27 dezembro 2014

michális ganas / naufrágio



A casa é velha cai caliça
Medem-se os flancos da parede.
Lá dentro a mãe
cá fora o polegar de deus,
que há-de destruí-la.
Vás para que canto vás,
as coisas voltam-se para te fitar,
vacas com sede.

Por detrás dos armários da cozinha
há outros armários
e por trás destes, ainda outros
até ao velho frigorífico.
Aqui adormecem as suas mãos artríticas
a senhora Lena e a senhora Maria...

A velha casa, que muito viajou,
de repente faz memórias, naufraga.


  
michális ganas
(n. 1943)
«akáthistos deipnos»
atenas, 1985
tradução de manuel  resende




26 dezembro 2014

antónio pedro / devia haver livros de racionamento mesmo para o entusiasmo


 (único poema de guerra)


As prostitutas mijaram na soleira da minha porta
E as escada cheirou a guisado até ao último andar
O ritmo dos aviões acomodou-se ao prestígio da noite
E encheu-me de intermitências
Alguém desfolhou um dedo como uma tulipa
Mas tiradas as pétalas e as sépalas
Em vez do androceu e do gineceu
Havia lá dentro uma pobre lua de pé
Como a chama gelada de uma candeia.

Quem é? Quem é aquele homem?
Quem é aquele homem que vai pela estrada fora
Decididamente
E quando acaba a estrada e o precipício se desenha como um U
Desce e sobe o U do precipício
Imperturbavelmente
E atravessa a água do rio e sobe a catarata
Ao contrário da corrente
E percorre os cinco diques do navio que puseram ao alto da água
Para a lua de mel dos turistas americanos
E depois molhado e violento faz mais mil e duzentos e vinte e dois atalhos e
                                                                       [caminhos
E só ao chegar finalmente à cabine do elevador no sétimo andar
Do bloco de flats de que percorrera gloriosamente todos os pisos e recantos
Sentiu que era inútil e desnecessário qualquer esforço
E chorou feio como um anúncio de limonadas?

V.D.
A sífilis não se contagia pelo ar
Como a gripe e o sarampo
Segundo dizem a experiência e o Senhor Ministro da Saúde
Do governo de sua Majestade
A sífilis contagia-se pelo olhar de certas velhas moralistas
Com óculos e barba
Anda no pêlo ratado de certas raposas de mendiga
Mas pode produzir frutos admiráveis
Tem de ser cultivada cuidadosamente num vaso
Tem de ser bem regada e bem coberta cheia de emanações.
Mas isto não diz o Ministro da Saúde do governo de sua Majestade
No anúncio do jornal
Porque é segredo de guerra agora
E na hora da nossa morte
Amen

Os olhos dos buses de Londres
São fixos e frios como o dos peixes mortos.

Era muito mais sensacional
Tremer a pálpebra aliciadoramente a qualquer olho dum bus
Que tenha-se publicado em vinte volumes
Mais de vinte mil discursos do senhor Winston Churchill
Aos vivas ao Franco como não vem nas caricaturas
Vestido de caixa de charutos
Todo Joly good fellow.

Anda no ar um rodopio do vento
Como uma interrogação neste calor de Maio

Acabem lá com isso dos alemães e da guerra
E ponham taipais na Europa
"PARA CONSERTAR"


Londres, Maio de 1944



antónio pedro
antologia poética
obras clássicas da literatura portuguesa séc. xx
edição de fernando matos oliveira
angelus novus, editora
1998




23 dezembro 2014

luis alberto de cuenca / os gigantes de gelo



Os Gigantes de Gelo tornaram a visitar-me.
Não em sonhos. À luz do dia. Com elmos
reluzentes e o rosto selvático e maligno.
Senti tanto medo que nem fui capaz de dizer-lhes
que tinhas partido. Investigaram tudo,
amaldiçoando a hora em que Deus criou o mundo,
jurando pelos dentes do Lobo e pelas fauces
do Dragão, cuspindo terríveis ameaças,
blasfemando e destruindo os livros e os discos.
Ao ver que tu não estavas, foram-se, não sem antes
garantir que dariam com o teu novo esconderijo
e serias sua escrava até ao fim dos tempos.
Onde estejas, meu amor, não lhes abras a porta.
Ainda que se façam passar por homens de minha confiança
e te garantam que sou eu que os envia.


luis alberto de cuenca
tradução de manuel rodrígues 




22 dezembro 2014

marin sorescu / capriccio



Todas as noites
Junto as cadeiras da vizinhança,
As disponíveis,
E leio-lhes versos.

As cadeiras são muito receptivas
À poesia
Se soubermos como as dispor.

Por isso
Fico emocionado,
E durante algumas horas
Conto-lhes
A morte maravilhosa da minha alma
Ao longo do dia.

Os nossos encontros
São habitualmente sóbrios,
Sem entusiasmos
Inúteis.

Seja como for,
É possível dizer-se:
Cada um fez o seu dever,
E pode seguir
Adiante.




marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997




20 dezembro 2014

fernando alves dos santos / encontrei-me iluminado



Encontrei-me iluminado nos telhados,
era vago, era despovoado, era lindo.
Tinha a tristeza de uma cisterna
abandonada por preguiça de outras gerações.
Agora, ainda posso ver o meu choro discreto
quando no meu voo
os olhos grandes me deixam ver o sol em pausa.

Além, mesmo além
— o silêncio regressava aos braços cansados e sábios
para junto dos homens que volviam plácidos.
Além, mesmo além
o silêncio trazia no fundo chamas de queimar deuses e o próprio háli-
         to dos deuses.
E queimava, queimava o solo vestido
hora a hora
até que das chamas colhia o segredo da vida e da morte.

Além, mesmo além
vago e despovoado eu caminhava mais um pouco
ainda com neve nos cabelos em ferida.

Que ninguém respire.
A hora não é de respirar,
reconheço.
No meu fato de espectador mal arrumado
exposto à porta de uma paróquia de condenados
não é de respirar,
reconheço.
Mais rei
acompanho a minha antiguidade
que parte nervosa para uma grande viagem.
A meio do dia
tomarei a meu gosto um pouco de moral no sangue.
         E quando lá do sonho
         os espelhos trouxerem mar
         a chama singular e franzina
         queimará o século e a fronte,
         as sombras dos dedos nos seios,
         os veleiros de imortalidade
         cheios de palmos de terra,
         até que lá do sonho eu não respire
         que a hora não é de respirar,
         eu reconheço.





fernando alves dos santos
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




19 dezembro 2014

luis buñuel / redentora



Encontrava-me no jardim de um convento.
Um monge de S. Benito,
que levava sujeito a uma corrente um grande mastim vermelho,
contemplava-me com curiosidade, desde um claustro próximo.
Senti que o frade intentava lançar a fera contra mim,
pelo que, cheio de temor,
pus-me a dançar sobre a neve.

Suavemente, no princípio.
Depois,  jà que o ódio crescia nos olhos do meu espectador,
dancei furiosamente,
como um doido, como um possesso.

O sangue afluía-me à cabeça,
toldando-me os olhos vermelhos,
um vermelho semelhante ao do mastim.

O frade desapareceu e a neve fundiu-se.
O carniceiro vermelho desvanecera-se num imenso campo de papoilas.
Entre os trigais, na luz primaveril,
vinha agora a minha irmã, vestida de branco,
e trazendo-me nas mãos erguidas uma pomba de amor.

Era meio-dia em ponto,
a hora em que todos os sacerdotes da terra erguem a hóstia
sobre as searas.


Recebi minha irmã com os braços em cruz,
plenamente liberto
no meio de um silêncio augusto e branco de hóstia.



luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977




18 dezembro 2014

vittorio sereni / terraço



Súbita nos colhe a noite.
                                       A maioria não sabe
onde o lago termina:
apenas um murmúrio
toca a nossa vida
sob um terraço pênsil.

Estamos todos suspensos
de um tácito acontecimento esta noite
dentro daquele raio de torpedo
que nos procura depois vira e se vai embora



vittorio sereni
frontiera
edizione di corrente
milano 1941


(versão de stefano cortese e gil t. sousa)






17 dezembro 2014

tristan tzara / a primeira aventura celeste do senhor antypirine



Nós declaramos que o automóvel é um sentimento
que já nos animou em demasia na lentidão das suas abstracções
e os transatlânticos e os ruídos e as ideias. Entretanto
exteriorizamos a felicidade, buscamos a essência central
e ficamos muito contentes por a esconder. Nós não queremos
contar as janelas das maravilhosas elites, pois que Dada
não existe para ninguém e queremos que todos percebam isso mesmo
uma vez que é da varanda de Dada, garanto-vos, que se podem ouvir
as marchas militares
e descer cortando o ar como um serafim nos balneários públicos
para urinar e compreender a parábola.
Dada não é loucura, nem sabedoria, nem ironia - olha para cá
a ver se me vês
gentil burguês.
A Arte era um jogo, uma noz, as criancinhas
juntavam as palavras com um guiso na ponta e depois choravam
gritavam a estrofe e calçavam-lhe botinhas de boneca e a estrofe
transformava-se em rainha para morrer um bocadinho
e a rainha transformava-se numa baleia e as crianças corriam
corriam até perder o fôlego.

Então chegaram os grandes embaixadores do sentimento
gritando historicamente em coro
psicologia psicologia ia ia
Ciência Ciência Ciência
viva a França!
Nós não somos ingénuos
nós somos sucessivos
nós não somos o contrário de exclusivos
de certeza que não somos simples
e sabemos perfeitamente discutir a inteligência.

Mas nós, Dada, nós não somos da sua opinião
visto a Arte ser uma coisa pouco séria
asseguro-vos
e se vos apontamos o Sul e o crime
para dizer empanturradamente ventilador
arte negra e sem humanidade
é para que o prazer vos sufoque
queridos ouvintes
amo-vos tanto tanto
asseguro-vos
e adoro-vos.



tristan tzara
a primeira aventura celeste do senhor antypirine
(fragmento)
tradução de nicolau saião



16 dezembro 2014

pedro tamen / a água


2.
Na perfeição do ramo está a pedra. Na seiva
se descobre, no rumo se percebe. Tudo se vai
em rodas de mistério, a própria viração
é a certeza da água, da pureza da água.

Nos trabalhos humildes das nossas mãos capazes,
no seio das maçãs,
no verde-mar dos dedos,
na perfeição do ramo está a pedra.



pedro tamen
o sangue, a água e o vinho
1958





15 dezembro 2014

marguerite yourcenar / tenho sessenta anos. não te iludas:



“... Tenho sessenta anos. Não te iludas:
não estou ainda bastante fraco para ceder
às imaginações do medo, quase tão absurdas
como as da esperança e seguramente muito mais penosas.
Se fosse preciso enganar-me a mim mesmo,
preferia que fosse no sentido da confiança;
não perderia mais com isso e sofreria menos.
Este fim tão próximo não é necessariamente imediato;
deito-me ainda, todas as noites,
com a esperança de chegar à manhã seguinte.
Adentro dos limites intransponíveis de que te falei há pouco,
posso defender a minha posição passo a passo
e recuperar mesmo algumas polegadas do terreno perdido.
Não deixo por isso de ter chegado à idade
em que a vida se torna, para cada homem, uma derrota aceite.
Dizer que os meus dias estão contados
não significa nada; sempre assim foi; é assim para todos nós.
Mas a incerteza do lugar, do tempo e do modo,
que nos impede de distinguir bem o fim
para o qual avançamos sem cessar,
diminui para mim à medida que a minha doença mortal progride.
Qualquer pessoa pode morrer de um momento para o outro,
mas o doente sabe que passados dez anos
já não será vivo. A minha margem de hesitação
já se não alonga em anos, mas em meses.
As minhas probabilidades de acabar com uma punhalada no coração
ou por uma queda de cavalo tornam-se cada vez menores;
a peste parece improvável, a lepra ou o cancro
afiguram-se definitivamente afastados.
Já não corro o risco de cair nas fronteiras,
atingido por um machado caledónio ou trespassado por uma flecha parta;
as tempestades não souberam aproveitar as ocasiões
que se lhes ofereceram, e o feiticeiro que me predisse que eu me não afogaria
parece ter acertado.
Morrerei em Tíbure, em Roma ou em Nápoles quando muito,
e uma crise de sufocação encarregar-se-á da tarefa.
Serei levado pela décima ou pela centésima crise?
É essa a única questão.

Assim como o viajante que navega entre as ilhas do Arquipélago
vê despontar, ao entardecer, uma espécie de névoa luminosa
e descobre pouco a pouco a linha da costa,
eu começo a avistar o perfil da minha morte.
Certas fracções da minha vida
assemelham-se já a salas desguarnecidas de um palácio
demasiadamente vasto que um proprietário empobrecido
renuncia a ocupar todo.”



marguerite yourcenar
memórias de adriano
trad. maria lamas
ulisseia
1974




14 dezembro 2014

alberto caeiro / o meu olhar

  
II

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo.  Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)                  
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...


alberto caeiro
o guardador de rebanhos




13 dezembro 2014

sebastião da gama / pus de parte a modéstia e o pudor



Pus de parte a modéstia e o pudor
e fui contando à Vida
tudo que tinha sido a minha vida.
Não ocultei sequer um pormenor.

Ora foi depois desta confissão
que ela se me deu nua, sem disfarces,
como se eu fora o seu primeiro homem…


sebastião da gama
cabo da boa esperança
ed. ática
1959




12 dezembro 2014

frank o´ hara / nafta



Ah Jean Dubuffet
quando se pensa nele
cumprindo o serviço militar na Torre Eiffel
como meteorologista
em 1922
compreende-se como pode ser maravilhoso
o século 20
e os imponentes Iroqueses nos carris
altivos e a pé firme
nus como seria de esperar
ligeiramente etéreos
como um Sonia Delaunay
há uma parábola de velocidade
algures atrás dos olhos dos Índios
inventaram o século com os seus cavalos
e as suas costas frágeis
que são escuras

estamos em dívida com os Iroqueses
e com Duke Ellington
por tocar nos edifícios em construção
nós fazemos pouco
a não ser foder e pensar
no Metro obsessivo
e naquele que ali não apareceu
enquanto aguardávamos por pertencer ao nosso século
tal como não se pode fazer um chapéu de aço
e depois usá-lo
de qualquer forma quem usa chapéu
é costume da nossa tribo
enganar

como te sentes no velho Setembro
sinto-me como um camião em auto-estrada molhada
como podes
foste feito à imagem de Deus
eu não fui
fui feito à imagem de um camionista maricas
e Jean Dubuffet pintando as suas vacas
«com uma semelhança que irrompeu na memória»
aparte o amor (não fales nele)
estou envergonhado do meu século
por ser tão espectacular
mas tenho de sorrir



frank o'hara
vinte e cinco poemas à hora do almoço
trad. josé alberto de oliveira
assírio & alvim
1995