24 janeiro 2020

fernando lemos / veneno



Veneno
ou uma viola branca
ventre ou duas luvas
brancas

vidro
ou eu abatido na cama

domingo
ou eu recebendo à bala
os vizinhos

tu
ou eu cego de te inventar

eu
ou apesar da fúria
sombra em pedaços
cintilantes


fernando lemos
poesia
porto editora
2019








23 janeiro 2020

juan luis panero / antes que chegue a noite


Antes que chegue a noite sobre o mar
e atire o vento da nortada
as minhas húmidas cinzas para o nada.
Antes que os gastos gestos se dissolvam,
tal como um sorriso que se transforma em esgar
ou os cansados espasmos de um amor extinto.
Antes, ainda, como este sol sobre as ilhas,
tenaz ponto de luz, cor intensa,
que minhas palavras desenhem meu fantasma,
salvo e perdido, na pura intensidade da vida.


juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003









22 janeiro 2020

luiza cantanhêde / sangrias desatadas




Eu sangro sim
Enquanto os galhos
Das benzedeiras
Retalham meu
Corpo de solidão
E fuga

Penitência
Santidade
Fugiram com
Meus pés de
Sangue e de
Barro

Para poder viver
Bato na porta
Do tempo que
Acende a claridade.



luiza cantanhêde






21 janeiro 2020

valter hugo mãe / john balance está morto




vem ver-nos
tarda nada chega a primavera
e as flores que plantámos no
quintal vão florir como
símios loucos aos teus pés




valter hugo mãe
publicação da mortalidade
poesia reunida
terceiro livro
livro de maldições
assírio & alvim
2018







20 janeiro 2020

yvette k. centeno / e as mulheres



E as mulheres
são quase todas brancas
e vermelhas
e todo o dia
esperam pela noite
e quando é noite
acendem-se nas ruas
e esperam
novamente

Persegue-nos a lua
na cidade marítima
de noite

Em cada canto
a lua
persegue toda a gente



yvette k. centeno
o barco na cidade
entre silêncios
poesia 1961-2018
glaciar
2019






19 janeiro 2020

antero de quental / uma amiga



Aqueles, que eu amei, não sei que vento
Os dispersou no mundo, que os não vejo...
Estendo os braços e nas trevas beijo
Visões que à noite evoca o sentimento...

Outros me causam mais cruel tormento
Que a saudade dos mortos... que eu invejo...
Passam por mim, mas como que têm pejo
Da minha soledade e abatimento!

Daquela primavera venturosa
Não resta uma flor só, uma só rosa...
Tudo o vento varreu, queimou o gelo!

Tu só foste fiel - tu, como dantes,
Inda volves teus olhos radiantes...
Para ver o meu mal... e escarnecê-lo!


antero de quental
sonetos






18 janeiro 2020

josé saramago / não há mais horizonte



Não há mais horizonte. Outro passo que desse,
Se o limite não fosse esta ruptura,
Era em falso que o dava:
Numa baça cortina indivisível
De espaço e duração.
Aqui se juntarão as paralelas,
E as parábolas em rectas se rebatem.
Não há mais horizonte. O silêncio responde.
É Deus que se enganou e o confessa.



josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018








17 janeiro 2020

luís falcão / o clarão dos gritos



O clarão dos gritos
rasurando
nos seus próprios fundamentos
a matéria luminosa
que se insinua nos limites do silêncio
acendendo
na quietude de uma ordem imprescritível
a devastação
daqueles que pensavam vir apenas por uma noite



luís falcão
bruma luminosíssima
artefacto
2016







16 janeiro 2020

francis ponge / o fogo



     O fogo classifica: primeiro, todas as chamas se dirigem num certo sentido…
     (Não se pode comparar o andar do fogo senão ao dos animais: é preciso que ele deixe um lugar para vir a ocupar um outro; anda ao mesmo tempo como uma amiba e como uma girafa, sacode o pescoço, rasteja de pé)…
     Depois, enquanto as massas metodicamente contaminadas desabam, os gases que se libertam vão sendo transformados numa única rampa de borboletas.


francis ponge
alguns poemas
tradução de manuel gusmão
livros cotovia
1996











15 janeiro 2020

claudio rodríguez / adeus



Trocaria a vida por qualquer coisa
esta tarde. Qualquer coisa pequena,
se alguma há. Martírio é o sereno
rumor sem escrúpulos dos teus sapatos
rasos, que já não voltam. Que vitórias
quer quem ama? Porque são tão direitas
as ruas? Não olho para trás, mas
já não te sei perder de vista. Esta
é a terra do escárnio: os amigos dão
informações falsas. A minha boca
beija o que morre, e aceita-o e até a pele
do lábio é a do vento. Adeus. É útil,
normal este facto, dizem. Aceita
as nossas coisas, tu que podes tê-las.
Eu vou para onde me levar a noite.



claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019







14 janeiro 2020

rafael mendes / ano novo



a felicidade contagia as casas
afloram bons dias, abraços
saudações aprazíveis a desconhecidos
buzinas e rojões rasgam o céu

famílias relembram histórias
tantas vezes já repetidas
mas apreciadas com esmero
como a impúbere criança

quando já alto o dia
uns repousam vencidos pela fartura
outros permanecem em silêncio
gozando dos momentos derradeiros

rápido virá o amanhã
e tudo não será como hoje

lá a corrupção e a chaga
aqui remanso e júbilo



rafael mendes
ensaio sobre o belo e o caos
editora urutau
2019






13 janeiro 2020

konstandinos kaváfis / quando se excitam



Procura guardá-las, poeta
por muito que sejam poucas as coisas que podem ser detidas.
As visões do teu erotismo.
Mete-as, meio escondidas, nas tuas frases.
Procura segurá-las, poeta,
quando se excitam na tua mente,
à noite, ou no esplendor do meio-dia.



konstandinos kavafis
os poemas
II (1916-1918)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005








12 janeiro 2020

vitorino nemésio / ultra-violeta



Sonho muito.
Tiro pedaços de sangue à noite, pretérito do dia
(Eu é que fico pretérito – preterido: - a noite irá).
Esclareço assim pequenas confusões adiantadas no senso,
Na cinza científica (azoto, silício, etc.),
No preconceito serial caligrafado a néon.
Escrevo torto/morto
E de repente tenho boa letra, vivo e não rimo:
Fugiu do meu sangue o ritmo do tambor auricular,
E, à sístole que fecha, a diástole abre e levanta
A Catedral do Homo Sapiens que abençoa sem mitra
                                                                    [os ignorantes,
O Poeta de sangue, dador de sangue,
Cheio de picadas e rosas como uma pulga e um lençol,
Uma roseira brava ou um avental de menina,
Seja Rosa de Lima ou vá pela mão do Snr. Rosa.

Sangro muito.
Forço a protecção do epitélio
Destruindo o equilíbrio aos glóbulos sem núcleo,
Meras esferas admiráveis, rubras,
Levemente gordurosas,
Pã, pã, reflectindo o silêncio interior nas almofadas
E tingindo as estradas da pintura sagrada do acidente
(Cruz ao morto!).

Sangro muito.
Avermelho o branco deslumbrante até ao infra
E deliro ainda mais sobre o violeta, que queima:
Por isso há quem me chame o Pelicano esvaído,
Mas eu, o pai dos Nomes, chamo-me só Poeta,


vitorino nemésio
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987