02 maio 2016

charles bukowski / rapariga nas escadas rolantes



quando vou a entrar nas escadas rolantes
um jovem rapaz e uma adorável rapariga
posicionam-se à minha frente.
o vestido dela é bem justo ao corpo e
ao colocar um pé à frente e outro atrás, sobre as escadas
o traseiro dela assume os seus contornos
o rapaz olha para todo o lado, claramente inquieto.

ele olha para mim.
eu olho para outro lado qualquer.

não, rapaz, eu não estou a olhar
não estou a olhar para o traseiro da tua miúda.
não te preocupes, eu respeito-a a ela e respeito-te a ti.
na verdade, eu respeito tudo; as flores que crescem,
as jovens mulheres, as crianças, todos os animais,
o nosso precioso e complicado universo, tudo e todos.

o jovem sossega e eu fico contente por ele.
sei o seu problema: a miúda tem uma mãe e um pai e talvez um irmão
e sem dúvida uns quantos familiares e ela gosta de
dançar e flirtar e de ir ao cinema e por vezes ela mastiga
pastilha elástica e fala ao mesmo tempo e ela diverte-se com
programas de televisão completamente parvos e ela pensa
que é uma actriz e ela nem sempre está nos seus melhores dias
e ela tem um temperamento terrível e às vezes ela quase
fica doida e ela fala horas e horas ao telefone e ela quer ir
para a europa no verão e ela quer ter um mercedes
e ela está apaixonada pelo Mel Gibson.
e a mãe dela é uma cabra de uma bêbada e o pai
secretamente odeia pretos vermelhos e amarelos
e ela ressona e ela é muitas vezes fria na cama e ela
tem um guru, um tipo que conheceu cristo no deserto em 1998
e ela quer fazer skydive e ela está desempregada e ela
fica com dores de cabeça sempre que ingere açúcar ou queijo.

no cimo das escadas rolantes, vejo o rapaz a pôr
a sua protectora mão na anca dela
pensando que é um felizardo
pensando que é um "macho"
pensando que mais ninguém no mundo tem aquilo que ele tem.
e ele está certo, terrivelmente terrivelmente certo,
com o braço em volta daquele emplastro morno
de intestinos
bexiga,
rins,
pulmões,
sal,
enxofre,
dióxido de carbono
e
catarro.

lotsa
luck



charles bukowski
tradução de júlio mota



01 maio 2016

sophia de mello breyner andresen / primavera



Primavera que Maio viu passar
Num bosque de bailados e segredos
Embalando no anseio dos teus dedos
Aquela misteriosa maravilha
Que à transparência das paisagens brilha.


sophia de mello breyner andresen
obra poética I
poesia I
caminho
1999



30 abril 2016

josep maria llompart / caminho da fonte



            homenagem a Pero Meogo



Sedentos veados
pelo pinheiral,
no bebedouro abriam-se
os montanhosos cumes.
Veados que bebiam
com focinhos trémulos.
A amiga chegava
buscando o amado:
pérolas orvalhavam
faces de coral.
Veados afastavam-se
no entardecer suave,
a água sussurrava
na sua solidão.



josep maria llompart
(palma de mallorca, 1925)
quinze poetas catalães
trad. egito gonçalves
ed. limiar, porto
1994



29 abril 2016

antónio ramos rosa / a paixão do ar



Olhar sem caminho em cheio
a tranquila onda muscular
paralela à mão aberta e livre

Uma escrita a nascer dos alvos flancos
a paixão do ar como uma chama

Paixão que une a terra cheia ao mar
o olhar respira em todo o corpo igual
o corpo eleva-se sobre a montanha fácil

O fogo flexível.


antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985



28 abril 2016

eugénio de andrade / matinal



Que seja fogo e suba ao cume
das águas seminais e duras,
e cante, invada, inunde
 – juventude, juventude!



eugénio de andrade
poemas
edit. inova
1971



27 abril 2016

luiza neto jorge / sítio lido



          I

          Um livro crepita
          um gémeo pendura-se
          no seu fogo

          (aparato lírico do fogo
          queimando o labirinto)


II

Escorregam as linhas descendentes
de um poeta.

E as chuvas caminham noutra direcção
para uma página menos escrita.


III

Compare-se o que se diz
com o silêncio que circunda a boca
de um ser desconhecido.

Flecha primeira a chegar
aos confins da terra.

Um dispositivo de silêncio
nos pontos cardiais
desta página
instaura a maravilha
por alguns séculos


IV

Estremeço
No coração.
As letras vêm de lá
e da mão.

Padeço:
o eco — perco-o —
sai da garganta
e da distância.

Palavra é o que lembo
ou o que meço?

          
V

Este é o tempo todo que me falta
e nem é muito nem pouco.

De mim direi o que deixarem
as falas que flutuam entre mim.

Palavras não se repetem
nem o verso sai do sítio em si

Repousa muito aí, até esquecer.

A morada é nesta confluência
do que digo e aquilo que farei

depois e antes de não saber
falar


luiza  neto jorge
os sítios sitiados
poesia
assírio & alvim
1993



26 abril 2016

alexandre o'neill / canção



Que saia a última estrela
da avareza da noite
e a esperança venha arder
venha arder em nosso peito

E saiam também os rios
da paciência da terra
É no mar que a aventura
tem as margens que merece

E saiam todos os sóis
que apodreceram no céu
dos que não quiseram ver
– mas que saiam de joelhos

E das mãos que saiam gestos
de pura transformação
Entre o real e o sonho
seremos nós a vertigem



alexandre o´neill
tempo de fantasmas 1951
poesias completas
assírio&alvim
2000




25 abril 2016

herberto helder / lugar lugares

Era uma vez um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno a ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. À parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo - diziam. E depois amavam-se depressa, e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite. Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da sua humanidade, e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza. E então a gente ama isto, porque a gente é humana, e amar é bom, e compreender, claro, etc. E no tal lugar, de manhã, as pessoas acordavam. Bom dia, bom dia. E desatavam a correr. É o meu inferno, o meu paraíso, vai ser bom, vai ser horrível, está a crescer, faz-se homem. E a gente então comove-se, e apoia, e ama. Está mais gordo, mais magro. E o lugar começa a ser cada vez mais um lugar, com as casas de várias cores, as árvores, e as leis, e a política. Porque é preciso mudar o inferno, cheira mal, cortaram a água, as pessoas ganham pouco – e  que fizeram da dignidade humana? As reivindicações são legítimas. Não queremos este inferno. Dêem-nos um pequeno paraíso humano. Bom dia, como está? Mal, obrigado. Pois eu ontem estive a falar com ela, e ela disse: sou uma mulher honesta. E eu então fui para o emprego e trabalhei, e agora tenho algum dinheiro, e vou alugar uma casa decente, e nosso filho há-de ser alguém na vida. E então a gente ama, porque isto é a verdadeira vida, palpita bestialmente ali, isto é que é a realidade, e todos juntos, e abaixo a exploração do homem pelo homem. E era intolerável. Ouvimos dizer que numa delas, o pequeno inferno começou a aumentar por dentro, e ela pôs-se silenciosa e passava os dias a olhar para as flores, até que elas secavam, e ficava somente a jarra com os caules secos e água podre. Mas o silêncio tornava-se tão impenetrável que os gritos dos outros, e a solícita ternura, e a piedade em pânico – batiam ali e resvalavam. E então a beleza florescia naquele rosto, uma beleza fria e quieta, e o rosto tinha uma luz especial que vinha de dentro como a luz do deserto, e aquilo não era humano - diziam as pessoas. Temos medo - pensavam. E o ruído delas caminhava para trás, e as casas amorteciam-se ao pé dos jardins, mas é preciso continuar a viver. E havia o progresso. Eu tenho aqui, meus senhores, uma revolução. Desejam examinar? Por este lado, se fazem favor. Aí à direita. Muito bem. Não é uma boa revolução? Bem, compreende... claro, é uma belíssima revolução. E é barata? Uma revolução barata?! Não, senhores, esta é uma verdadeira revolução. Algumas vidas, alguns sacrifícios, alguns anos, algumas. É um bocado cara. Mas de boa qualidade, isso. E o rosto que se perdera, que possivelmente caíra do corpo e rolara debaixo das mesas, o rosto? Lembras-te? Como foi que ficou assim? Não sei: tinha uma luz. Sim, lembro-me: parecia uma flor que apodrecesse friamente. Era terrível. Boa noite. E ela trazia um vestido de seda branca, e nesse dia fazia dezoito anos, e estava queimada pelo sol, e era do signo da balança, e tomou os comprimidos todos, e acabou-se. Não compreendo. E julgas tu que eu compreendo? Quem pode compreender? Ela era a própria força, aquela irradiante virtude da alegria, aquele fulgor radical..., compreendes? Sim, sim. Tinha um vestido de seda, e era nova, e então acabou-se. Para diante, para diante. Não se deve parar. Enforquem-nos, a esses malditos banqueiros. Este vai ter trinta e cinco andares, será o mais alto da cidade. Por pouco tempo, julgo eu. Como? Sim, vão construir um com trinta e seis, ali à frente. Remodelemos o ensino. Cantemos aquela canção que fala da flor da tília. Bebamos um pouco. E outro, o que viu Deus quando ia para o emprego?! Isto, imagine, às 8 h. e 45 m. de uma tranquila manhã de Março. Uma partida de Deus? Boa piada. Não amará Deus essas maliciosas surpresas? Um pequeno Deus folgazão?! Ele ficou doido. Começou a gritar e a fugir. Que Deus vinha atrás dele. E depois? Bem, lá construíram o prédio com trinta e seis andares, e o outro ficou em segundo lugar. Isto é o trabalho do homem: pedra sobre pedra. É belo. Vamos amar isto? Vamos, é humano, é do homem. E então as crianças cresceram todas e andavam de um lado para o outro, e iam fazendo pela vida – como elas próprias diziam. E então as condições sociais? Sim, melhoraram bastante. Mas uma delas começou a beber,  e depois a coração estoirou, e ficou apenas para os outros uma memória incómoda. Parece que sim, que tinha demasiada imaginação, e levaram-na ao médico, e ele disse: aguente-se, e ela não se aguentou. Era uma criança. Não, não, nessa altura já tinha crescido, bebia pelo menos um litro de brandy por dia. Nada mau, para uma antiga criança. A verdade é que era uma criança, e não se aguentou quando o médico disse: aguente-se. E as ruas são tão tristes. Precisam de mais luz. Mas nesta, por exemplo, já puseram mais luz, e mesmo assim é triste. É até mais tristes que as outras. Estou tão triste. Vamos para férias, para o pequeno paraíso. Contaram-me que ele tinha uma alegria tão grande que não podia aguentar um copo na mão: quebrava-o com a força dos dedos, com a grande força da sua alegria. Era uma criatura excepcional. Depois foi-se embora, e até já desconfiavam dele, e embarcou, e talvez não houvesse lugar na terra para ele. E onde está? Mas era uma alegria bárbara, uma vocação terrível. Partiu. E agora chove, e vamos para casa, e tomamos chá, e comemos aqueles bolos de que tu gostas tanto. E depois? Ele era belo e tremendo, com aquela sua alegria, e não tinha medo, e só a vibração interior da sua alegria fazia com que os copos se quebrassem entre os dedos. Foi-se embora.


herberto helder
os passos em volta
assírio & alvim
1980



25 de abril sempre, fascismo nunca mais!


24 abril 2016

manuel antónio pina / a décima oitava infância



1.       A  Casa
Tenho dezoito amigos. Um doente, outro não.
Dezoito casas, uma verde: gozos
não se discutem, como dizia a avó
do Alexandre, que era escritora.
Tenho pois dezoito amigos, um amigo
Verde. Onde a noite principia vejo-os.
São três. Um verde. Um morto
com uma bala na cabeça. São os meus
amigos. Faço as pazes com eles.

2.       A Guerra
Os meus amigos vão para a guerra. Dão
e levam devagar, asseguro-vos. São novos, morrem.
Em dezoito guerras perdi
dezoito amigos, um doente outro não.
Odeio a guerra devagar,
tenho tempo. Os meus amigos
atravessam ruas, adoecem.
Escrevem oitocentas cartas por minuto,
nove em cada dez perdem-se para sempre.
A verdade é que isto não vai com poemas,
como diria o outro.

3.       Um Amigo
Entrevisto vagarosamente um amigo.
As suas declarações são sensacionais.



manuel antónio pina
ainda não é o fim
nem o princípio do mundo
calma
é apenas um pouco tarde
erva daninha
1982



23 abril 2016

al berto / regresso às histórias simples


5

eis-me acordado
com o pouco  que me sobejou da juventude nas mãos
estas fotografias onde cruzei os dias
sem me deter
e por detrás de cada máscara desperta
a morte de quem partiu e se mantém vivo

a luz secou na orla desértica da cidade
escrevo para sobreviver
como quem necessita partilhar um segredo

este corpo em que me escondi
gastou-se

quantas noites permanecerão intactas
no fundo do mar? o rosto ainda jovem
foi o tesouro de seivas que me entonteceu

pelo corpo condeno-me à vida
de susto em susto à inutilidade da escrita

mas eis-me acordado
muito tempo depois de mim
esperando por alguma fulguração do corpo
esquecido
à porta do meu próprio inferno


al berto
regresso às histórias simples
o medo
assírio & alvim
1997



22 abril 2016

malcolm lowry / para debaixo do vulcão



Um limão seco como uma anciã de cócoras com o seu capuz debai-
xo do frio.
Uma pirâmide branca de sal e as moscas
revolteando sobre a mesa laranja, e chove, chove, um peão que
                arranha
e um aparo que arranha, escrevendo oblíquas palavras.
Guerra. E os eléctricos de pescoço quebrado lá fora
e o súbito pensamento quebrado do rosto de uma rapariga em
                Hoboken
e uma tartaruga voltada para cima morrendo lentamente
 na varanda da marisqueira, sangue
que rodeia a sua boca e o chão branco –
pronta para amanhã.
Não haverá amanhã, o amanhã acabou.
Trevo e cheiro a abetos e a grandes ervas,
e peru com molho e a Inglaterra de repente,
a recordação da casa, mas então
os mariachis, dissonantes, pois a ave do maguey
levantou voo, e o empregado de mesa leva
um ondulante prato negro de emoção,
e o rosto do peão é uma mancha de corrupção.
Deixamos de lado o horror do clima
nesta terrível terra de homens meio enterrados
onde vivemos com Canuto, com o relógio de sol e o peixe vermelho,
o leproso, a trepadeira, juntos na torre verde,
e ao pôr do sol tocamos, com flauta e guitarra,
a canção, a canção da eterna espera de Canuto,
o equívoco da minha espera, a flauta do meu pranto,
noiva do nauseabundo vácuo e da raiz descarnada
e a chuva sobre o comboio que lá fora se arrasta, se arrasta,
todo esse vazio na minha alma que agora dorme
onde outrora caminharam altivos tigres limonada andrajosos lepro-
                sos verdes
álcoois peras pimentas pobres e Leopardis recheados;
e o ruído do comboio e a chuva no cérebro…
Tão longe do celeiro e do campo e da azinhaga –
esta pira de Bierce, este trampolim de Hart Crane!
 A morte tão longe da minha casa e da minha mulher
A morte que temo. E rezei pela minha vida enferma –

«Um cadáver deve enviar-se por expresso»,
disse o Cônsul misteriosamente, acordando de repente.


malcolm lowry
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé agostinho baptista
assírio & alvim
2001



21 abril 2016

rosa alice branco / os escombros da poesia



Passos apressados estendem as sombras
pelas veredas que as mulheres percorrem
desde a criação. O oriente oferece-lhes
o fósforo iluminado que desenha na terra
a semelhança de caminhos
mas é a ti que a pele do gamo cobre os ombros
e o sacro tirso pende das garras adormecidas.

Sei que chegaste pelo rufar dos tambores
que se confunde com o ondular das pernas
quando invocas a terra, incitas os cães
e o velho poeta abandona os escombros
para vir juntar-se ao vinho da poesia.

Cavafis escreve que deus abandona antonio
nesse mesmo café. Tentas reter a intimidade
que fizeste tua por instantes e se esvai
pela janela orvalhada onde vislumbras a cidade
que te oferece apenas o abismo das ruas
e algum ódio que escorre docemente pelo copo.
Pergunto-me se saberás escolher o chão que te há-de
sulcar os pés, a madeira seca para o sacrifício?
A cabeça do velho é a tocha que te dá alento
quando as portas do café se fecham uma a uma
e o medo inventa o festim da morte
que repetimos tantas vezes
em noites de incompreensível beleza.
A vocação da poesia enrola-se-te nas pernas
como um animal e já nada o distingue de ti,
nem o gamo, a sua pele sacrificada
nos teus ombros onde o ouro que diz o teu nome
é limalha de sombra em voo rasante sobre nada.


rosa alice branco
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015