19 setembro 2015

alejandra pizarnik / anéis de cinza



                             a cristina campo


São as minhas vozes cantando
para que não cantem eles,
os amordaçados tristemente na aurora
os vestidos de pássaro desolado na chuva.

Há, na espera,
um rumor de lilás rompendo-se.
E há, quando vem o dia,
uma partição do sol em pequenos sóis negros.
E quando é de noite, sempre,
uma tribo de palavras mutiladas
procura asilo na minha garganta
para que não cantem eles,
os funestos, os donos do silêncio.



alejandra pizarnik
antologia poética
trad. alberto augusto miranda
edit. o correio dos navios
2002



18 setembro 2015

alberto pimenta / elogio do kitch



nada é diferente do que é:
nem as coisas
nem as palavras.

tudo é como é: tanto
as coisas como
as palavras.

mesmo
quando se trata de
coisas
que encobrem as palavras
ou de
palavras
que encobrem as coisas.

porque
as coisas
são como são
e exactamente o mesmo
sucede com as palavras.

isto
não esquecendo
que as palavras
por assim dizer
são o esmegma das coisas
e as coisas
por assim dizer
o eclegma das palavras.

e é tudo,
não é verdade?



alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990



17 setembro 2015

albano martins / simulacro



Um gesto pode ser
um simulacro apenas.
Como quando arrefece
e acendes a lareira
para dar sangue às brasas.
No halo
da chama há sempre
uma voz que cintila
e te agradece.
É isso que se chama
dar voz ao silêncio.



albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999



16 setembro 2015

umberto saba / ulisses



Na minha juventude naveguei
ao longo das costas da Dalmácia. À flor das ondas
cobertas de algas, viscosas, belas
como esmeraldas ao sol, emergiam ilhotas,
onde raramente um pássaro pousava
à espreita da presa. Quando a maré
alta e a noite as submergiam, velas
a sotavento guinavam mais ao largo,
para escapar à cilada. Hoje o meu reino
é essa terra de ninguém. O porto
acende as suas luzes para outros; a mim
impele-me ainda para o largo o espírito indomável
e o doloroso amor da vida.




umberto saba
dez poetas italianos contemporâneos em selecção
trad. albano martins
dom quixote
1992




15 setembro 2015

raffaele carrieri / piedade corações duros



Piedade, piedade corações duros
Piedade para o pássaro migrador
Que perdeu uma asa em pleno voo.
Piedade para o cigano órfão
Que jogou às cartas
Sela e cavalo
E se suicidou na prisão.
Piedade para o jovem Ninguém
Morto na China
Ou em outro qualquer lugar
Clima raça condição.
Piedade para o que morre de pé
No seu quarto de aluguer.
Piedade para o que cai
Piedade para o que se deixa cair.
Piedade, piedade corações duros
Vós que estais sempre sentados
E sabeis pelos jornais
A morte dos outros.


raffaele carrieri
dez poetas italianos contemporâneos em selecção
trad. albano martins
dom quixote
1992



14 setembro 2015

eva christina zeller / sonho



Ardem os campos
o lago bebe brasas
chove cinza na aldeia
sem estrelas a noite dilui-se
nenhuma pedra fala
em silêncio levanta-se o vento

escapei
recordo que esqueci


eva christina zeller
sigo a água
trad. Maria teresa dias furtado
relógio d´água
1996




12 setembro 2015

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno



11

é altura de perguntar se estamos no inferno, se nada é possível,
se uma pequena letra confunde as estações e os abismos,
se acordo de um sonho em trânsito directo para o pesadelo.
Veja: basta dizê-lo. É muito fácil
acreditar em mim, como se fora um marco telegráfico
que o vento oscila, e corre por dentro
atravessado de vozes, obscuro como um rio transparente,
misturando, no fundo, nuvens, pássaros, limos.

Tudo o leva a crer: o silvo automóvel de ninguém na névoa,
as promessas quebradas, mãos de gesso segurando os patins e o lanche frio
                                                                                                                       [ véspera,
o desarnor tão rápido, e as máquinas onde os dedos repetidos batem
na produção de parafusos. Ou palavras com ar de parafusos,
metálicas, brilhantes, úteis perfeitamente
indispensáveis às comunidades e seus cinco mil intérpretes.
E ao fim da tarde todos se deitam nos tapetes húmidos de pó eterno
e oram ao deus da morte enquanto passam as notícias.

E eu impassível descendente de obscuros francos valencins
que faço inverno dentro no banquete, relógio
incerto a dar as horas quando chega ao fim? O meu inferno
é de onze meses, basta. Quero acordar de mim,
ser de repente o bosque posto em orla
da lisa pista fria. E que surpresa, a mão hábil do vento,
a máscara de nuvens presa rente! nem sei em que ficamos:



antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996



11 setembro 2015

al berto / o domador de luas



estamos encostados a uma roulotte bebemos sangria
conversamos enquanto queimamos a noite
junto ao mar
o vento fresco surpreende-nos com as mãos nervosas
em redor dos copos embaciados a ternura dum olhar
não chega para iludir a embriaguez dos amores imperfeitos

sei que possuis ainda alguma juventude nesse sorriso
eu já só embebedo os lábios viciados pelas palavras
pouco tenho a dizer-te
toco-te no ombro faço promessas e tu ris
enquanto descobrimos no silêncio cúmplice do vinho
treme uma teia de luminoso sal onde a noite cai
sobreviveremos ao desgaste do amor

bebemos mais
para que haja só desejos e não amor entre nós e
o rapaz que tem a mania de espetar uma faca loura
no ombro do mar
La vie est une gare, je vais bientôt partir,
je ne dirai pas où.
calei-me
sabendo que me conduzirias até casa pelo caminho da praia
cambaleantes
e enquanto eu não conseguir abrir de novo os olhos
não partirás tenho a certeza
com a tua jaula cheia de luas mansas
apaziguadas



al berto
o medo
assírio & alvim
1997




10 setembro 2015

adolfo casais monteiro / profecia



Ai de quem sonha o futuro
de olhos fitos no passado!
Ai de quem vive abraçado
à sua estátua de bronze!
Ai daquele que já sabe
por onde abrir o caminho!

O seu destino tem certo:
que tudo lhe há-de saber
a comida já comida
que nada pode viver
sem lhe parecer já vivido


adolfo casais monteiro
sempre e sem fim
1937



09 setembro 2015

adília lopes / meteorológica


                    para o José Bernardino

  
Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter

Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas

Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)

A vida
é livro
e o livro
não é livre

Choro
chove
mas isto é
Verlaine

Ou: um dia
tão bonito
e eu
não fornico




adília lopes
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004




08 setembro 2015

ibn sâra / os viajantes da noite murmuram o teu nome



os viajantes da noite murmuram o teu nome
e as areias do deserto derramam sobre quem te pisa
o perfume do almíscar.
e da formusura da invocação sabemos da beleza do invocado
como pelo verdor das margens se pressente o rio.



ibn sâra
o meu coração é árabe
adalberto alves
assírio & alvim
1999



07 setembro 2015

henry deluy / a memória de ti




A memória de ti - não a tua imagem.

                 *

Depois chorar.




henry deluy
primeiras sequências
trad. colectiva Mateus, set. out. de 2000
quetzal editores
2002





04 setembro 2015

manuel gusmão / uma pedra na infância



Põe uma pedra
uma pedra sobre a infância

Para que de vez se cale essa respiração
contida suspensa no escuro

Põe, digo-te, uma pedra de silêncio sobre
essa infância essa fala ininterrupta essa

falagem que falha e promete e inventa
os sonhos e as promessas o riso sem porquê

Para que de vez se interrompa a esperança esse
mal que não desiste. Escreve, faz o que o ditado dita:

Enterra no silêncio da pedra essa intolerável coisa
que é a infância, as vozes da noite do poço.

Apaga a infância isso que falta sempre à chamada
e para sempre trocou já os desejos e os medos.

Já não vais a tempo, ela enredou sem remédio
as vidas os nomes a tua condenação. Mas vai.

Para que se cale de vez essa respiração que se ri
na cara da morte, nos olhos do enviado de deus

recita o que o ditado ditou: Põe uma pedra sobre
a infância e ouve a era a folhagem que cobrem

o céu em ruínas.

Também então havia uma pedra no canto do quarto
Alio onde a noite começava, era uma pedra e depois
crescia, petrificava-se no seu coração de pedra
dividia-se e eram várias crescendo; ocupando
todo o espaço do sono, do sonho do mundo.
Pesavam no teu peito procuravam-te os olhos
que de pedra ficavam e o grito era uma pedra
que na garganta subia contra a outra pedra.
O próprio ar golpeado era e dividia a voz
pedra contra pedra, o deserto a perder de vista.

Põe uma pedra sobre outra pedra. Inventa uma
outra infância de que possas recordar-te.
Obedeces ao poema e é sem espanto que vês:
nada acontece. Não há

nenhuma voz na voz dos condenados.



manuel gusmão
leyapoemas, jl
2009