21 dezembro 2020

antónio osório / fala o arrumador de automóveis

 
 
Assustado com a miséria e estes anos,
pouco espero de Deus e dos homens.
Não mendigo, olho de soslaio, adivinho,
sem gratidão guardo no bolso os óbolos.
E fui pescador, depois faroleiro: longe
deitava a alma, relâmpago
sobre falésias, em estrelas tocava,
a sirene era o meu grito de amor.
Transluzente e distante e bom
como clarões de um farol nunca foi fácil:
algo se afundava debaixo de mim,
desconhecida culpa. Odeio, sim, odeio
este parque onde chuva e sol impõem as mãos
e na pele penetram sem bálsamo.
Primeiro a luxúria, depois vinho,
escuridão. No fundo de um poço
cujas paredes ressumam lágrima e avencas.
Custar ganhar a vida e perdê-la.
Tudo foi defraudado, sou eu
– eu ou alguém por mim – quem aperta
desde a infância o nó que me estrangula.
 
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982




 

20 dezembro 2020

carlos de oliveira / descida aos infernos

 
 
6
Sempre para o centro da terra
onde os metais com sede
sonham devoradoramente
o sangue dos mineiros.
 
Queimando já a pele e os cabelos
nas combustões do enxofre, do granito,
desço alucinado
com pedra a ferver nos pulmões
e pedra em chamas a acender-me os gritos.
 
Como unhas de mercúrio fulgente
crescem-me dos olhos e dos dedos
nunca sonhados medos, nunca tanto
fulgor de lágrimas doentes.
 
 
 
carlos de oliveira
descida aos infernos
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001




19 dezembro 2020

yvette k. centeno / fim do ano

 
 
 
devolvo-te ao sonho
e à palavra
se é sonho
e se é palavra
o que desejas
 
devolvo-te
a ti mesmo
se acaso
te procuras
 
desvio a luz
para que olhando
vejas
 
 
 
y. k. centeno
perto da terra
editorial presença
1984

 




18 dezembro 2020

antónio ramos rosa / mas agora…

 
 
Mas agora estou no intervalo em que
toda a sombra é fria e todo o sangue é pobre.
Escrevo para não viver sem espaço,
para que o corpo não morra na sombra fria.
 
Sou a pobreza ilimitada de uma página.
Sou um campo abandonado. A margem
sem respiração.
 
Mas o corpo jamais cessa, o corpo sabe
a ciência certa da navegação no espaço,
o corpo abre-se ao dia, circula no próprio dia,
o corpo pode vencer a fria sombra do dia.
 
Todas as palavras se iluminam
ao lume certo do corpo que se despe,
todas as palavras ficam nuas
na tua sombra ardente.
 
 
antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985





17 dezembro 2020

manuel cintra / os primeiros passos…

  
 
   Os primeiros passos são mais ou menos perros.
 
 
   Devagar, descola-se a noite do peito.
   Nevoeiro, em pedaços, entorpece os ouvidos.
   Frio, às baforadas, morde nuvens nos olhos.
   E os ruídos que contorcem a manhã
   não são forçosamente o único fechar de porta
   com torcer
 
 
(e pergunto à larva se dói tecer o casulo, à carne da
borboleta se a morte próxima responde ao recente dei
tar de ovos. Tento dosear marés de lembrança e de
esquecimento.)
 
 
   O que eu quero é ser como o sol,
   que, segundo consta, nunca arrefeceu.
 
 
(e a coluna vertebral do tempo
                                            osso a osso a oiço
 
 
 
manuel cintra
do lado de dentro
editorial presença
1981






16 dezembro 2020

albano martins / compêndio

 
 
Dizias: daqui o mar parece
uma tarântula
azul. Eu respondi:
vermelhas
são as flâmulas
das algas e o fermento
das águas.
                  Escrever
é isso: fazer
da vida uma pauta
e um compêndio de espuma.
 
 

albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999




 

15 dezembro 2020

adolfo casais monteiro / claro e simples

 
 
Tudo é claro para quem
olha sempre no sentido
oposto àquele onde está
aquilo que não é claro.
 
Tudo é simples para quem
adia sempre o momento
de olhar de frente a ameaça
de quanto não tem resposta.
 
Tudo é nada para quem
descreu de si e do mundo
e de olhos cegos vai dizendo:
Não há o que não entendo.
 
 
adolfo casais monteiro
voo sem pássaro dentro
1954




 

14 dezembro 2020

miguel martins / faltam cinco semanas, quase à justa,

 
 
Faltam cinco semanas, quase à justa,
para ficar sem casa, para ficar sem lua
(de merda, mas lua) onde aguardar a morte.
Faltam cinco semanas, talvez menos,
para que esta casa, como as outras,
seja uma linha na vã biografia
de tudo o que não fui e não serei.
Faltam cinco semanas (menos mal?)
para ingressar no nomadismo extremo,
desporto radical ao acesso dos velhos
com metade dos dentes e a estupidez
         inteira.
Eu não gosto de cães, gosto de tectos,
e faltam cinco emanas, mais ou menos,
para viver nas sombras de um canil
a que parece que se chama mundo.
 
 

miguel martins
telhados de vidro n.º 19 . maio . 2014
averno
2014




13 dezembro 2020

armando silva carvalho / conversa cortante

 
 
As navalhas conversam numa pausa mansa
e sob o ardor do verão as ancas
as ancas amolecem.
É na sombra da sombra que o seu metal
deslumbra e o desejo estremece
no chão das catacumbas.
O seu fulgor exacto rebrilha
rente às praias onde se abusa do tempo
que já devora as dunas.
Em cada corpo em chaga um sol negro rebenta
e o mar preso ao passado
devolve à multidão exaltados naufrágios.
 
 

armando silva carvalho
técnicas de engate 1979
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007

 




12 dezembro 2020

alberto pimenta / aspirina

 
 
da conversa que ontem tive
com o senhor do universo
resultou o seguinte:
 
dentro de cada cabeça
há uma árvore do bem e do mal
com o respectivo jardineiro
 
dentro de cuja cabeça naturalmente
há também uma árvore do bem e do mal
com o respectivo jardineiro
 
o qual dentro da cabeça
tem também uma árvore do bem e do mal
e o respectivo jardineiro
 
e assim por diante
tudo já se vê em dimensões microscópicas
 
mas não sei se entendi bem
o que ele quis dizer
 
 
 
alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990

 



11 dezembro 2020

konstandinos kavafis / cinzentos

 
 
Ao olhar uma opala meio cinzenta
lembrei-me de dois belos olhos cinzentos
que vi; haverá uns vinte anos…
 
………………………………………………………………
 
Durante um mês amámo-nos.
Foi-se embora depois creio que para Esmirna,
para lá trabalhar, e nunca mais nos vimos.
 
Ter-se-ão desfeado – se vive – os olhos cinzentos;
ter-se-á estragado o belo rosto.
 
Memória minha, guarda-os tu tais como eram.
E, memória, o que podes deste meu amor,
o que podes traz-me de volta esta noite.
 
 
 
 
konstandinos kavafis
poemas e prosas
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
1994




10 dezembro 2020

federico garcia lorca / dois marinheiros na margem

 
 
I.
 
Trouxe no seu coração
um peixe do Mar da China.
 
Às vezes vê-se passar
diminuto nos seus olhos.
 
Esquece, sendo marinheiro,
os bares e as laranjas.
 
Olha a água.
 
 
II
 
Tem a língua de sabão.
Lava as palavras e cala-se.
 
Mundo liso, mar frisado,
cem estrelas e um barco.
 
Viu as varandas do Papa
e doirados seios de cubanas.
 
Olha a água.
 
 


federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013




09 dezembro 2020

edgar lee masters / richard bone

 
 
Quando vim para Spoon River
não sabia se aquilo que me diziam
era falso ou verdadeiro.
Traziam-me o epitáfio
e enquanto eu trabalhava eles cirandavam pela oficina
e diziam «Era tão boa pessoa», «Era encantador»
«Não havia mulher mais afável», «Era um verdadeiro cristão».
E eu cinzelava na pedra o que eles me pediam,
ignorando por completo a verdade.
Mais tarde, à medida que convivia com a gente da terra,
já sabia se os epitáfios que me encomendavam
correspondiam ou não à vida do defunto.
Mas continuava a cinzelar aquilo para que me pagavam,
tornando-me cúmplice das falsas crónicas
na pedra das lápides,
tal como faz o historiador que escreve
sem conhecer a verdade,
ou porque alguém o persuade a esconde-la.
 

 
edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003