria. Encontro o meu caminho,
Onde a morte e a vida se conjugam,
Através da negra terra que não é minha,
Povoada de fragmentos, embotada, informe,
Enquanto pelos meus ouvidos, enxameados de ruído,
As extremidades brancas das plantas do pântano,
Lentas, sem paciência, espalham-se à vontade
Invulneráveis e flexíveis, e se estendem
Numa posse serena em direcção ao seu fim.

Embora os cogumelos quando eu apodrecer
Me recubram os ossos lívidos com lívidos nós
Até enfunarem os meus fatos, eles fingem
Que este espantalho é de novo um homem,
E é como servos que persistem
Ou, sem qualquer vontade, se contorcem;
E o hábito, pelos homens laboriosamente
Adquirido, não os deixa cansados.
Essa vegetação converte célula após célula
A minha única riqueza em lixo:
Tudo o que obtêm, obtêm-no por acaso.

E multiplicam-se na ignorância.


thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993



19 janeiro 2017

sara f. costa / palco invisível



trago comigo as gigantes perguntas
que ardem no peso da fala.
de ti espero a noite corrompida,
a solidão contínua
que vai até aos prédios e retorna
mas acredito na tua companhia
como acredito na vaidade do sol
a vida ruge-me nos ombros
enquanto a vergonha respira
entre segredos.
onde estás e por onde andaste
são grutas miseráveis
que se erguem pela lógica
porque a tua presença não faz sentido
somos atores de um palco invisível
não te percas no retorno
porque a verdade é que nunca cá vieste.



sara f. costa
o movimento impróprio do mundo
âncora editora
2016


18 janeiro 2017

ángél gonzález / epílogo



Arrependo-me de tanta queixa inútil,
                                                              de tanta
lamentação impertinente.
São as regras do jogo inapeláveis
e justificam toda, qualquer perda.
Agora
só o inesperado ou o impossível
poderia fazer com que eu chorasse

uma ressurreição, nenhuma morte.



ángél gonzález
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985





17 janeiro 2017

jorge luís borges / a lua



                           Para Maria Kodama



Há tanta solidão naquele ouro.
Lua destas noites é igual
À do primeiro Adão. Os longos séculos
Da humana vigília cumularam-na
E antigo pranto. Olha-a. É o teu espelho.


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a moeda de ferro  (1976)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




16 janeiro 2017

vasco gato / um no outro



imensamente nos deitamos um no outro
e não mais nascemos para a mão escura
que tapa o sol e afoga a luz

estamos como se tudo estivesse connosco
e connosco estivessem os nomes que primeiro se deram
flor   rio   azul   estrela   terra



vasco gato
um mover de mão
assírio & alvim
2000




15 janeiro 2017

álvaro de campos / episódios



.... O tédio dos [radidiotas?] e dos [aerochatos?]
De todo o conseguimento quantitativo desta vida sem qualidade,
A náusea de ser contemporâneo de mim mesmo
E a ânsia de novo novo, de certo verdadeiro,
De fonte, de começo, de origem.
A pedra no anel errado no teu dedo
Como fulgura na minha memória,
Ó pobre esfinge da aristocracia burguesa conversada em viagem!
Que vagos amores escondias na tua elegância verdadeira
Tão falsos, pobre iludida lúcida,
Encontrada a bordo desse navio, como de todos os navios!
Tomavas cocaína por superioridade ensinada,
Rias dos velhos maçadores menos maçadores que tu,
Pobre criança órfã de mais que pai e mãe,
Pobre-diabo meio-flapper, tão [transtransviada?]!
E eu, o moderno que o não sou, eu que consinto
Nos arredores da minha sensibilidade as tendas dos ciganos,
De toda a modernidade papel-moeda;
Eu, incongruente e sem esperanças,
Passageiro como tu no navio, mas mais passageiro que tu,
Porque onde tu és certa eu sou incerto,
Onde tu sabes o que és eu não sei o que sou e sei que não sabes o que és,
E entre as danças tocadas ad nauseam pela banda de bordo
Debruço-me sobre o mar nocturno e tenho saudades de mim.
Que fiz eu da vida?
Que fiz eu do que queria fazer da vida?
Que fiz do que podia ter feito da vida?
Serei eu como tu, ó viajante do Anel Anafrodisíaco?
Olho-te sem te distinguir da matéria amorfa das coisas
E rio no fundo do meu pensamento oceânico e vazio.
No quintal da minha casa provinciana e pequena —
Casa como a que têm milhões não como eu no mundo —
Deve haver paz a esta hora, sem mim.
Mas em mim é que nunca haverá paz,
Nem com que se faça a paz,
Nem com que se imagine a paz...
Porque então sorrio eu de ti, viajante superfina?
Ó pobre água-de-Colónia da melhor qualidade,
Ó perfume moderno do melhor gosto, em frasco de feitio,
Meu pobre amor que não amo caricatural e bonita!
Que texto para um sermão o que não és!
Que poemas não faria um poeta verdadeiro sem pensar em ti!
Mas a banda de bordo estruge e acaba...
E o ritmo do mar homérico trepa por cima do meu cérebro —
Do velho mar homérico, ó selvagem deste cérebro grego,
Com penas na cabeça da alma,
Com argolas no nariz da sensualidade,
E com consciência de meio-manequim de ter aspecto no mundo.
Mas o facto é que a banda de bordo cessa,
E eu verifico
Que pensei em ti enquanto durou a banda de bordo.
No fundo somos todos
Românticos,
Vergonhosamente românticos
E o mar continua, agitado e calmo,
Servo sempre da atenção severa da lua,
Como, aliás, o sorriso com que me interrogo
E olho para o céu sem metafísica e sem ti... Dor de corno...
s.d.


álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993


14 janeiro 2017

frank o´ hara / cambridge



Ainda chove e o fruto amarelo-verde do algodão
no peitoril parece tonto dando no inverno troncos
com apenas três folhas pardacentas. A chapa de aquecimento funciona,
é o único calor na terra, e café instantâneo. Eu
visto as minhas calças de veludo quentes, uma camisola grossa castanha
e envolvo-me no meu velho roupão castanho. Como Pasternak
em Marburg (dizem que a Itália e a França são mais frias,
mas estou certo que a Alemanha é tão fria como isto) e,
faltando-me a inspiração do Mestre, posso morrer gelado
antes de conseguir sair para a chuva branca. Poderia ter deixado
a janela fechada durante a noite? Mas é de onde a saúde
vem! A sua respiração desde os Urais, incendiando-me
como um cigarro esquecido. Arde! isto não é negligível,
sendo poético, não sendo frágil, pois que é patrocinado pelo
maior poeta Russo vivo com um custo incalculável.
Do outro lado da rua há uma casa em construção,
abandonada à chuva. Secretamente, irei trabalhar nela.


frank o'hara
vinte e cinco poemas à hora do almoço
trad. josé alberto de oliveira
assírio & alvim
1995