28 fevereiro 2017

artur lundkvist / agadir



Naufrágio, não no mar mas em terra,
o solo firme havia começado a agitar-se como um mar,
tinham naufragado as casas como navios, desfeitos nos es-
colhos.
Talborj, a cidade branca, a parte mais densamente habi-
tada pelos marroquinos,
era uma só ruína, como se tivesse sido passada por potente
moinho,
onde se acamava o pó como leite derramado por oda a
parte e os náufragos erravam à sua volta,
tais múmias erguidas da poeira estratificada de milhares
de anos, levantando, ao moverem-se, nuvens de pó branco,
manchado de sangue, embebido de sangue como laca em
papel branco.
E os mortos jaziam como desenterrados duma pederneira,
o cabelo como talhado em pedra branca por sobre as más-
caras de gesso dos rostos,
rondavam os cães como brancos fantasmas, receosos,
os ratos corriam em volta, brancos à luz do sol, ousados,
eram brancas as árvores e pareciam mortas, fumeando ao
vento,
a água escorria sob películas brancas, demasiado resis-
tentes para se romperem,
as crianças que choravam de mansinho cavavam com os nós
dos dedos, em volta dos olhos, sulcos cada vez mais sombreados,
na alvura dos rostos.


artur lundkvist
agadir
trad. de silva duarte
delfos
1962





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