12 dezembro 2017

antónio ramos rosa / no silêncio da terra




No silêncio da terra. Onde ser é estar.
A sombra se inclina.
Habito dentro da grande pedra de água e sol.
Respiro sem o saber, respiro a terra.
Um intervalo de suavidade ardente e longa.
Sem adormecer no sono verde.
Afundo-me, sereno,
flor ou folha sobre folha abrindo-se,
respirando-me, flectindo-me
no interior aberto.
Não sei se principio.
Um rosto se desfaz, um sabor ao fundo
da água ou da terra,
o fogo único consumindo em ar.

Eis o lugar em que o centro se abre
ou a lisa permanência clara,
abandono igual ao puro ombro
em que nada se diz
e no silêncio se une a boca ao espaço.

Pedra harmoniosa
do abrigo simples,
lúcido, unido, silencioso umbigo
do ar.

o teu corpo
renasce
à flor da terra.
Tudo principia.



antónio ramos rosa
vagabundagem na poesia de antónio ramos rosa
seguido de uma antologia
casimiro de brito
quasi
2001





11 dezembro 2017

rainer maria rilke / elegias de duíno



a segunda elegia

Todo o anjo é terrível. E todavia, ai de mim,
a vós cantei, ó aves quase mortais da alma,
sabendo como sois. Onde param os dias de Tobias,
quando lá estava um dos mais radiosos, à porta simples da casa,
meio disfarçado para a virgem e já não mais aterrador;
(jovem para o jovem, ao mirar curioso para fora).
Desse o arcanjo agora, o perigoso, de detrás das estrelas,
um só passo a descer delas para cá: de tão forte sobressalto
se nos destruiria o próprio coração. Quem sois vós?

(…)

(excerto)


rainer maria rilke
elegias de duíno e os sonetos a orfeu
trad. de vasco graça moura
quetzal
2017




10 dezembro 2017

natércia freire / não




Não formar nenhuma ideia
Do que somos ou seremos
Mas entre as vozes que fogem
Precisar o que dizemos.
Dormir sonos ante-céus
Abismos que são infernos.
Dormir em paz. Dormir paz,
Enfim a nota segura.
Lembrar pessoas e dias
Que penetraram no espaço
De eventos primaveris.
E dar a mão aos espectros
Beijá-los lendas, perfis.
Amar a sombra, a penumbra
Correr janelas e véus.
Saber que nada é verdade.
Dizer amor ao deserto
Abraçar quem nos ignora
Dormir com quem não nos vê
Mas precisar do calor
De quem nunca nos encontra.



natércia freire
os intrusos
1971





09 dezembro 2017

florbela espanca / tarde de mais...




Quando chegaste enfim, para te ver
Abriu-se a noite em mágico luar;
E para o som de teus passos conhecer
Pôs-se o silêncio, em volta, a escutar...

Chegaste, enfim! Milagre de endoidar!
Viu-se nessa hora o que não pode ser:
Em plena noite, a noite iluminar
E as pedras do caminho florescer!

Beijando a areia de oiro dos desertos
Procurara-te em vão! Braços abertos,
Pés nus, olhos a rir, a boca em flor!

E há cem anos que eu fui nova e linda!...
E a minha boca morta grita ainda:
Por que chegaste tarde, Ó meu Amor?!...


florbela espanca
sonetos
livraria bertrand
1981



08 dezembro 2017

yvette centeno / relato




Da paisagem da sombra
não te direi mais nada.

Percorre-se.

Em cada canto
um abismo.

E entre o pasmo
e o riso

caem pessoas
mortas.



yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998






07 dezembro 2017

sylvia plath / balões




Desde o Natal que eles têm vivido connosco,
Simples
E transparentes,
Ovais animais com alma,
Movendo-se e roçando-se nas sedosas

E etéreas correntes de ar
A guinarem e a rebentarem
Quando atacados, depois fugindo a toda a pressa para uma calma
   ainda tremente.
Serviola amarela, chúmbea azul –
Tais são as estranhas luas com que vivemos,

Não com mobília fúnebre!
Tapetes de corda, paredes brancas
E estes viajantes
Globos de ar fino, vermelhos, verdes,
A encantar

O coração como desejos ou os livres
Pavões que abençoam
O chão antigo com uma das suas penas
Embutida no fundo de eças de metal luzente.
O teu irmão

Mais pequeno faz
O balão dele guinchar como um gato.
Parece estar a ver
Através dele um divertido mundo cor-de-rosa que talvez possa
  comer,
Morde,

Depois senta-se
De novo, pote gordo
A admirar um mundo transparente como a água.
Um resto de vermelho
Esfarrapado na sua mão pequena.



sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996




06 dezembro 2017

wislawa szymborska / a curta vida dos nossos ascendentes




Poucos chegaram aos trinta anos.
A velhice era privilégio das pedras e das árvores.
A infância durava a das crias dos lobos.
Havia que ser rápido, acompanhar a vida,
antes que se ponha o sol,
antes que a primeira neve caia.

Geradoras de filhos aos treze anos,
aos quatro assaltantes de ninhos nos juncais,
aos vinte dirigindo a montaria,
ainda há pouco mal estavam, agora já não estão.
As pontas do infinito depressa se alongavam.
As bruxas ruminavam os anátemas
ainda com toda a primeira dentição da mocidade.
À vista de seu pai o filho amadurava,
ao baço olhar do avô brotava o neto.

E por fim nem sequer os anos eles contavam.
Contavam tachos, redes, barracas e machados.
Tão benévolo o tempo para qualquer estrela
e estendia-lhes uma mão quase vazia
para logo a retirar como se achasse pena.
Um passo mais, mais dois ainda,
ao longo de um rio tremeluzente,
que das trevas escorre e as trevas volta.

Não havia nem um momento a perder,
perguntas a adiar, revelações tardias,
se não fora tudo experimentado previamente.
A sensatez não podia esperar pelos cabelos brancos;
havia que ver claro antes de a claridade vir,
ouvir a grande voz antes que o som se propagasse.

O bem e o mal –
pouco sabiam sobre eles e, porém, tudo:
quando triunfa o mal, o bem esconde-se;
quando o bem aparece, fica o mal de atalaia.
Um e outro impossíveis de vencer
ou de afastar para uma distância sem regresso.
Eis porque, se alegria – com angústia misturada,
se desespero – nunca sem esperança muda.
A vida, embora também longa, é sempre curta.
Curta de mais para dizer mais do que isto.



wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998







05 dezembro 2017

luiza neto jorge / pelo corpo



infinita invenção
de pétala a escaldar
desprende o falo

a palavra sublinhada
que é ele a avançar-me
pelo corpo

a porta giratória
que me troca
pelo homem e, a este,

o fértil trajo
que lhe cria mais seios
pelo corpo


luiza  neto jorge
o amor e o ócio
poesia
assírio & alvim
1993





04 dezembro 2017

vasco graça moura / a escola de frankfurt



IX

e uma tarde tu
falaste-me da sombra,
da solidez do reino
de árvores imponderáveis.

mostrei-te a luz das praças
e das arcadas, viste
que a sombra era um reduto
só de acompanhamentos.

e viste o sol, o seu
benéfico poder, as tuas
narinas estremeceram
como se de um perfume

de archotes aromáticos:
as árvores ardiam.


vasco da graça moura
a escola de frankfurt
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007



03 dezembro 2017

fernando pessoa / a esperança como um fósforo inda aceso,




A esperança como um fósforo inda aceso,
Deixei no chão, e entardeceu no chão ileso.
A falha social do meu destino
Reconheci, como um mendigo preso.

Cada dia me traz com que esperar
O que dia nenhum poderá dar.
Cada dia me cansa da esperança...
Mas viver é esperar e se cansar.

O prometido nunca será dado
Porque no prometer cumpriu-se o fado.
O que se espera, se a esperança é gosto,
Gastou-se no esperá-lo, e está acabado.

Quanta acha vingança contra o fado
Nem deu o verso que a dissesse, e o dado
Rolou da mesa abaixo, oculta a carta,
Nem o buscou o jogador cansado.

22-11-1928



fernando pessoa
poesias inéditas (1919-1930)
ática
1956




02 dezembro 2017

fernando echevarría / o horizonte aproxima



O horizonte aproxima
um lugar de pensamento
que a neve traz. Se resigna
à espessura de silêncio
que assenta. Anula a energia
com que desertou o vento.
A luz reconhece-se íntima.
Não abate o candeeiro,
é a neve que a liga
àquele conhecimento
que se recolhe em mobília
adormecendo por dentro.
Agora, a noite confirma
o sono a descer. O vento
tem a neve toda em cima.
Só os lobos estão abertos.



fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998




01 dezembro 2017

ana hatherly / 463 tisanas



395

Há uma sensação de infidelidade na comunicação. Essa verificação faz com que o criador esteja sempre insatisfeito, dominado pelo desejo de fazer cada vez melhor, porque há um fracasso imanente em toda a criação. Essa verificação pode levar a uma tentativa interminável ou ao isolamento pelo silêncio. Mas para o criador o isolamento é a sua oficina.


ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006








30 novembro 2017

toni montesinos gilbert / room 1623




Os meus mortos e eu pensamos,
nesta insónia chuvosa de Nova Iorque,
na vida efémera, no azar que é respirar
aqui ou em qualquer outro sítio.

Os meus mortos e eu
vemos de um décimo sexto andar
a madrugada acesa
por algumas luzes no edifício em frente,
e ouvimos as sirenes dos automóveis ao longe:
polícias ou ambulâncias que levam a vivos ou a mortos
de um lado para outro, enquanto a cidade dorme.

Os meus mortos e eu não temos saudades uns dos outros
neste silêncio inventado da memória,
gaveta para as cartas nunca enviadas
e que se reescrevem pelo amor de sentir a ausência
cada dia de forma diferente, para que não acabe por apodrecer.

Os meus  mortos e eu pensamos recluir-nos no passado
apenas para não ficarmos sozinhos.



toni montesinos gilbert
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000