08 junho 2016

jorge luís borges / a recoleta



Convencidos de caducidade
por tantas nobres certezas do pó,
demoramo-nos e baixamos a voz
entre as lentas filas de panteões
cuja retórica de mármore e sombra
promete ou antecipa a desejável
dignidade de ter morrido.
Belos são os sepulcros,
o despido latim e as firmes datas fatais,
a conjunção do mármore e da flor
e as pracetas com frescura de pátios
e os muitos ontens da história
hoje parada e única.
Enganamos essa paz com a morte,
cremos ansiar pelo nosso fim
e ansiamos pelo sonho, a indiferença.
Vibrante nas espadas, na paixão,
adormecida na hera,
somente a vida existe.
O espaço e o tempo são as suas formas,
são instrumentos mágicos da alma,
e quando ela se apagar,
vão consigo apagar-se o espaço, o tempo e a morte,
como ao cessar a luz
caduca o simulacro dos espelhos
que a tarde já foi apagando.
Sombra benigna das árvores,
vento com aves, que ondeia nos ramos,
alma que se dispersa noutras almas,
seria um milagre se deixassem de ser,
milagre incompreensível,
mesmo que a sua imaginária repetição
avilte com horror os nossos dias.
Tudo isto pensei na Recoleta,
lugar das minhas cinzas.


jorge luís borges
obras completas 1923-1949 vol. 1
fervor de buenos aires (1923)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998



07 junho 2016

herberto helder / o poema


III

Às vezes estou à mesa, e como ou sonho ou estou
somente imóvel entre a aérea
felicidade da noite. O sangue do mundo corre
e brilha. Parece que a minha carne
se distrai entre as coisas altas da primavera nocturna.
Ocupo-me nos símbolos, e gostaria
que o meu coração
entontecesse lentamente, que meu coração
caísse numa espécie de extática e sagrada loucura.

Porque, enquanto estou só e o céu rodeado de lírios
amarelos, e animais de luz, e fabulosos
órgãos de silêncio, descansa
sobre os meus ombros
seu doce peso antigo - eu penso
que haveria uma palavra vingativa e pura,
uma esfera com espinhos de fogo que me ferisse
primeiro na voz ou na castidade
ou na tenebrosa
fantasia, e que depois me ferisse
na minha própria morte, sob a intensa
profusão celeste.

Penso que deve existir para cada um
uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de sentido e que,
vinda de um ponto fogoso da treva, batesse
como um raio
nos telhados de uma vida, e o céu
com águas e astros
caísse sobre esse rosto dormente, essa fechada
exaltação.

Que palavra seria, ignoro. O nome talvez
de um instrumento antigo, um nome ligado
à morte - veneno, punhal, rio
bárbaro onde
os afogados aparecem cegamente abraçados a enormes
luas impassíveis.
Um abstracto nome de mulher ou pássaro.
Quem sabe? - Espelho, Cotovia, ou a desconhecida
palavra Amor.

Somente sei que a minha vida estremeceria, que
os braços sonâmbulos
iriam para o alto e queimariam a ligeira
noite de junho, ou que o meu
coração ficaria profundamente louco. E nessa
loucura
cada coisa tomaria seu próprio nome e espírito,
e cada nome seria iluminado
por todos os outros nomes da terra, e tudo
arderia num só fogo, entre o espaço violento
do mês de primavera e a terra
baixa e magnífica.

Com grandes dedos eu tocaria as trémulas
campânulas dos signos, e beijaria
as rodas excitadas do ar. Os ossos
cantariam sob os pequenos vulcões dos frutos
e, dentro dos tanques, tombaria a água
infantil da aurora. Comer ou sonhar ou estar
à mesa da fantasia nocturna
seria para um homem só, sob a abóbada da cabeça,
como o espírito caído dentro da forma
e a forma incrustada, como uma lâmpada,
na inspiração da cabeça.

– Cada boca pousada sobre a terra
pousaria
sobre a voz universal de outra boca.



herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



06 junho 2016

rené char / força clemente



Sei onde me entravam as minhas insuficiências, vitral quando a flor se aparta do sangue do jovem Verão. O coração de água do sol tomou o lugar do sol, tomou o lugar do meu coração. Esta noite, pode ser que a grande roda errante tão grave do desejo seja apenas visível a meus olhos. Poderei eu alguma vez naufragar noutro sítio?

         
rené char
furor e mistério
l´avant monde
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000



05 junho 2016

mário de sá-carneiro / serradura



A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.

E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.

Pois é assim: a minh´ Alma
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.

Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o «Matin» de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo:

Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa.

Folhetim da  «Capital»
Pelo nosso Júlio Dantas —
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual…

O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia! …

Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate,
Se encontra a porta aberta…

Isto assim não pode ser…
Mas como achar um remédio?
— Pra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer:

O que era fácil — partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo
De barrete de papel

A gritar: «via a Alemanha» …
Mas a minh´ Alma, em verdade,
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade…

Vou deixá-la — decidido —
No lavabo dum Café,
Como um anel esquecido.
É um fim mais raffiné.

Paris, Setembro  1915


mário de sá-carneiro
poemas



04 junho 2016

níkos kavvadías / o piloto nagel



Nagel Harbor, um piloto norueguês de Colombo,
depois de pôr em suas rotas certas os navios
que zarpavam para portos ignotos e distantes,
descia para o barco, rosto grave, pensativo,
as duas mãos rudes cruzadas adiante do peito,
e, com seu velho cachimbo de barro fumegando,
a falar consigo mesmo nalguma língua nórdica,
ia-se embora enquanto as naus sumiam no horizonte.

Nagel Harbor, ex-capitão da marinha mercante,
depois de ter corrido o mundo inteiro, certo dia
cansou-se e resolveu ficar de piloto em Colombo.
Mas lembrava-se sempre do seu país tão distante
e das ilhas que estão cheias de vozes, as Lofoten.
Um dia, de repente, morreu dentro do seu barco
de piloto, ao escoltar o navio-tanque «Fjord Folden»
que partia, fumegando, para as ilhas Lofoten…


níkos kavvadías
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. josé paulo paes
assírio & alvim
2001



03 junho 2016

inês lourenço / ária



É belo o tempo de Inverno,
no silêncio, a lenha húmida
das maternas canções da chuva.
Na lentidão de Janeiro
fica mais longe a morte. As aves
habitam nos beirais
como príncipes destronados.


inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015




02 junho 2016

daniel jonas / a casa despida


Uma vez mais
a casa despida.
Lentas fotografias, moles molduras,
álbuns blindados, o pó de tudo,

o silêncio prevalecente
da despedida.
Uma casa mais
eu deixo.

Por vezes parece que
sou eu quem fica
e ela que me deixa.


daniel jonas
bisonte
assírio & alvim
2016



01 junho 2016

rui diniz / colagem



Albéniz percorreu as épocas mesetárias
num velho Renault de 1911. O seu
sorriso era a herança de um veleiro
ou um corsário do tempo de isabel, a católica.
O campeão dos bebedores de cervejas,
um tal hornblwer, espalhava a alegria
por todo o país. A viagem diluía as ruas
de basalto, os oleiros de córdova, a cera
das próprias asas. E os pavios das velas
extintos, extintos.

Foi o vinho tinto, catalunha
mais de um mês durou a botija
de couro.
A cantábria
ébria
ufana
do áspero vento. A virgem lola.

Músicos d´españa.



rui diniz
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987






31 maio 2016

eloy sánchez rosillo / lembra-te



                Quando o acaso ou o costume, dentro de muitos anos,
de novo aqui te tragam, se fores vivo, e a vida
para ti seja só lembrança dissipada
dos antigos dias, lembra-te que houve um tempo
em que as coisas, por milagre, foram de outra maneira:
lembra-te que hoje este jardim
te ofereceu sua paz, das roseiras
em flor, do sol que te acompanha
e te ajuda com a sua luz tépida
a ser feliz e a saber que és jovem.



eloy sánchez rosillo
as coisas como foram
trad. josé bento
assírio & alvim
2004



30 maio 2016

faraj birqdar / e quando o desespero



E quando o desespero
vier bater à tua porta
levanta-te, escreve uma mensagem simples
na parede
ESTE HOMEM ESTÁ DESESPERADO

A seguir diz isto ao teu senhor, o sultão:
A tua cela não é mais estreita que a sua sepultura,
Nem mais duradoura que a sua vida.
Há-de chegar o dia em que a terra
também há-de acolher o seu cadáver,
primeiro os pés
com o esquecimento a acompanhar o funeral.


faraj birqdar
a palavra interdita
tradução de Maria de Lourdes Guimarães
campo das letras
2001



29 maio 2016

egito gonçalves / identificação



O areal é o desenho branco do teu corpo
E o rio corre como se tu não existisses…
Sonolentas pálpebras cerrando-se
As nuvens cortam as manchas do luar.

Aguardando o quebrar da tua voz
Que a sulcará de ternura e de ruído
A paz ronda a silenciosa margem
Onde se estende o teu vulto imaginado


egito gonçalves
o amor desagua em delta
editorial inova
1971


28 maio 2016

daniel faria / sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos



Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse

Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor, na operação poderosa
Do amor

Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados

Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue

Na água corrente

Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar


daniel faria
homens que são como lugares mal situados
fundação manuel  leão
2002



27 maio 2016

heiner müller / poema antigo



De noite atravessando o lago a nado o momento
Que te põe em causa Já não há outro
Finalmente a verdade Que tu mais não és que uma citação
De um livro que não escreveste
Podes escrever uma vida para negar isto na tua
Fita de máquina descorada O texto lê-se à transparência



heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997