28 julho 2016

josé manuel / transfigurações



A Eduardo Viana

«Le rossignol chante mal. »
Jean Cocteau


1
Nevou no Congo
ninguém viu

2
o sol queimou a paisagem
todos os homens cegaram

3
Entre a multidão a dor uníssona
— Senhor ilumina-nos

4
Noite verde
a paisagem azul

5
Um cacto no poio

6
Tudo é possível
dentro da alma

7
Porque dizes estamos mortos?
Começaste a viver sabendo-o

8
Sonha outro mundo outra vida
recomeça desde dentro
— a salvação és tu

9
Espelhos paralelos
nos bastidores o clown reflectido infinitamente

10
o público sorriu
sentindo-se nu sem saber exactamente porquê sorriu

11
Sozinho no grande palco do mundo
o poeta encontrou o seu destino
escrevendo-o
12
Ao princípio era o verbo

13
Entretanto a presença contínua dos homens
— Senhor tem piedade de nós pecadores

14
Silêncio de salto mortal

15
A vertigem do amor
todos os vícios todas as perversões

16
Um dia serás feliz no fim do mundo
 para além do equador
nas ilhas do mar do sul

17
É preciso que creias no milagre

18
As catedrais subterrâneas
cada vez mais próximas do céu

19
O perfil das cidades suspensas
sem anúncios luminosos
simples românico

20
A vida sem ansiedade
tam calma tam serena tam humilde

21
A hora redimida
terceiro dia do mundo

22
Meu amor não sei porquê
tudo isto dói

23
Não importa há outros ritmos
 outras paisagens ao longe

24
Acelerem o tempo

25
É preciso viver infinitamente
cores e sons sucessivos sobrepostos
cada vez mais

26
Hão-de dizer-te a vida tem limites
Que importa se a alma é imensa?

27
Tu sabes o céu é azul objectivamente azul
sonha-o de todas as cores

28
Liberta-te do mundo
o teu único o teu verdadeiro caminho és tu

29
A arte não é jogo é vida

30
Todos os dias são eternos

31
O tempo girafa de três cabeças
multiplicou-se indefinidamente

32
Por toda a parte nasceram monstros
homens máquinas em série

33
O grande crime somos nós
 escravos mártires do progresso

34
O mundo
brinquedo de um deus criança
nós não somos deste mundo

35
Bonecos articulados
exigimos

36
O espectáculo da vida
monótono às vezes sórdido

37
Imagens sobrepostas sempre as mesmas

38
O trágico quotidiano
um menino a dizer obscenidades

39
Merda para os primeiros
merda para os últimos

40
Perdemos o ritmo
desde o princípio dos tempos

41
Eu sou a hora eu sou o mundo
o único ritmo sou eu

42
Os outros podem sorrir
nasceram longe tam longe num outro mundo

43
Ignoram o dia estéril
o dia estéril são eles

44
Dissonâncias
um íbis descobriu o polo norte

45
Jazz movimento perpétuo
monótono trágico
documento apócrifo

46
Desnudem a paisagem
é preciso acabar com o verde

47
Abram o ventre a todas as mulheres
 é preciso quebrar com o futuro

48
Ao menos sejamos
qualquer cousa de póstumo

49
Farsa ou tragédia
a vida é isto

50
o clow entrou na catedral
e ajoelhou-se

51
O menino Jesus fugiu do céu
entrou no circo e ajoelhou-se

52
Nossa Senhora sorriu

53
No dia seguinte os jornais de todo o mundo
garantiram — o poeta enlouqueceu

54
Talvez a hora cor-de-rosa
decididamente a hora cor-de-rosa

55
É preciso destruir o cor-de-rosa

56
Um dia saberás porquê

57
Entretanto és presente
e o mundo é presente em ti

58
O espectáculo cinzento escuro do mundo

59
O caminho da esperança é o heroísmo ou o sacrifício
os deuses todos esperam-te

60
Eu sei talvez isto seja absurdo
Não importa é preciso




josé manuel
«eros» — 5-6
1953



2 comentários:

Jaime Portela disse...

Parabéns pelo blogue, já que publica regularmente excelente poesia.
Um abraço.

Francisco Craveiro de Carvalho disse...

Alguém a que cheguei há dias por uma via totalmente diferente: uma casa que terá mandado construir, Casa da Rua de Alcolena, e que creio terá sido destruída. Na altura, ocorreu-me que havia sido incluído na Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, de E M Mello e Castro & M Alberta Menéres, edição do início dos anos 70. Foi, de facto, com este mesmo texto.