25 novembro 2015

eugéne guillevic / variações sobre um dia de verão


Acariciar o verão
saber dele

O peso da alegria
Que suporta a mão.

     *

Caminhar na luz
Quase como se
Estivesses em casa.

     *

Ela vem de longe
Esta bebedeira

Que tem por dever
Abrir as fronteiras


eugéne guillevic
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de eugénio de andrade
assírio & alvim
2001



24 novembro 2015

joão rebocho / escrevo


escrevo
obrigado a fazê-lo
o tempo as religiões todas
em dívida sujeito
exposto
grato vencido
com violência
dominado
todos os dias
as mãos
atadas cordas
submisso silêncio

frio sem laços afectos
viver sozinho
anos de séculos
feito homem
à imagem e semelhança
homem
um perdido
coberto de bruma
sem nada dentro

se alguém pegasse
nesta mão



joão rebocho
rapazas e raparigos
edição do autor
2015



23 novembro 2015

antónio cândido franco / redenção


                liberdade e graça


O Pombal do futuro, não o do Sol
mas o da sombra
há-de andar de óculos, e de óculos escuros
com os  Sermões  de Vieira debaixo do braço
e emblema  na lapela
com o retrato de Malagrida.
O Estaline há-de ler em ascese Os Lusíadas
essa arte de heréticos
e o Junqueiro, o Vulcano pequeno-burguês
que foi desmontado peça a peça por Sérgio
há-de aparecer esquelético na Arcádia universal
de barrete e todo nu, a cores
como num retrato de Warhol
a conduzir nos aposentos da luz o faiton de Apolo


antónio cândido franco
estrela subterrânea
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002



22 novembro 2015

alberto caeiro / quem me dera



Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...

Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira...

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...

Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...

Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena...

alberto caeiro



21 novembro 2015

armando silva carvalho / a minha infância não a trago ao colo



A minha infância não a trago ao colo.
Mas hoje ao ver-me tão pintado
no espelho do seu rosto
ajoelho no chão
para que as águas me cubram
e o tempo de mim sinta
vergonha.



armando silva carvalho
canis dei 1995
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007



20 novembro 2015

ruy belo / o valor do vento


Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em Agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento actualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto


ruy belo
o país possível
todos os poemas II
assírio & alvim
2004




19 novembro 2015

leopoldo maría panero / o lamento do vampiro



Vós, todos vós, toda
essa carne que na rua
se amontoa, sois
para mim alimento,
todos esses olhos
cobertos de remelas, como de quem não acaba
nunca de despertar, como
olhando sem ver ou tão só pela sede
da absurda aprovação de um outro olhar,
todos vós
sois para mim alimento, e o espanto
profundo de ter como único espelho
esses olhos de vidro, essa névoa
em que se cruzam os mortos, esse
é o preço que pago pelos meus alimentos

Last River Together, 1980


leopoldo maría panero
antologia poética (1979/1994)
selecção, tradução e notas de jorge melícias
lume editor
2014





18 novembro 2015

fiama hasse pais brandão / novembro também


Novembro também na Europa
tão soalheiro, tão cheio
de memórias amargas,
forçado Estio,
aziago e malsão mês,
que nos prediz os séculos
de Caos novo.

Nov. 95

  
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002




17 novembro 2015

alda merini / acordar com a febre altíssima



Acordar com a febre altíssima
num delírio de amor,
e ouvir ao longe
as pessoas falarem de ti como poeta
de precisa e indómita escrita,
mas que te importa enfim
a meta está alcançada
podes amainar as velas
e finalmente apaziguar-te,
e dizer que o teu comprimento
é um metro e cinquenta de estatura
e o teu peso é 80.

Está tudo, do resto
não vai ficar mais nada, as folhas
dirão que escreveste, sofreste, amaste,
que desesperadamente pediste ajuda
e a ajuda não veio.
Então mede a quadratura do círculo
ocupa-te finalmente da tua esquizofrenia,
é o bem que te ficou
é a verdadeira fecunda poesia
depois ficará um caixão
um e cinquenta de comprimento
para acolher-te, um nada dentro da espécie,
e oxalá fique a tua memória
no coração de Giacinto Spagnoletti.

(de A terra santa e outros poemas, Lacaita 1984)



alda merini
tradução de marco bruno
relâmpago
revista de poesia, nr. 17 10/2005
fundação luís miguel nava
outubro de 2005



16 novembro 2015

heiner müller / vampiro


As máscaras estão gastas fin de partie
Proletário e assassino camponês e soldado
das bocas emprestadas não sai um único pio
desvaneceu-se o poder onde o meu verso
se quebrava como a rebentação da cor do arco-íris
na cerca dos dentes o último grito morreu
BEM-VINDO A WORKUTA COM ( M ) ISSÁRIO
Em vez de muros há espelhos à minha volta
O meu olhar procura o meu rosto O vidro permanece vazio.


heiner müller
XI poemas de heiner müller
tradução de luís costa
Werke 1, Die Gedichte,
erste Auflage 1998, Suhrkamp




15 novembro 2015

narcís comadira / as cidades



Li uma vez que Morosini,
general, embaixador
de Veneza, quis
levar consigo as esculturas
do frontão do Pártenon.

Mandou montar um andaime,
mandou trepar os escravos
e, no momento mais difícil,
alguma escora falhou.
Tombaram homens e estátuas.

Decepcionado, o general
abandonou o seu projecto.
Ele queria-as inteiras.
Os pedaços assim espalhados
serviram para construir casas.

Muitos sábios meditaram
sobre o mistério surpreendente
de poder criar beleza
a partir de um bloco de mármore.
Poucos sobre o caminho contrário.

Obter um silhar adequado
do torso de algum deus antigo,
converter em cascalho uma vénus,
poder pisar paralelepípedos
feitos de membros sagrados...

Assim se fizeram as cidades:
lentamente construídas
com pedras que ontem foram
vidas humanas: amores,
sofrimentos que ninguém recorda.


narcís comadira
quinze poetas catalães
trad. egito gonçalves
ed. limiar
1994



14 novembro 2015

rené char / um pássaro



Um pássaro canta sobre um fio
Essa vida simples, à flor da terra.
Com isso se alegra o nosso Inferno.

Depois o vento começa a sofrer
E as estrelas dão-se conta.

Ó loucas, por percorrerem
Uma tão profunda fatalidade.

  
rené char
furor e mistério
tradução margarida vale de gato
relógio de água
2000




13 novembro 2015

josé antónio almeida / à mesa



À mesa do restaurante, sentado com o meu pai,
sem trocarmos entre nós uma única palavra,
chamei o empregado para pedir o almoço.
Então uma coisa inesperada aconteceu:
uma cara angélica aproximou-se de mim.
Via-se a silhueta do corpo sob a camisa
transparente e de mangas curtas, desabotoada
no colarinho e os primeiros botões de cima.
Concentrei-me com atenção nas oportunidades
Todas que me dava aquela situação de freguês
para olhá-lo e falar-lhe e até sorrir-lhe.
Encheu-me uma felicidade incongruente
Com aquela refeição que não era o banquete
que o outro pai partilhou com o filho pródigo.


josé antónio almeida
poemas
as escadas não têm degraus – 2
livros cotovia
1990