08 março 2017

ana hatherly / o gato amarelo



durante muito tempo
tentei compreender por
que razão o meu gato Leonardo
sempre tão afectuoso detestava
a mulher da limpeza. Mas
um dia fez-se luz no meu
espírito. Ela chamava-se
Conceição e ele era amarelo.


ana hatherly
estruturas poéticas
1967



07 março 2017

antónio reis / mudamos esta noite



E como tu
eu penso no fogão a lenha
e nos colchões

onde levar as plantas

e como disfarçar os móveis velhos

Mudamos esta noite
e não sabíamos que os mortos
ainda aqui viviam
e que os filhos dormem sempre
nos quartos onde nascem

Vai descendo tu

Eu só quero ouvir os meus passos
nas salas vazias



antónio reis
poemas quotidianos
1967



06 março 2017

erdal alova / a mais velha amiga




Tristeza
Minha velha amiga
Folhas mortas que o Outono vai queimando
Mulher que limpa a casa que vai deixar
Vem, entremos com fúria no Inverno.
Como hei-de olhar o roxo!
Neva e as coisas vão lembrar-se de si mesmas
Uma cidade acorda as chuvas de outrora
Uma tesoura corta as luzes
Rasga o céu dos órfãos
Criança excluída do jogo
Lança um disco para o futuro
O homem vê-se pela primeira vez no seu sangue
Ao pôr-do-sol, o céu de Novembro
Enfia a sua linha no tédio do vizinho
E por fim
O soldado que chora no autocarro
Ganha confiança em si próprio
Quando apareces, tristeza,
Como a mulher que em segredo
Faz um casaco de malha
Mostremos as rosas escondidas
Entremos com fúria no Inverno.


erdal alova
a linguagem de areia   
trad. fiama hasse pais brandão
quetzal
1997





05 março 2017

fernando pessoa / cai chuva do céu cinzento



Cai chuva do céu cinzento
Que não tem razão de ser.
Até o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.

Tenho uma grande tristeza
Acrescentada à que sinto.
Quero dizer-ma mas pesa
O quanto comigo minto.

Porque verdadeiramente
Não sei se estou triste ou não,
E a chuva cai levemente
(Porque Verlaine consente)
Dentro do meu coração.

15-11-1930


fernando pessoa
poesias inéditas (1930-1935)
ática
1955



04 março 2017

carlos de oliveira / cal



A cal
o amor
guardado para os mortos
dissolvente perfeito
da tua solidão
descarnada
em meu peito,
a cal,
o coração.



carlos de oliveira
terra de harmonia
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998




03 março 2017

marin sorescu / criação



Escrevo em terramotos,
E se algumas palavras
Deslizam para longe
A culpa é só da crosta da terra
Pela sua falta de estabilidade.

Nem sabes
Quando se abre um vulcão sob a tua mesa,
E depois de um dia de trabalho
Podes assinar directamente na cinza.

Todas as coisas mudam
De lugar,
A lâmpada do tecto chega-me abaixo do queixo.
A montanha no horizonte entrou-me na boca,
Mordaça de que os restos
Vão ainda ser cuspidos
Pelos meus descendentes até à sétima geração.

A folhagem do cimo das árvores
Mudou-se para dentro do solo
Com medo dos terramotos,

Muitos dos meus antepassados
Mudaram-se para dentro do solo
Com medo dos terramotos.

Só eu continuo a tentar ligar,
Como carris após o descarrilamento
Estas duas palavras,

Que fogem, uma para um lado
Outra para o outro,
Enlouquecidas de terror.


marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997






02 março 2017

pentti saaritsa / afastamento




     O afastamento,
  sempre o mesmo milagre, um movimento
  de arranque para cima, e em seguida
  enganosamente natural.
  Foi esse milagre que nos enlouqueceu?           
  Primeiro uma ilusão,
  e finalmente o real.



pentti saaritsa
poemas
tradução de egito gonçalves 




01 março 2017

pier paolo pasolini / só tu no mundo conheces o meu coração



Só tu no mundo conheces o meu coração
o que sempre fui, antes de qualquer amor.

Cabe-me por isso dizer-te o que é horrível reconhecer:
no seio da tua graça germina a minha angústia.

És insubstituível. Está condenada
à solidão a vida que me deste.

E se não quero estar só! Tenho uma fome infinita
de amor, do amor dos corpos sem alma.
Porque a alma está em ti, és tu...



pier paolo pasolini
poesia in forma di rosa
1964



28 fevereiro 2017

artur lundkvist / agadir



Naufrágio, não no mar mas em terra,
o solo firme havia começado a agitar-se como um mar,
tinham naufragado as casas como navios, desfeitos nos es-
colhos.
Talborj, a cidade branca, a parte mais densamente habi-
tada pelos marroquinos,
era uma só ruína, como se tivesse sido passada por potente
moinho,
onde se acamava o pó como leite derramado por oda a
parte e os náufragos erravam à sua volta,
tais múmias erguidas da poeira estratificada de milhares
de anos, levantando, ao moverem-se, nuvens de pó branco,
manchado de sangue, embebido de sangue como laca em
papel branco.
E os mortos jaziam como desenterrados duma pederneira,
o cabelo como talhado em pedra branca por sobre as más-
caras de gesso dos rostos,
rondavam os cães como brancos fantasmas, receosos,
os ratos corriam em volta, brancos à luz do sol, ousados,
eram brancas as árvores e pareciam mortas, fumeando ao
vento,
a água escorria sob películas brancas, demasiado resis-
tentes para se romperem,
as crianças que choravam de mansinho cavavam com os nós
dos dedos, em volta dos olhos, sulcos cada vez mais sombreados,
na alvura dos rostos.


artur lundkvist
agadir
trad. de silva duarte
delfos
1962





27 fevereiro 2017

marguerite yourcenar / utilidade do amor



Utilidade do amor. Os voluptuosos arranjam-se para conseguir sem ele a exploração do prazer. Não sabemos que fazer dos delírios, no decurso de uma série de experiências sobre a mistura e a combinação dos corpos. Depois, descobrimos que há descobertas a fazer num hemisfério sombrio. Tínhamos necessidade dele para nos ensinar a Dor.


marguerite yourcenar
fogos
trad. de maria da graça morais sarmento
difel
1995



26 fevereiro 2017

alberto caeiro / e há poetas que são artistas


XXXVI

E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...

Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!...
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.

Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira.
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem se eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao colo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos
E não termos sonhos no nosso sono.

s.d.


alberto caeiro
o guardador de rebanhos




25 fevereiro 2017

vitorino nemésio / nada



Eu no meu corpo como o tigre no seu bafo.
O mundo leva iguais a jaula e a casa.
Somos a vida que não é,
Fora não ser a morte.
Nem mesmo nada somos:
Estamos no que fomos
À espera do que importe.

Não se pode sair, e entrar já não:
Nada já deu entrada ao só nascido
Que é esse mesmo Nada:
Pelo que Nada não é nada,
Mas é nada
Em Deus que tudo gera.
Eu na minha alma como o bafo no seu tigre.




vitorino nemésio
o verbo e a morte
antologia poética
asa
2002



24 fevereiro 2017

gil t. sousa / o erro de deus



esqueçamos então que a loucura
é hábil e que é pelo corpo que se escoa
o tempo

e que o corpo é um vento que
nos abandona e nos deixa sem nome
para o sangue, ou para as mãos

a nossa solidão é íngreme
como as grandes fragas negras
sob o voo dos pássaros – esse abismo
onde muito levemente os olhos se deixam
ainda chamar por outros olhos

e a eternidade desiste docemente
como se fosse um erro de deus



gil t. sousa