14 julho 2015

sebastião da gama / cansaço



Não quero amar nem ser amado…
Quero ficar estúpido e cansado
a este canto, e só.

Batido pelo Vento,
sem conforto, sem pão, sem alegria.

E se eu chamar não venhas.
(Que eu não hei-de chamar-te…)

No entanto, Amor, não saias para longe.
É que eu posso, apesar de tudo quanto digo,
chamar por ti.
E era tão bom saber que me escutavas!...
E era tão bom sentir que perdoavas!...



sebastião da gama
cabo da boa esperança
pecado original
ed. ática
1959



13 julho 2015

charles simic / história verdadeira



Que não se pode contar em palavras
Como uma mosca no mapa do mundo
Na montra da agência de viagens.

Aquela rua no calor da tarde
Sem ninguém a não ser meu idoso pai
De cabeça encostada ao vidro
Para a ver melhor
Enquanto ela arrasta a sua sombra filiforme
De Nova Iorque até Xangai.

Nem sabe se há-de acordar o amigo,
O barbeiro, que dormita ali ao lado
Com um lenço a tapar-lhe a cara.

  

charles simic
traduzido por josé lima
diversos nr. 2




12 julho 2015

al berto / noutros tempos



noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenámo-nos boca a boca com vidro moído
pelas salivas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras



al berto
horto de incêndio
assírio & alvim
1997




11 julho 2015

ruy cinatti / algures na beira



A paz das aldeias entre montanhas…
Casa agranitadas, telhados de ardósia,
ruas de terra e de pedra solta,
videiras alçadas em árvores de limo…
Passear por estes campos à beira das coisas
é um supremo bem que não de alcança
senão a caminho do nosso destino.

6/12/76


ruy cinatti
56 poemas
de «paisagens»
relógio d´água
1992



10 julho 2015

josé gomes ferreira / as crianças



XIII

As crianças
atiravam o Sol umas às outras
a brincarem no pátio
entre gritos alegres de poeira.

Não percebo porque os deuses
em vez de viverem com os homens
nos esperam na sombra
com caveiras de incenso
e invenção de pequenos enredos na morte
para entreter o silêncio.


josé gomes ferreira
memória I 1957-1958
poesia V
portugália
1973



09 julho 2015

antónio gedeão / poema da malta das naus



Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do Sol.

Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo,
pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.

Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das praias,
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.

Chamusquei o pêlo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me as gengivas,
apodreci de escorbuto.

Com a mão esquerda benzi-me,
Com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.

Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse, fui eu.

O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.

  

antónio gedeão





08 julho 2015

camilo pessanha / floriram por engano as rosas bravas






Floriram por engano as rosas bravas
No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que um momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze — quanta flor! —, do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?




camilo pessanha




07 julho 2015

sophia de mello breyner andresen / carta aos amigos mortos


Maria Barroso (2-05-1925 / 7-07-2015)






Eis que morrestes - agora já não bate
O vosso coração cujo bater
Dava ritmo e esperança ao meu viver
Agora estais perdidos para mim
- O olhar não atravessa esta distância -
Nem irei procurar-vos pois não sou
Orpheu tendo escolhido para mim
Estar presente aqui onde estou viva.
Eu vos desejo a paz nesse caminho
Fora do mundo que respiro e vejo.
Porém aqui eu escolhi viver
Nada me resta senão olhar de frente
Neste país de dor e incerteza.
Aqui eu escolhi permanecer
Onde a visão é dura e mais difícil

Aqui me resta apenas fazer frente
Ao rosto sujo de ódio e de injustiça
A lucidez me serve para ver
A cidade a cair muro por muro
E as faces a morrerem uma a uma
E a morte que me corta ela me ensina
Que o sinal do homem não é uma coluna.

E eu vos peço por este amor cortado
Que vos lembreis de mim lá onde o amor
Já não pode morrer nem ser quebrado.
Que o vosso coração que já não bate
O tempo denso de sangue e de saudade
Mas vive a perfeição da claridade
Se compadeça de mim e de meu pranto
Se compadeça de mim e do meu canto.



sophia de mello breyner andresen
livro sexto
1962




06 julho 2015

martin earl / no instituto



Peter  nadava por entre palavras, arrastando o corpo
com os músculos da boca. Nasceste
numa bicicleta a caminho de uma cimenteira.
À tua mesa o pão ia de mão em mão, resmungando.
Os olhos deles pareciam codornizes dispersas
debaixo da atalaia. As vozes eram o arfar reverso
dos fios, quando os eléctricos tocavam o passeio. Misha
escutava intensamente enquanto o assunto mudava para o-de-
                                                                                 -coração-despedaçado,
uma marca verde no papel diante dele, como Bach.
Acendeste o fogão de louça amarela com carvão
ordinário, grácil como uma frase. Pontus mentiu sobre Belman,
alterou os factos da biografia, para se
distanciar, como o sossego do pátio por detrás
do instituto. Por detrás de certas palavras os homens moveram-se
como ficheiros por detrás de divisórias, já não
pensando em si como almas dentro de corpos, mas
como fundas gavetas de metal sobre calhas. Peter
voltou a Rilke, as oitavas de uma única frase,
a mão com a batuta tecedeira, rolando sobre si própria
no ar, que parecia brilhar de calor cansado.
O poema acabou, segundo Pontus, entre
duas cidades, com alguém que perde a capacidade
de agir, entre uma fieira de prédios, de altos arcos
abatidos, neve no ar, mas sem nevar.



martin earl
poesia do mundo
trad. maria irene ramalho
edições afrontamento
1995



05 julho 2015

marin sorescu / simetria



Vagueava,
Quando, de súbito, à minha frente
Se abriram dois caminhos:
Um para a direita
E outro para a esquerda
Segundo todas as regras de simetria.

Parei,
Semi-cerrei os olhos,
Esbocei com os lábios uma dúvida,
Tossiquei,
E segui pelo da direita
(Precisamente pelo que não devia,
Como se provou mais tarde).

Só eu sei o que foi esse caminho,
É escusado dar pormenores.
E depois, à minha frente, abriram-se dois
Precipícios:
Um à direita,
Outro à esquerda.
Lancei-me no da esquerda,
Sem pestanejar, sem tomar balanço,
E catrapumba lá vou eu pelo da esquerda abaixo,
Que, ai de mim, não estava forrado de penas!
Rastejei, disposto a continuar.
Fui rastejando por algum tempo
E de súbito à minha frente
Abriram-se dois grandes caminhos
«Já vão ver» - disse para comigo -
e tomei outra vez o da esquerda,
para me vingar.
Errado, completamente errado, o da direita era
O verdadeiro, o grande caminho, ao que dizem.
E no primeiro cruzamento
Dei-me de corpo e alma
Ao da direita. Mas também agora
Era o outro que eu devia ter escolhido, o outro…

Agora a merenda estava quase no fim,
Na minha mão o cajado envelhecera,
Já não dava rebentos
Para eu descansar à sombra
Quando me domina o desespero.
Os ossos gastaram-se nas pedras,
Rangem e praguejam contra mim
Que perseverei no erro…
E olhem: agora à minha frente abrem-se
Dois céus:
Um à direita, outro à esquerda.



marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997




04 julho 2015

herberto helder /ciclo



IV

Mais uma vez a perdi. Em cada minuto
a perco. Longe revolteiam suas palavras
e seus dedos depositam-se
em qualquer parte.

Se a busco? Esfaimadamente a busco.
Tacteando com a memória a forma com que era
nas noites de amor.
Reconstruindo sua espécie de enorme sorriso.
Busco-a sim, inventando subtilmente
o impudor de cada entrega,
a dádiva sobrenatural da sua carne aberta.
Mais uma vez foi destruída pela vida feroz,
e minha boca não suporta sem palavras
essa coisa mortal.
Sangrentas são as palavras e deixam vestígios
através do tempo.

Longe, naquilo que o acaso teceu,
elaboram-se os gestos. No casulo remoto
forma-se a distância
entre a sua fonte e a minha fonte.
- Com que ser se entende agora seu ser oculto?
E as voltas obscuras e difíceis
dos instintos.

Ela semeia-se. E alguma coisa misteriosamente
a fecunda.
- Ela é colhida por um vento e eu estou bêbedo
de coisas inextricáveis.
Sei que ela acontece. Um círculo de seda
forma-se prementemente,
e ela acontece.

A minha fonte não me dá ironia,
nem um fogo,
uma estrela violenta.
- Fico a saber que ela longe cresce
como outra folha de erva.

Nada em mim suporta. A memória
desimpede-lhe os pés, e beija-os.
Minhas pálpebras exaltam-na.
E a fonte, essa, recusa-a arduamente.

Recebo humildemente esta desordem
da carne, das palavras,
dos dedos bruscos do tempo.
- Recebo tudo, e canto como quem deixa um sinal
maravilhoso.



herberto helder
ciclo, poema IV
poesia toda
assírio & alvim
1996




03 julho 2015

tatiana faia / auto-retrato em hora inglesa



tirou da mala os dicionários de grego pôs
na estante uma flor de palha cor-de-laranja
seis imagens de w. b. yeats uma fotografia
tirada no ribatejo em 1976 que exibia
homens pendurando-se em varandas
à passagem de um bezerro desgarrado

quando lhe falou disso disse
não fthonos mas coisa triste com
rabo e cornos de cinza à maneira
dos portugueses dos ibéricos
acrescentando que não seria a isso
que sucumbiria porque notara
como qualquer poeta romântico
tonto e cheio de auto-comiseração
que não podia escapar àquele peso
em manuais vulgarmente designado
por sentimento do trágico

viu então pelas janelas na sala
da lower Reading room o anjo
elevando-se acima de tudo
por sobre as janelas ocre segurando
a trombeta a mão partida envolta em gesso
posta à altura do peito a chuva a falta
da caneta certa para te escrever isto
o não lhe ter sobrado nenhuma
outra língua qualquer outra fala



tatiana faia
relâmpago
revista de poesia 29-30
out 2011 abril 2912




02 julho 2015

pentti saaritsa / de longe olho os heróis



De longe olho os heróis,
o heroísmo
Dos cérebros esperamos uma tempestade
 
Vivemos numa época inquietante
na qual os que vêem claro                              
não dizem palavra                           
 
Ando pelos cantos, busco os meus inimigos
e quem são eles, então?
Sou demasiado dócil.
Os inimigos já estão tão perto
que é difícil escrever uma palavra sem os ofender.



pentti saaritsa
poemas
tradução de egito gonçalves