19 julho 2016

rui miguel saramago / autoretrato – II


[…]

Eu já via as cataratas do Niagara do lado americano.

Eu já via as cataratas do Niagara do lado canadiano.

Eu já bebi um irish cofee no café onde foi inventado o irish cofee.

Eu já assisti a um concerto do Dizzy Gillespie.

Eu já me emocionei por estar no alto do Arc de la Défense só cm o céu
A toda a volta de mim.

[…]

Eu já dei aulas de inglês.

Eu já medi a minha cintura.

Eu já vi a Abbey Lincoln ao vivo por duas vezes.

Eu já assisti a uma sessão de demonstração ao vivo de Sado-masoquismo.

Eu já estive dentro de um reactor nuclear.

[…]

Eu já acendi velas.

Eu já consultei mapas.

Eu já comprei as gravações completas da Carmen McRae para a Decca.

Eu já aprendi a tirar raízes quadradas.

Eu já comi um Big Mac.

[…]

Eu já estive na Praça do Comércio.

Eu já estive na Praça do Comércio quando estava a ser conquistada
Pelos diabos.

Eu já ouvi os discos todos do Prince.

Eu já aplaudi a Dana Bryant.

Eu já comprei um casaco do Oscar de La Renta.

[…]



rui miguel saramago
poezz
almedina
2004



18 julho 2016

kiki dimoulá / quadro biográfico



A casa
fita o caminho público
e o mar
com a lógica de quatro janelas,
rindo-se estereotipadamente
com uma ampla varanda
cor-de-laranja.

Nessa varanda
nesse sorriso
às tardes, a minha mãe
expõe o rosto
ilegível.

O tempo o compôs
sem impulsos
noite após noite
numa língua que escorre dor,
enchendo
páginas de usura.
E nem sequer o erro dum riso.

Senta-se
na pontinha da cadeira
para não pesar na tarde
com todo o peso do seu coração adoentado,
apenas para existir
parada no meio da vida
por uma suspensão do destino,
apenas para poder aguentar agora
o espasmo do seu espanto:

«Existem mares
e barcos nervosos
que empurram soluções
para aquilo que não tem obstáculos?
E ventos que desenraízam aquilo que estagna?
E aquilo que é compreensível onde bebe cores
a tarde alcoólica,
existe?» Não sabe.
Não o soube a sua vida.

Agora
ousa um movimento estranho:
lança o corpo um pouco em frente,
torna a encostá-lo para trás,
dá fortes remadas da memória,
vidro vidro as suas lágrimas.

Pouco a pouco
tarde, rosto e varanda
são mimados pelo crepúsculo.
A sua forma enlouquece.
Fecham-se num espaço tumular
para não voltarem a entrar-nos no olhar.
Anoitece.



kiki dimoulá
inimigo rumor 14
trad. manuel resende
livros cotovia
2003




17 julho 2016

fernando gandra / só hoje te escrevo este vestido



Só hoje te escrevo este vestido
de palavras. Desculpa.
Oxalá que ao recebê-lo os pés
inchados das tuas ilusões inamovíveis
sosseguem junto à fonte.
A mãe, aqui ao lado, é uma sombra
do que pensas: repousa entre o frio
dos joelhos. A tua boina em ponto cruz
está pronta. O forno é bom e sem
enredo: sempre o mesmo.
A taça muito magra do silêncio
entra (ainda) pela janela.
Na varanda as zinias continuam razoáveis.

Pelo corrimão do tempo desce o gelo.
A tua ausência é uma casa muito espaçosa.
Responde-me na volta do sangue.

Beijos.


fernando gandra
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987




16 julho 2016

antónio ramos rosa / o grande nó obscuro de existência



O grande nó obscuro de existência
será dilacerado
pelo derradeiro gume do destino
e não iluminado.
Tudo o que existe vacila lentamente
em torno da indiferença
da luz à sombra dos ciprestes.


antónio ramos rosa
horizonte a ocidente
relâmpago
revista de  poesia nº. 15
outubro de 2004



15 julho 2016

ferreira gullar / a estrela



Gatinho, meu amigo
fazes ideia do que seja uma estrela?

Dizem que todo este nosso imenso planeta
        coberto de oceanos e montanhas
        é menos que um grão de poeira
        se comparado a uma delas

Estrelas são explosões nucleares em cadeia
numa sucessão que dura bilhões de anos

O mesmo que a eternidade

Não obstante, Gatinho, confesso
que pouco me importa
                     quanto dura uma estrela

Importa-me quanto duras tu,
               querido amigo,
               e esses teus olhos azul-safira
               com que me fitas


ferreira gullar
relâmpago
revista de  poesia nº. 14
abril de 2004



14 julho 2016

ruy cinatti / fezada



Eu vi a Cristo num país de assombro
onde rapazes proclamam alto Teu nome,
boca alta, sem nenhum atavio,
que os leve a jogar ao esconde-esconde.
Eu vi e fiquei pávido, pasmado,
como ancorado num cais um navio novo
e dei comigo a cantar – Louvo-te Senhor,
neste meu país, Portugal de assombro,
com os três rapazes que Daniel cantou,
afagando ele a boca aos leões.
E agora procuro-os, penso neles,
a coisa mais natural do mundo
e desafio a que me procurem onde
Jesus andou com as criancinhas, os pobres
e os privados do seu Nome.

8/7/76


ruy cinatti
56 poemas
de os castelos interiores
relógio d´agua
1981




13 julho 2016

martin earl / no instituto


Peter nadava por entre as palavras, arrastando o corpo
com os músculos da boca. Nasceste
numa bicicleta a caminho de uma cimenteira.
À tua mesa o pão ia de mão em mão, resmungando.
Os olhos deles pareciam codornizes dispersas
debaixo da atalaia. As vozes eram o arfar reverso
dos fios, quando os eléctricos tocavam o passeio. Misha
escutava intensamente enquanto o assunto mudava para o-de-
                                                                                     -coração-despedaçado,
uma marca verde no papel diante dele, como Bach.
Acendeste o fogão de louça amarela com carvão
ordinário, grácil como uma frase. Pontus mentiu sobre Belman,
alterou os factos da biografia, para se
distanciar, como o sossego do pátio por detrás
do instituto. Por detrás de certas palavras os homens moveram-se
como ficheiros por detrás de divisórias, já não
pensando em si como almas dentro de corpos, mas
como fundas gavetas de metal sobre calhas. Peter
voltou a Rilke, as oitavas de uma única frase,
a mão com a batuta tecedeira, rolando sobre si própria
no ar, que parecia brilhar de calor cansado.
O poema acabou, segundo Pontus, entre
duas cidades, com alguém que perde a capacidade
de agir, entre uma fieira de prédios, de altos arcos
abatidos, neve no ar, mas sem nevar.



martin earl
poesia do mundo
tradução de maria irene ramalho
edições afrontamento
1995


12 julho 2016

herberto helder / o poema


IV

Nesta laranja encontro aquele repouso frio
e intenso que conheço
como um dom impossuído.
Do ouro terá a luz interior, terá
a graça desconhecida daquilo que mal pousa
na mesa, no mundo.
— Passar nocturno da água que o sangue
mudamente imita. Ilha cercada
de todos os lados
por uma inumerável, inominável
sede humana.
Esta laranja lembra-me uma alta solidão
que nem pode ser nossa, de tão pura. Lembra-me
ainda
uma urna fechada como gelo,
onde o ardor da criação guardado devagar se inspirasse
numa fonte oculta. Onde
os veios amarelos, batidos ao longo do silêncio
pelas pequenas espadas dos raios,
se movessem,
quem sabe até que inapercebido, louco,
tão vivo coração de poema. Laranja
com facas e garfos em volta, ainda recebendo
gota a gota a sua árvore — laranjeira de espírito
desconhecido, irmão
de chuva, irmão de uma noite vagarosamente
purificada. Laranja
encontrada entre dois momentos inimigos, ao meio
como um grito
que bate em cheio entre os ossos e as veias
fulminadas. Doada à poesia que esperava,
entre a rigorosa visão e a experiência
desmedida da carne.
Se a mão se atreve pela confluída laranja,
sobe ao ombro o puro sentimento
de ligação ao mundo. São as manhãs impossíveis
da terra, o subjacente e livre fogo
da noite, as águas a urdir
o peixe que vai nadando até se consumar em lento
lírio.
Cerraria sobre esta laranja que aparta a inocência
da treva
daquilo que o espírito calou como luz indivisa —
sobre ela cerraria a boca,
como se a sepultara num silêncio plantado
de muitas presenças fortes
como sal.
— Talvez todo o enigma materno me fosse dado
de inspiração
através da língua, por confusos órgãos, a todo um corpo
tenso e apto aos segredos e às
delicadas subtilezas da terra.
Talvez esta laranja me dotasse de uma atenção
vertiginosa,
e tudo fosse entrando como sabedoria pelo corpo evocativo,
e cada gesto fosse depois
a íntima unidade deste Poema com as coisas.
                                                                           Laranja
apaixonadamente.



herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



11 julho 2016

luis antonio de villena / uma arte de vida



Viver sem fazer nada. Tratar do que não interessa,
tua gravata à tarde, uma carta que escreves
a um amigo, a opinião sobre um quadro, que dirás
conversando, mas que não terás o mau gosto
de pretender escrita. Beber, que é um prazer efémero.
Amar o sol e desejar verões, e o inverno
lentíssimo que convida à nostalgia (de onde
essa nostalgia?). sair todas as noites, compor
o foulard com carinho esmerado em frente ao espelho,
embriagar-te em beleza quanto possas, perseguir
e ansiar corpos jovens, planícies prodigiosas,
todo o mundo que cabe em tanta euritmia.
Deixar de manhãzinha tão fantásticos leitos,
cheirar as mãos enquanto buscas táxi, gozando
na memória, porque falam de pêlos macios e delícias
e ocultos lugares e perfumes sem nome,
suaves como os corpos. Então que frio amanhecer,
como é triste, que belo! Os lençóis vão acolher-te
depois, um tanto ermos, esperarás o sono.
Do dia que virá não sabes nada. (Não consultas
oráculos.) Queimar-te-ão tédios, emoções,
tertúlias e belezas, as rosas de um banquete
sumptuoso, e as velhas vielas, aí onde se sente
tudo, no Verão, como um aroma intenso.
Viver sem fazer nada. Tratar do que não interessa.
Se tudo corre mal, se enfim tudo é cruel,
como Verlaine, saber ser o rei de um palácio de inverno.



luis antonio de villena
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985



10 julho 2016

vasco miranda / apontamento



Se a morte não fosse mais imperiosa que o silêncio
E me não restasse de vida um sopro de resgate,
Um último sopro a abrir-se sempre à flor de cada tragédia;
Se um puro cravo me não florisse nos lábios
E me não entornasse nas mãos o aroma contagioso
Do sangue das mãos sacrificadas à alegria de viver;
Se uma estranha luz me não prendesse à ara
Do sacrifício comum e me não queimasse
Os membros retalhados nas andadas dos caminhos;
Então reduziria minha fome de teatro
A minha torturante sede de teatro
À tristeza de não dizer as palavras imprevistas.
Assim,    Irmãos,    improvisarei a cada momento o fim do
                                                                                       mundo,
A cada momento apressarei a tragédia universal,
E no meio da fúria dos elementos e do enxofre da hora final
Tomarei lugar à mesa do banquete comum, sereno e impávido,
Como conviva que não recusa fartar os olhos
Sobre o prato delicioso em que o Verbo é servido numa
      última e infinita dimensão.


vasco miranda
a vida suspensa
1953



09 julho 2016

julius lenko / na biblioteca da escola depois da guerra



Ao entrar sinto a cara a arder:
montes de livros, migalhas de cultura e de beleza
juncam o chão como espigas calcadas
após a passagem de um brutal furacão.

A poeira da guerra veio pousar nos lábios
dos homens de génio. Vozes incorruptíveis
a troar por cima do espaço e do tempo.
Mas incapazes de esmagar as botas do fantasma.

Apanho o livro pouco espesso furado
por uma bala. A chaga é horrível.
Todas as folhas estão manchadas de sangue.

Abro. Leio. Não posso reter as lágrimas
quando o título vem dançar diante dos meus olhos:
«Os sonetos sangrentos de Hviezdoslav.»


julius lenko
tradução de ernesto sampaio
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001



08 julho 2016

tiago fabris rendelli / desmembramento



"porque só a dor / é capaz de nos revelar / a grande mentira / que há por detrás / de todas as coisas".

                           (gil t. sousa, passagem do poema "incerto")


I
não sei medir a vida,
minha balança sempre
caí para o absurdo.
II
a cidade, refletida pelos raios,
adormece no horizonte.
são fotografias tenebrosas
do grande diluvio que dorme em cada casa,
meu coração se afoga na tempestade.
III
abri a porta do peito,
deixei a guerra passar
sobrou só estilhaço,
caquinhos incoláveis
do espelho que fui.
sigo agora sem face,
posto que defunto não tem cara,
serei igual aos meus irmãos de azedume
e virarei capim com a alquimia do tempo.
IV
respiro os velhos mortos
apodreço pelo seus excessos de dias.
estou aferrado na cruz,
girando no mesmo círculo,
contorcido pelas dores
de todas as agulhas enfiadas nas unhas
para tampar os excessos de solidão
e que só terminam de arder
depois de brotadas em sangue.
V
o casal se beija.
haverá amor?.
terá sido um encontro celeste,
alguma movimento lento e milenar
que culminará em mil galáxias
explodindo sobre a cama?
ou terá sido alguma invenção
humana sobre o acaso?
o casal desunifica os lábios.
haverá amor?
VI
o inferno queimará o ar,
não sobrará nada,
serei eu o louco a professar misérias,
a abrir portas no céu,
a criar a melodia das trombetas.
sete lâmpadas acenderão na língua
e toda a penumbra será descoberta.
quem for digno romperá o selo de minha boca:
"Tarde demais!", direi,
pois já serei um oceano de vidro a enganar os pássaros.



tiago fabris rendelli



07 julho 2016

victor prado / por favor


                         


                     para Tiago Rendelli


O tombo que carrego é um menino,
e não sei o que fazer.
Ele nunca disse uma palavra sequer,
nem quando avistamos a borboleta a
comer o asfalto da R. Padre Anchieta
nem quando deu loucura na vizinha
ou quando seus olhos esbugalharam
e se transformaram em duas jabuticabas
no meio da celebração do primeiro aniversário
da morte do Rio Sagrado
ou mesmo quando vimos e ouvimos o
choro recém-chegado das pulgas no
Mediterrâneo.

Por favor,
não sei o que fazer.

Esta casca tem gosto de serragem
e meus dentes preferem celulose
ou terra. Um doutor, conhecido
da família, implantou quatro cupins
nos lugares dos dentes do juízo.
Como muito melhor agora, mas
dormir é terrível. Certa noite
sonhei com um boitatá gigante
em meu encalço. Quando acordei
me veio o choro, o pesadelo
havia começado.

Peço, por favor,
que só me diga o nome daquele
tarja preta que passa sempre
durante os comerciais entre os
desenhos infantis. Esse menino
que é meu tombo nunca falou
e nem precisa.



victor prado
bastardo
ed. urutau
2016