22 agosto 2015

fernando pinto do amaral / confessionário



Vagueara contigo de mãos dadas
pela Piazza del Duomo, àquela hora
ainda polvilhada de turistas
japoneses, chineses, coreanos,
todos armados de câmaras de vídeo,
e entrámos quase a medo: a catedral
respirava connosco a indiferença
dos séculos passados e futuros
nas imagens que ardiam com o furor
de agonias infelizes - santos, santas
e outras personagens lancinantes
olhavam para nós do seu abismo
feito de espelhos náufragos, que às vezes
reflectiam a cor das nossas faces.

Depois de alguns minutos por ali,
tacteando, assombrados, todo o peso
do silêncio compacto e vibrante,
reparámos de súbito na fila
dos típicos cubículos católicos
onde alguém escutaria a voz de alguém:
dois ou três ostentavam inscrições
em línguas estrangeiras - que Milão
sempre foi um lugar cosmopolita -
e à beira de um deles, irreal,
ajoelhava-se uma rapariga
de quem só conseguíamos fixar
a translúcida mancha do cabelo
sob um halo de luz avermelhada.

Na sua pose quase clandestina
alheia a tudo o resto, segredava
frases incandescentes, num murmúrio
por onde se escoavam os espectros
da sua vida ainda breve e obscura:
homens com quem dormiu só por capricho,
logo traídos sem saber porquê;
mulheres mais belas, mais inteligentes,
a quem guardou um ódio sufocado
nos sociais limites da amizade;
ou sobretudo essa ambição de ser
invejada por toda a perfeição
de uma existência limpa de ameaças,
desinfectada contra as tentações.

Cá fora o sol desaparecera. Os pombos
recolhiam aos ninhos sobre os rios
de gente absorvida pelas montras
acesas, procurando resgatar
da sombra as suas almas, os cinzentos
corações tão imunes ao remorso
a caminho da noite, plas feéricas
Galerias Vittorio Emanuelle.
Íamos de mãos dadas e sabíamos
que ninguém é capaz de absolver
ninguém, que toda a culpa ressuscita
a cada instante o nosso próprio rosto
e desenha pra sempre o seu perfil
sob o manto de gelo e de palavras.



fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997




21 agosto 2015

maria do rosário pedreira / nesse verão, o vento despenteou os campos e os barcos



Nesse verão, o vento despenteou os campos e os barcos
andaram aos gritos sobre as ondas. A beleza excessiva
das crianças arrombou os espelhos; e as raparigas,
surpreendendo a intimidade dos pais, enlouqueceram
nos corredores e foram perder-se, também elas,
na volúpia dos dias. Nas árvores centenárias

rebentaram frutos que inflamavam a concha das mãos
e escorregavam para a boca com a pressa dos nomes
proibidos. O sol queimou as páginas do livro
interrompido na violência de um poema e revirou
os cantos do único retrato que resistira à moldura
do tempo. De noite, os rapazes deitaram-se às baías

atrás das estrelas; e os amantes, incomodados
com a exiguidade dos quartos, foram fazer amor
nos balneários frios da praia e acordaram nas vozes
um do outro. Já não sei o que disse e o que disseste:

o verão desarruma os sentimentos.

  

maria do rosário pedreira
o canto do vento nos ciprestes
gótica
2001





20 agosto 2015

pedro tamen / e agora: a tua pele.


E agora: a tua pele.
Revejo: é manso o mar.
E sei que o vento corre e que por ele
se colam no teu corpo lembranças de luar.

Descanso: os teus cabelos.
Entrego: já é dia.
Os caules são serenos, e ao vê-los
No côncavo da mão o sol nascia.


pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
s/d





17 agosto 2015

henri michaux / palhaço



Um dia.
Um dia, em breve, talvez.
Um dia hei-de arrancar a âncora que separa o meu navio
dos mares.

Com a espécie de coragem necessária para ser nada e nada de nada,
hei-de abandonar o que me parecia ser indissoluvelmente próximo.
Hei-de trinchá-lo,
virá-lo do avesso,
rompê-lo,
correr com ele de escantilhão.

Vomitando de uma só vez o meu pudor miserável,
as minhas miseráveis combinações e encadeamentos
«de fio a pavio».

Esvaziado do abcesso de ser alguém,
hei-de beber de novo o espaço nutritivo.

A toque de ridículos,
de destituições (o que é a destituição?),
por explosão,
por vazio,
por uma total dissipação-dirrisão-purgação,
hei-de expulsar de mim
a forma que se julgava tão bem encaixada,
composta,
coordenada,
adequada ao meu ambiente e aos meus semelhantes,
tão dignos,
tão dignos,
os meus semelhantes.

Reduzido a uma humildade de catástrofe,
a um nivelamento perfeito,
como depois de um enorme cagaço.

Reconduzido abaixo de toda a medida
ao meu verdadeiro escalão,
ao ínfimo escalão
que não sei qual ideia--ambição me fizera abandonar.

Aniquilado em altura,
em estima.

Perdido num sítio longínquo (ou nem tanto),
sem nome,
sem identidade.

PALHAÇO,
arrasando à gargalhada,
pelo grotesco,
por uma barrigada de riso,
o sentido que,
contra todas as evidências,
atribuíra à minha importância.

Hei-de afundar-me.
Sem rede no infinito-espírito sub-jacente aberto a todos,
eu próprio aberto
a um novo orvalho inacreditável
à força de ser nulo
e raso...
e risível...


  

henri michaux
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999




16 agosto 2015

al-houtay’a / tudo que é novo é belo



De tudo o que é novo nasce um novo prazer,
mas eu  sei  que não é nova a jovem morte.

Ela fere pelas costas, e não é doce como o açúcar,
nem é como o vinho, nem como o sumo das uvas.


al-houtay’a
quatro poemas árabes
o bebebor nocturno
poemas mudados para português
por herberto helder
porto editora
2015



14 agosto 2015

carlos drummond de andrade / balanço



A pobreza do eu
a opulência do mundo

A opulência do eu
a pobreza do mundo

A pobreza de tudo
a opulência de tudo

A incerteza de tudo
na certeza de nada



carlos drummond de andrade
65 anos de poesia
antologia apresentada e
organizada por arnaldo saraiva
o jornal
1989



13 agosto 2015

pentti saaritsa / não irei



Não irei
uma vez mais
onde me esperam
 
Que se passa comigo?                                  
 
Quero ir a algum sítio de improviso
e ser recebido como o filho pródigo.

  
pentti saaritsa
poemas
tradução de egito gonçalves





12 agosto 2015

daniel faria / explicação da escuta



Ninguém me chama

Escuto o calcanhar do pássaro
Sobre a flor
E não respondo


daniel faria
poesia
últimas explicações
quasi
2003




11 agosto 2015

alexandre vargas / mistério



Os montes têm segredos escondidos. Sobretudo das bases emitem vibrações dos Leões da Grande Mãe. Da descida aos vales misteriosos (peixes) de uma erva extremamente escura e macia.
Um leão familiar como no soneto de antero. Uma mulher muito bela sob o seu véu, templos a borbotar de palmeiras nos terreiros. E nós…
E observo a luz que se dilata sob as nuvens perspicazes. Ou se contrai no contraluz do monte que brilha o sol poente.
A atmosfera que se escapa fresca de onde estou. Assim me posso renovar


  
alexandre vargas
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002



10 agosto 2015

narciso pinto / cheirar-te pela manhã



Cheirar-te pela manhã
Como se cheira uma maçã

(sem que o Goethe venha à baila)

Quando o sol se levanta
Já ninguém recusa uma boa foda…

Um beijo teu é quase um aríete
A demolir os meus alicerces.

A vizinha insiste com a vassoura
No estuque de um sonho nosso…

És o único despertador
Que eu vou tolerando!


narciso pinto
sarro
(da paixão à cova)
chiado editora




09 agosto 2015

alberto caeiro / bendito seja o mesmo sol



Bendito seja o mesmo sol de outras terras
Que faz meus irmãos todos os homens
Porque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu, 
E, nesse puro momento
Todo limpo e sensível
Regressam lacrimosamente
E com um suspiro que mal sentem
Ao homem verdadeiro e primitivo
Que via o Sol nascer e ainda o não adorava.
Porque isso é natural - mais natural
Que adorar o ouro e Deus
E a arte e a moral ...
  

alberto caeiro




08 agosto 2015

al berto / amor dos fogos



...vêm sôfregos os peixes da madrugada
beber o marítimo veneno das grandes travessias
trazem nas escamas a primavera sombria do mar
largam minúsculos cristais de areia junto à boca
e partem quando desperto no tecido húmido dos sonhos

... vem deitar-te comigo no feno dos romances
para que a manhã não solte o ciúme
e de novo nos obrigue a fugir...
... vem estender-te onde os dedos são aves sobre o peito
esquece os maus momentos a falta de notícias a preguiça
ergue-te e regressa
para olharmos a geada dos astros deslizar nas vidraças
e os pássaros debicam o outono no sumo das amoras...
... iremos pelos campos
à procura do silente lume das cassiopeias...

  

al berto



07 agosto 2015

helga moreira / dobra palavras, silêncios.



Dobra palavras, silêncios.
Para o corpo pede uma qualquer
hora de encanto.
Falo da beleza dos seus olhos
e o rosto estremece,
cúmplice.



helga moreira
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002