28 outubro 2011

lawrence ferlinghetti / como eu costumava dizer






    Como eu costumava dizer
             o amor é mais difícil de nascer nos mais
                                                                [idosos
porque já percorreram
        os mesmos velhos trilhos muitas vezes
e depois quando a manhosa agulha se apresenta
                       não tomam o desvio
   e devoram a velha via errada enquanto
           o alegre "tandem" segue em voo
       e o maquinista da locomotiva a vapor não
                                                        [reconhece
          as novas buzinas eléctricas
e os velhos correm sob o impulso ferrugento
                                         cujo fim se encontra
       na erva morta onde
as latas ferrugentas e as molas de colchão e as
                              [lâminas de barbear usadas
                                         jazem
             e a via acaba abruptamente
                                     ali mesmo
embora as chulipas de madeira continuem por uns
                                                                   [metros
                        e os velhos
dizem para si próprios
                                        Bem
                                                Deve ser este sítio
                             onde temos de nos deitar
E deitam-se mesmo

                 enquanto a bela carruagem iluminada
                                         [prossegue lá ao longe
                 no alto
                        no cimo da colina
                            com as janelas cheias de céu azul
                                                           [e namorados
   com flores
                             e longos cabelos ondulantes
                                    e todos a rirem-se
                          e a dizerem adeus e
                a perguntarem-se a si próprios o que
                                              [aquele cemitério
                  onde a via acaba
                                        é





lawrence ferlinghetti
pictures of the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom Quixote
1972




27 outubro 2011

irene lisboa / nova, nova, nova, nova






Não era a minha alma que queria ter.
Esta alma já feita, com seu toque de sofrimento
e de resignação, sem pureza nem afoiteza.
Queria ter uma alma nova.
Decidida capaz de tudo ousar.
Nunca esta que tanto conheço, compassiva, torturada
   de trazer por casa.
A alma que eu queria e devia ter…
Era uma alma asselvajada, impoluta, nova, nova,
     nova, nova!




irene lisboa
1892-1958




25 outubro 2011

antónio maria lisboa / poema



                                                          Para o Mário Cesariny




Moveu-se o automóvel – mas não devia mover-se
não devia!

Ontem à meia-noite três relógios distintos bateram:
primeiro um, depois outro e outro:
o eco do primeiro, o eco do segundo, eu sou o eco do terceiro

Eu sou a terceira meia-noite dos dias que começam

Pregões de varina sem peixe
- o peixe morreu ao sair da água
e assim já não é peixe

Assim como eu que vivo uma VIDA EXTREMA.






antónio maria lisboa
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




24 outubro 2011

carlos eurico da costa / [de sete poemas da solenidade e um requiem]




2


Os grandes barcos de granito azul avançam
marcando a sua época.
No mar
as velhas canções de música
petrificadas por estrelas velocíssimas
são a origem dos ciclones
(os jornais asseguram-nos a sua existência)
e nestas montanhas conscientes da sua fragilidade
os cegos rosados
lutam no bar das estátuas mitológicas
esgrimindo agilmente as facas.

Hoje repousaremos na rua deserta
os pequenos maquinismos de anulação do tempo
bem firmes entre os dedos
como anéis circunvolutórios
até que um sulco de areia penetre o mar e tinja as águas
e neste pequeno café da praia
outros homens povoem a fúria das ondas
e dos rochedos que são a nossa maneira
de descobrir veículos de amor.


          A subtil invenção da tua epiderme
          a fragilidade obscura das tuas mãos
          será apunhalada ao amanhecer
          quando a nossa lucidez se fundir no horizonte
          e toda a turba rolando pelas colinas
          se suicidar com uma pétala sobre as pálpebras.


E a janela indicando-nos os signos de certos templos
os murais de agulhas oxidadas
a tua espantosa e inconsciente pureza
de ser boreal
presente em todos os viadutos dos meus gestos
presente nas pedras desta antiga e odiosa cidade.

E toda a minha angústia para ti
como os prédios em derrocada
que são a tua permanente ausência
o desespero de uma voz disseminada
pelos clarões do tempo que teremos de viver.

Longe futuramente longe
nas fugas geométricas dos museus
na misteriosa cadeira lavrada dos contos policiais
na erosão da cama ainda quente do teu corpo
as luzes extinguem-se lentas.

Creiamos.
Mas o frio desta geada de actos convenientes
acorda a hora do universo
a hora imperturbável de toda a fixação dos actos
quando os rios apagarem o sangue desta geração
das pa1avras de medo que não pronunciamos
no banho de cinzas da nossa existência.





carlos eurico da costa
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




23 outubro 2011

álvaro de campos / aniversário





No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, 
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, 
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa, 
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa, 
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça! 
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! 
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!





álvaro de campos




21 outubro 2011

cesário verde / o sentimento de um ocidental




I


AVE-MARIAS


Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinido de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!






cesário verde
o livro de cesário verde
1901





20 outubro 2011

fernando guimarães / tudo o que vês chega de longe





Tudo o que vês chega de longe: apenas um contorno
ou uma sombra que se desloca devagar. Há gestos
semelhantes a folhas que não caem. Principia agora
a luz a espalhar-se à nossa volta e a verdade torna-se
mais simples. É como um rosto que reconhece a sua idade.




fernando guimarães
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001



19 outubro 2011

elizabeth burns / rosa-dos-ventos





«Nem me esqueça eu de cantar...
o ano dos meteoros» — Robert Indiana

Que rasgo de céu traria
Esta luz à minha cama, o meu berço
Que azul bom duraria assim tanto na noite

Me faria levantar uma e outra vez
Uma série solene de santuários os meus joelhos
No chão os meus lábios na janela

Que beleza solene me faz abraçar a luz
Me obriga a tocar o gelo a água
Me faz saber que a minha cama esta plena de som

Que solene eu transforma a minha cama no oceano
A luz dos meteoros numa mão sobre o meu peito
O azul profundo subindo em mim tão profundo quanto eu me abro

Como estarão os meus olhos acima de mim sempre e no teu cabelo
Essa margem de ti tão profunda e tão escura
Com a tua voz na minha voz rodamos para dentro e para o escuro






elizabeth burns
poesia do mundo
tradução de graça capinha
afrontamento
1995






charlie chaplin / o último discurso de “o grande ditador”









Sinto muito, mas não quero ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não quero governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria apenas de ajudar: judeus, não judeus, negros ou brancos.

Todos nós desejamos ajudarmo-nos uns aos outros. São assim os seres humanos. Queremos viver para o bem do próximo e não para o seu infortúnio. Por que razão nos havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Há espaço para todos neste mundo. A Terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza! Porém, perdemo-nos. A cobiça envenenou a alma dos homens, fez erguerem-se no mundo as muralhas do ódio, e tem-nos feito marchar a passos largos para a miséria e para a morte. Criámos a era da velocidade, mas sentimo-nos aprisionados dentro dela. A Máquina, que produz abundância, tem-nos deixado na penúria. O nosso conhecimento, transformou-nos em cépticos; a nossa inteligência, fez-nos duros e cruéis. Pensamos muito e sentimos muito pouco. Muito mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Muito mais do que de inteligência, precisamos de afecto e de ternura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo estará perdido.

A aviação e a rádio aproximaram-nos mais. A sua própria natureza é um apelo eloquente à bondade do homem. Um apelo à fraternidade universal, à união de todos nós. Neste preciso momento a minha voz chega  a milhares de pessoas pelo mundo fora, milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas… vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes.
Aos que me podem ouvir, eu digo: “ Não desesperem! A desgraça que se abateu sobre nós não é mais do que o fruto da cobiça em agonia, da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores caem e o poder que arrebataram ao povo, ao povo há-de regressar. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá.

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais que vos desprezam, que vos escravizam, que controlam as vossas vidas, que ditam os vossos actos, as vossas ideias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado e vos usam como carne para canhão. Não sóis máquinas! Homens é que sóis! E com o amor da humanidade nas vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar… os que não se fazem amar e os inumanos!

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do Homem – não de um só homem ou grupo de homens, mas de todos os homens! Está em vós! Vós, o Povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela, de a tornar uma maravilhosa aventura. Portanto – em nome da Democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um Mundo Novo, um Mundo Bom que a todos assegure uma oportunidade de trabalho, um futuro para a juventude e a segurança à velhice.   

É com estas promessas que gente perversa tem subido ao poder. Mas só para abusar da vossa credulidade. Não cumprem o que prometem. Nunca cumprirão! Os ditadores libertam-se, escravizando, porém, o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, derrubar as fronteiras nacionais, pôr fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um Mundo de razão, um mundo onde a ciência e o progresso conduzam a prosperidade de todos. Soldados, em nome da Democracia, unamo-nos!


Hannah, estás a ouvir-me? Onde estiveres, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol começa a romper as nuvens que se dispersam! Estamos a sair da treva para a luz! Começamos a entrar num mundo novo – um mundo melhor, onde os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e começa, afinal, a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos Hannah! Ergue os olhos!





charlie chaplin
o grande ditador
outubro de 1940





18 outubro 2011

filinto elísio / soneto






Nasci – logo a meus pais custou dinheiro
o baptismo, que Deus nos dá de graça.
Tive uso de razão – Perdi a graça –
dei-me ao rol chegou a páscoa – dei dinheiro.

Quis casar com uma moça – mais dinheiro.
Brinquei com ela – não brinquei de graça:
Que aos nove meses me custou a graça
Para o Mergulhador capa e dinheiro.

Morreu minha mulher – não achei graça
e menos graça no arbitral dinheiro
da oferta; que o prior não vai de graça.

Se o ser sacristão requer sempre dinheiro,
como cumprem com dar graças de graça
o que as graças nos vendem por dinheiro?






filinto elísio
lisboa 1734-1819






17 outubro 2011

rita mpoumi-pappas / krinio





Apontem para o meu coração
agora é melhor para mim.
para vos tornar tudo mais fácil
cosi este pedaço de pano preto
mesmo no meio dos meus seios.

Não sei como será o vosso disparo
- pobres soldados imberbes – fizeram-vos levantar
de madrugada por minha causa
nunca empunhei uma espingarda – não sei

Vejo os vossos olhos muito abertos
 - não podeis evitar tudo isto –
as vossas mãos querem tocar-me
antes de puxarem o gatilho – eu compreendo

Provavelmente ainda tendes as alcunhas
da adolescência
e quem sabe, talvez tenhamos brincado juntos nas ruas

Prossigam, poupem-me à geada da manhã
estou quase nua
vistam-me com os vossos tiros
sorriam para mim rapazes
deixem o meu corpo coberto pelo vosso olhar

Nunca um amante me fez isso
nem mesmo em sonhos.








rita mpoumi-pappas
a palavra interdita
trad. de maria de lourdes guimarães
campo das letras
2001




16 outubro 2011

querino / la notte


                                                 (ao som de Wise one, John Coltrane)




Naquela noite,
uma noite como essa,
eu te via, meu caro, deitado
sobre teu vômito a dizer palavras de morte,
a dizer o que eu…
o que…
eu também te via ali, abandonado
no banheiro, as calças arriadas,
e diante de você um espelho,
porque narciso tu era
e então a beleza te levou até ali,
até esse lugar de apenas solidão.
Ali eu também estava:
eu era o teu vômito, o teu espelho muito claro;
eu via coisas que ninguém mais
como testemunha
saberia
se comportar.
Ali eu também estava, numa noite como essa.
Mas eu não te compreendia,
assim como vocês não me compreendiam. Eu apenas observava.
Eu estava longe.
Eu era outra coisa que talvez agora…

O mundo se estendia a diante,
era um caminho, era a minha casa.
Eu estava indo.
In a silent way, eu estava indo. Mas
junto a você eu morria também, meu caro,
junto a você eu mergulhava nesse rio de teu mijo sobre o chão;
eu morria mais ainda,
a beleza também havia me levado até ali,
e mais ainda.
Mais longe ainda que vocês, eu estava indo.
Eu tinha chegado.
Eu via a morte. Eu via a face de –
Ela não estava mais ali.
Fazia pouco, ela tinha corrido trecho
para onde eu não poderia continuar.
Era o fim, meu caro.
Era o fim e eu não te compreendia.
Eu não compreendia a vocês que tanto me ouviam
falar das horas e horas de nossa fuga:
iríamos para onde, até onde,
eu me perguntava, até quando.
Vocês também me falavam de intervenções e danças,
e naquela noite dioniso dançava –
tínhamos estado com ele mais além,
no alto daquele morro fora da cidade,
em um teatro aqui agora.
A nós ele revelava segredos,
a nós que por essa antecâmara precisávamos passar
– e é essa a noite em que estamos.
Cada um na sua, estávamos juntos. Estamos juntos,
somos um – e não há transcendência alguma em tudo isso.
Dioniso é aquele que passa: passamos.

E agora o bojo de nossa vitória:
estávamos ali.
Eu estava ali e ela não, a sua ausência sim.
E era porisso que eu não compreendia a vocês
e nem vocês a mim.
Há sempre um ponto mais além, mais aquém
onde chegamos
e ninguém mais. Um pouco a esquerda
eu estava.
Segurei a tua mão por um tempo,
te ofereci o meu ombro,
mas não o bastante, eu sei.
Eu estava só.
Eu era apenas eu.
Não havia mais alguém ali.
O telefone não atendia, não tocava.
Sem a tua graça quem eu seria,
eu perguntava. Um mundo se desfez,
um caminho, a minha casa.
Esse estradar,
não mais.
Não mais, eu dizia: não mais
(e não era para vocês esse meu desalinho,
mas para quem ali não mais estava,
para a parte que nos falta nessa busca por quem somos).

Eu era ninguém,
e o seu nome, mulher, eu escrevia
em passos indecifráveis, numa língua estranha
(havia um tinto derramado no chão, se bem me lembro).
Vocês não me compreendiam.
Talvez nesse instante.
Ela sim, até um tempo que agora já não é.
E agora, eu me perguntava, agora que foi aquela noite,
por onde vai esse estradar.
Eu que por tantas vezes disse Sim.
Eu que me gabava, mesmo sem querer,
de tudo isso que tem sido
a nossa vida. Eu tenho orgulho
de tudo o que construímos,
desse lugar que somos.
É para você, mulher, que traço essas linhas.
Pelas noites e dias de nossa presença,
é tua a origem
de todos os poemas. São teus.
Vocês não me compreendiam, não me compreendem,
mas sei o que digo.
Naquela noite eu estive só, eu era ninguém.

Estou só agora,
quero dizer, não há alguém aqui.






querino
sobre quantos cafés desperdiçamos
2011