06 março 2023

a. m. pires cabral / águas novas



 

Além de fornalhas, a noite também pode
ser um cadeirão onde repouso,
revolvendo na boca os caroços do tempo
como rebuçados de mentol,
 
sentado de perfil contra a luz fria
que vem pela janela, comparável
a um peixe que, sequestrado num charco,
espera libertar-se assim que venham
águas novas de Novembro.
 
 
a.  m. pires cabral
a noite em que a noite ardeu
cotovia
2015
 



 

05 março 2023

amadeu baptista / carta de atenas

 



6
 
Nessas noites ouvia-se o rio respirar, a mãe
dizia secretas orações, os lobos uivavam
no centro da cidade. Enquanto dormiam os irmãos,
eu apertava uma velha caixa de sapatos contra o peito,
     um coelho
corria no escuro, murmúrios ancestrais circulavam no interior
     das salas. Dizia-se
que os deuses nos temiam, gente
completamente impotente perante a nossa escuridão, um
     tempo
surdo, maligno,
em que recrudescia a vontade de chorar.
 
 
 
amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999




04 março 2023

albano martins / preciso de arrumar a casa

 
 
Preciso de arrumar a casa, rever o sistema, brunir
os móveis e o tacto.
Preciso de opor o tempo ao tempo.
O espaço ao espaço.
 
 
 
albano martins
por ti eu daria
os remos escaldantes (1983)
glaciar
2021




03 março 2023

al berto / doze moradas de silêncio

 


3
 
estamos quase no tempo do vinho maduro
soube-o pelo aroma que se desprende do teu sexo
intenso mel transportado pelas fulvas abelhas
oferenda de verão árduo… cal secreta
onde garatujámos corações a canivete
 
noite dentro
embriago-me com vinho macio… sentado na desolação
duma esplanada mal iluminada debaixo dos pinheiros
o orvalho humedece o caderno em cima da mesa o lápis
a caneta um refrigerante intragável… tua ausência
pressentida na fresca seda dos caracóis
 
e mais além um valado de soturnas açucenas
uma árvore seca pássaros e canaviais… caminho
por onde nunca me aventurei
 
 
al berto
doze moradas de silêncio 1978/1979
o medo
assírio & alvim
1997
 



02 março 2023

ibn ar-ruh / dá-me o tempo eterna luta

 



 

dá-me o Tempo eterna luta,
duro dano e os piores castigos.
se do futuro alguém quer se defender,
esse sou eu! ninguém mo disputa.
no mercado dos versos, meus amigos,
sou daqueles que não ficam por vender.
vou sacudindo o tronco do desejo
quando seus ramos encurvados vejo
com o peso dos frutos a pender.
 
 
ibn ar-ruh
o meu coração é árabe
adalberto alves
assírio & alvim
1999




01 março 2023

joan margarit / fascinante inverno

 



 

As papoilas vão desaparecendo,
eliminadas como ervas daninhas.
Em breve já se não prolongarão
as rubras pinceladas do vento pelos campos de trigo.
Quem poderá entender um dia
os quadros de Van Gogh?
Habito ainda um mundo familiar,
embora subtis mudanças já me avisem:
não voltará a ser o meu.
Não é nenhum inferno: permite compreender.
Vem o esquecimento, tranquiliza.
E volta, volta sempre, a alegria.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




28 fevereiro 2023

pier paolo pasolini / apontamento

 
 
Por que existe a poesia lírica? Porque só eu,
e mais ninguém no meu lugar, sei quais são as
                                            longas tradições
da dor que nasce da cor do ar que escurece;
a tarde e as nuvens anunciam, juntas, a noite
                                                  e o Inverno.
Que olhos se enchem desta triste luz a não ser
                                                      os meus?
 

 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




27 fevereiro 2023

joaquim manuel magalhães / a tolerância exige a reciprocidade

 



 

                     *
 
A tolerância exige a reciprocidade.
«Tenho tão presente
a grande dor» (Camões).
 
Um celerado pénis um torso
a clavícula parva de argumento,
nele o monopólio não intimava,
voga numa carapaça de trégua e linho
fluvial, em brejo de polimento.
Inculcaria turgidez a um impotente.
 
Melros em voo rasante.
A ilharga na polpa de cada dedo.
O meu rancor prega nele uma herança
de alevanto. Um adeus insensato
no índice da ternura.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
canoagem
relógio d´água
2021




26 fevereiro 2023

herberto helder / e eis súbito ouço

 



 

e eis súbito ouço num transporte público:
as luzes todas acesas e ninguém dentro de casa:
sete ou nove metros de labaredas,
e nem um grito, um sussurro, uma palavra:
só a casa ocupada pela grandeza da estrela,
a grandeza primeira
 
 
 
herberto helder
servidões
assírio & alvim
2013





25 fevereiro 2023

a. c. swinburne / encontro



 
Se o amor fosse o que é a rosa,
     E eu fosse como uma folha,
As nossas vidas cresceriam juntas
No tempo sombrio ou no tempo de uma canção,
Nos campos ventosos ou nos cercados floridos,
     No prazer verde ou na dor sombria.
Se o amor fosse o que é a rosa
     E eu fosse como uma folha.
 
Se eu fosse o que são as palavras
     E o amor fosse como uma melodia
Com um duplo som e um único
Deleite confundir-se-iam os nossos lábios
Com alegres beijos como são os pássaros
     Que procuram a suave chuva do meio-dia.
Se eu fosse o que são as palavras
     E o amor fosse como uma melodia.
 
Se tu fosses a vida, meu amor,
     E eu, o teu amor, fosse a morte,
Brilharíamos e apagar-nos-íamos juntos
Antes de Março amenizar o tempo
Com o junquilho e o estorninho
     E o fecundo alento das horas.
Se tu fosses a vida, meu amor,
     E eu, o teu amor, fosse a morte.
 
Se tu fosses serva da dor
     E eu fosse o pajem da alegria,
Brincaríamos durante a vida e as estações
Com olhares amorosos e pérfidos,
Com lágrimas da noite e da manhã
     E os risos de donzela e adolescente.
Se fosses serva da dor
     E eu fosse o pajem da alegria.
 
Se tu fosses a dama de Abril
     E eu fosse senhor em Maio,
Arremessaríamos flores durante horas
E colheríamos flores durante dias
Até que o dia fosse sombrio como a noite
     E a noite como o dia fosse luminosa.
Se tu fosses dama de Abril
     E eu fosse senhor em Maio.
 
Se tu fosses a rainha do prazer
     E eu fosse o rei da dor,
Perseguiríamos juntos o amor,
Arrancaríamos as suas penas para voar
E daríamos ritmo aos seus pés
     E refrearíamos a sua boca.
Se tu fosses a rainha do prazer
     E eu fosse o rei da dor.
 
 
 
a. c. swinburne
poemas
tradução de maria Lourdes Guimarães
relógio d’ água
2006
 


 


24 fevereiro 2023

marcos foz / arca e usura

 
[…]
 
chegar a terra incógnita e
de mãos apertadas atrás das costas
explicar a nós mesmos que daí adiante
acabaram os desenhos no trilho poeirento
 
é tempo de tirar os açaimes às ideias
que moldam o caminho e de começarmos
a iniciação ao labor da batota espreitando
um pouco mais pelo limite da venda
 
com os sapatos a espelharem a barbárie
de quem se perdeu propositadamente
um moleiro apanha-nos entre a sombra
do moinho e o toque das buganvílias
 
pergunta-nos o ofício
e cegos de sol não temos oferenda convincente
até que o velho pergunta se somos poetas
que é hábito irem ali alguns amigos da sua filha
 
um rebuçado-surpresa invade-nos o palato
como se durante o sono nos enchessem a
boca de sargaço respondemos que não muito obrigado
– espero somente o vento certo para continuar
 
 
 
marcos foz
arca e usura
edição do autor
2019





 

23 fevereiro 2023

ángél gonzález / aniversário

 
 
Reparo nisto: em como me vou tornando
mais dúbio, mais confuso,
dissolvendo-me num ar
quotidiano, tosco
farrapo de mim, esfiapado
e de punhos esfolados.
 
E compreendo: vivi
mais um ano, e isso é muito duro.
Bater o coração todos os dias
quase cem vezes por minuto!
 
Para viver um ano é preciso
morrer muitas vezes muito.
 
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018
 


22 fevereiro 2023

anna akhmatova / no quadragésimo ano

 



4.
 
Era eu a que sabia da insónia
Todos os precipícios e veredas,
Mas esta é um tropel de cavalaria
Ao uivo de clarim que ficou selvagem.
Entro em casas esvaziadas,
No recente aconchego de alguém.
Tudo silencioso, só as brancas sombras
Nos alheios espelhos flutuam.
E lá na neblina o quê – a Dinamarca,
A Normandia ou dantes
Eu própria estive aqui,
E isto – uma reedição
Dos minutos para sempre esquecidos?
 
1940
 
 
anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003