1
Ditosos os países que se debatem com suas sombras
e cujos habitantes olham, movem-se, pronunciam-se dignamente
e te recordam a outros e a eles mesmos
quando andavas a perguntar por teu próprio país
e não tinhas pátria.
O ar enche-se de olhares e do voo dos pássaros
quando amanhece pelas esquinas
de Lisboa, e as torres espreguiçam-se
enquanto seus ninhos se libertam de plumas
e os sinos e os ruídos dos motores
fazem mover braços, rodas, êmbolos
e corações iludidos pelo sonho.
Uma janela abre-se em Alfama. E depois outra e outra,
e a respiração dos edifícios
fede e ao mesmo tempo perfume os lençóis enormes do ar
que um milhão de mãos sacode
sobre as ruas pombalinas, visitadas pelos pardais
– e pelas pombas, por que não:
que culpa têm dos nomes
e da vida traçada a compasso? –,
e na Praça da Tal brilha o rocio
a baptizá-la novamente,
e a Avenida da Liberdade não enrubesce, quando com os olhos
de suas árvores e seus cafés vazios lê outra vez seu nome,
entre voos alegres e assustados das aves madrugadoras.
Um amigo está à tua espera
para levar-te ao Castelo de São Jorge
e falar-te de poetas espanhóis e rimas portuguesas,
e tu fechas os olhos – já no alto do castelo –
para lembrar o cair de tantas tardes
que sabiam ao café amargo do Chiado e ao azeite rançoso de um nome
e aos versos impublicáveis que te liam às escondidas.
2
A liberdade não é um cordeiro, mas um leão que pode matar-te,
se é que deveras amas a liberdade.
Estou a vê-lo desde as nobres ruínas
a cujos pés crescem as favas e árvores que me irritam porque não sei o
seu nome
mas me perfumam com recordações que já esqueci;
estou a vê-lo, nem desmelenado, meter as garras no mar
– pois aqui chamam assim ao rio –,
onde os vapores vão buscar o vapor
e, é inútil negá-lo, a liberdade tem um alto preço
porque é traidora, cruel e extraordinariamente preguiçosa
e o seu verdadeiro sonho é converter-se em ovelha
mesmo com o risco de ser devorada.
Meteu uma pata no mar e retira-a entre arrepios,
vai rugir e sai a cantar uma canção que não entendo
porque me fazem chorar os pássaros cujos nomes conheço.
O meu amigo está a falar-me de Madrid e da poesia
e da lembrança de outro amigo
que me estende a mão sobre o mar – com que delicada frequência! –
e me leva onde a recebo
enquanto oiço o mar das Antilhas rugir por seus leões.
Mas agora estou aqui estando num estava triste
e estou a esquecer tudo
porque me Lisboa, leonada, começou a chover
uma luz que me surpreende sempre nu,
e o meu amigo arremessou a capa que não trazia
sobre as balaustradas,
e vai planando, assustando
o leão, que oxalá nos devore.
ángel crespo
antologia da poesia espanhola
contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985