A
Eduardo Viana
«Le rossignol chante mal. »
Jean
Cocteau
1
Nevou no Congo
ninguém viu
2
o sol queimou a paisagem
todos os homens cegaram
3
Entre a multidão a dor uníssona
— Senhor ilumina-nos
4
Noite verde
a paisagem azul
5
Um cacto no poio
6
Tudo é possível
dentro da alma
7
Porque dizes estamos mortos?
Começaste a viver sabendo-o
8
Sonha outro mundo outra vida
recomeça desde dentro
— a salvação és tu
9
Espelhos paralelos
nos bastidores o clown reflectido infinitamente
10
o público sorriu
sentindo-se nu sem saber exactamente porquê sorriu
11
Sozinho no grande palco do mundo
o poeta encontrou o seu destino
escrevendo-o
12
Ao princípio era o verbo
13
Entretanto a presença contínua dos homens
— Senhor tem piedade de nós pecadores
14
Silêncio de salto mortal
15
A vertigem do amor
todos os vícios todas as perversões
16
Um dia serás feliz no fim do mundo
para além do equador
nas ilhas do mar do sul
17
É preciso que creias no milagre
18
As catedrais subterrâneas
cada vez mais próximas do céu
19
O perfil das cidades suspensas
sem anúncios luminosos
simples românico
20
A vida sem ansiedade
tam calma tam serena tam humilde
21
A hora redimida
terceiro dia do mundo
22
Meu amor não sei porquê
tudo isto dói
23
Não importa há outros ritmos
outras paisagens ao longe
24
Acelerem o tempo
25
É preciso viver infinitamente
cores e sons sucessivos sobrepostos
cada vez mais
26
Hão-de dizer-te a vida tem limites
Que importa se a alma é imensa?
27
Tu sabes o céu é azul objectivamente azul
sonha-o de todas as cores
28
Liberta-te do mundo
o teu único o teu verdadeiro caminho és tu
29
A arte não é jogo é vida
30
Todos os dias são eternos
31
O tempo girafa de três cabeças
multiplicou-se indefinidamente
32
Por toda a parte nasceram monstros
homens máquinas em série
33
O grande crime somos nós
escravos mártires do progresso
34
O mundo
brinquedo de um deus criança
nós não somos deste mundo
35
Bonecos articulados
exigimos
36
O espectáculo da vida
monótono às vezes sórdido
37
Imagens sobrepostas sempre as mesmas
38
O trágico quotidiano
um menino a dizer obscenidades
39
Merda para os primeiros
merda para os últimos
40
Perdemos o ritmo
desde o princípio dos tempos
41
Eu sou a hora eu sou o mundo
o único ritmo sou eu
42
Os outros podem sorrir
nasceram longe tam longe num outro mundo
43
Ignoram o dia estéril
o dia estéril são eles
44
Dissonâncias
um íbis descobriu o polo norte
45
Jazz movimento perpétuo
monótono trágico
documento apócrifo
46
Desnudem a paisagem
é preciso acabar com o verde
47
Abram o ventre a todas as mulheres
é preciso quebrar com o futuro
48
Ao menos sejamos
qualquer cousa de póstumo
49
Farsa ou tragédia
a vida é isto
50
o clow entrou na catedral
e ajoelhou-se
51
O menino Jesus fugiu do céu
entrou no circo e ajoelhou-se
52
Nossa Senhora sorriu
53
No dia seguinte os jornais de todo o mundo
garantiram — o poeta enlouqueceu
54
Talvez a hora cor-de-rosa
decididamente a hora cor-de-rosa
55
É preciso destruir o cor-de-rosa
56
Um dia saberás porquê
57
Entretanto és presente
e o mundo é presente em ti
58
O espectáculo cinzento escuro do mundo
59
O caminho da esperança é o heroísmo ou o sacrifício
os deuses todos esperam-te
60
Eu sei talvez isto seja absurdo
Não importa é preciso
josé manuel
«eros» — 5-6
1953
2 comentários:
Parabéns pelo blogue, já que publica regularmente excelente poesia.
Um abraço.
Alguém a que cheguei há dias por uma via totalmente diferente: uma casa que terá mandado construir, Casa da Rua de Alcolena, e que creio terá sido destruída. Na altura, ocorreu-me que havia sido incluído na Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, de E M Mello e Castro & M Alberta Menéres, edição do início dos anos 70. Foi, de facto, com este mesmo texto.
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