26 outubro 2014

fernando jácome de castro tavares rodrigues / as time goes by



Como o tempo passa
Enquanto ficamos sós...
Passamos nós pelo tempo
Ou passa o tempo por nós?
Bebamos os dois á taça
O que afinal sou eu só
- ambígua raiva, duelo,
dualidade num só.

  


fernando jácome de castro tavares rodrigues





25 outubro 2014

álvaro de campos / tabacaria



  Não sou nada.
  Nunca serei nada.
  Não posso querer ser nada.
  À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

  Janelas do meu quarto,
  Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe
  Quem é
  (E se soubessem quem é, o que saberiam?),

  Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por
  gente,
  Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
  Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
  Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
  Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos
  homens,
  Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de
  nada.

  Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
  Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
  E não tivesse mais irmandade com as coisas
  Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua

  A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
  De dentro da minha cabeça,
  E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

  Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
  Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
  À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora.
  E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

  Falhei em tudo.
  Como não fiz propósito nenhum talvez tudo fosse nada.
  A aprendizagem que me deram,
  Desci pela janela das traseiras da casa.
  Fui até ao campo com grandes propósitos.
  Mas lá encontrei só ervas e árvores,
  E quando havia gente era igual à outra.
  Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
  Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
  Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
  E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver
  tantos!
  Génio? neste momento
  Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
  E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
  Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
  Não, não creio em mim.
  Em todos os manicómios há doidos malucos com tanta certezas!
  Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos
  certo?
  Não, nem em mim...
  Em quantas mansardas e não mansardas do mundo
  Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
  Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
  Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
  E quem sabe se realizáveis,
  Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
  O mundo é para quem nasce para o conquistar
  E não para quem sonha que pode conquista-lo, ainda que tenha
  razão.
  Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
  Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que
  Cristo,
  Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
  Mas sou, e talvez serei sempre o da mansarda,
  Ainda que não more nela;
  Serei sempre o que não nasceu para isso;
  Serei sempre só o que tinha qualidades;
  Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de
  uma parede sem porta,
  E cantou a cantiga do infinito numa capoeira,
  E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
  Crer em mim? Não, nem em nada.
  Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
  O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
  E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
  Escravos cardíacos das estrelas,
  Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
  Mas acordamos e ele é opaco,
  Levantamo-nos e ele é alheio,
  Saímos de casa e ele é terra inteira,
  Mais o sistema solar e a Via Láctea e o indefinido.
  (Come chocolates, pequena;
  Come chocolates!
  Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
  Olha que as religiões todas não ensinam mais do que a
  confeitaria.
  Come, pequena suja, come!
  Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que
  comes!
  Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de
  estanho,
  Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

  Mas ao menos fica a amargura do que nunca serei
  A caligrafia rápida destes versos,
  Pórtico partido para o Impossível.
  Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
  Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
  A roupa suja que sou, em rol, para o decurso das coisas,
  E fico em casa sem camisa.
  (Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
  Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
  Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
  Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
  Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
  Ou cocote célebre do tempo de nossos pais,
  Ou não sei o quê moderno - não concebo bem o quê -,
  Meu coração é um balde despejado.
  Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
  A mim mesmo e não encontro nada.
  Chego a janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
  Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
  Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
  Vejo os cães que também existem,
  E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
  E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

  Vivi, estudei, amei e até cri,
  E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
  Olho a cada um dos andrajos e as chagas e a mentira,
  E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses
  nem cresses
  (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer
  nada disso);
  Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem
  cortaram o rabo
  E que é o rabo para aquém do lagarto remexidamente.

  Fiz de mim o que não soube,
  E o que podia fazer de mim não o fiz.
  O dominó que vesti era errado.
  Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e
  perdi-me.
  Estava pegada à cara.
  Quando a tirei e me vi ao espelho.
  Já tinha envelhecido.
  Estava bêbado, Já não sabia vestir o dominó que não tinha
  tirado.
  Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
  Como um cão tolerado pela gerência
  Por ser inofensivo
  E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

  Essência musical dos meus versos inúteis,
  Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
  E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
  Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
  Como um tapete em que bêbado tropeça
  Ou um capacho que os ciganos roubam e não valia nada.

  Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
  Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
  E com o desconforto da alma mal-entendendo.
  Ele morrerá e eu morrerei.
  Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
  A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
  Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
  E a língua em que foram escritos os versos.
  Morrerá depois o planeta girante em que tudo isso se deu.
  Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como
  gente
  Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de
  coisas como tabuletas,
  Sempre uma coisa defronte da outra,
  Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
  Sempre o impossível tão estúpido como o real,
  Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério
  da superfície,
  Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

  Mas um homem entrou na Tabacaria (pra comprar tabaco?)
  E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
  Semiergo-me energético, convencido, humano,
  E vou tencionar escrever estes versos em que digo o
  contrário.

  Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
  E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
  Sigo o fumo como uma rota própria,
  E gozo, num momento sensitivo e competente,
  A libertação de todas as especulações
  E a consciência de que a metafísica é uma consequência de
  estar mal disposto.

  Depois deito-me para trás na cadeira
  E continuo fumando.
  Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

  (Se eu casasse com a filha de minha lavadeira
  Talvez fosse feliz.)

  Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
  O homem saiu da Tabacaria (metendo o troco na algibeira das
  calças?).
  Ah conheço-o, é o Esteves sem metafísica.
  (O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
  Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu me.
  Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus é Esteves!, e o universo
  Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da
  Tabacaria Sorriu.



  álvaro de campos





24 outubro 2014

gil t. sousa / no lado maior do que não há



ir
no redondo da vela mais branca

navegar
o silêncio dos clarões

passar
por nenhuma ponte

morrer
no lado maior do que não há





gil t. sousa
água forte
poesia reunida
editora medita
2014





23 outubro 2014

jorge de sousa braga / o frigorífico branco



O frigorífico estava vazio
Apesar desse aspecto desolador
foi ao mercado
e com todo o dinheiro que lhe restava
comprou um enorme ramos de junquilhos



jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991





22 outubro 2014

vittorio sereni / nevoeiro



Aqui o trânsito treme
suspenso na luz
dos semáforos imóveis.
Eu venho do lado
onde a cidade se adensa
e um sopro de alto-forno a esconde.
Peço ao coração uma voz, responde-me
um ruído constante
de fundições, de martelos.

E o tempo passa a inverno
eu bato as ruas
que aos dias de raposas meigas
outono de feltros verdes florescia,
as avenidas celestiais do depois da chuva.
Ao sinal de luz avança
e fica um ano, nestas terras.
Acende-se a um canto um sol efémero,
um tufo de mimosas
na branquíssima névoa.



vittorio sereni
frontiera
edizione di corrente
milano 1941


(versão de stefano cortese e gil t. sousa)




21 outubro 2014

antónio maria lisboa / uma vida esquecida



Eu conheço o vidro franja por franja
meticulosamente
à porta parado um homem oco
franja por franja no espaço
meticulosamente oco uma porta parada.

Um relógio dá dez badaladas ininterruptamente
dez badaladas por brincadeira dança
um homem com pernas de mulher
e um olhar devasso no Marte
passo por passo uma criança chora
uma águia e um vampiro recuados no tempo.




antónio maria lisboa
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985





20 outubro 2014

leopoldo maría panero / le bon pasteur(haikú)



É duro o trabalho do pesadelo,
                                               é duro
arrastar de dia o carro das marionetas,
de noite; e ser uma delas
pela manhã, quando abrem os olhos
                                                         para não ver
que a bailarina de corda que dança entre elas
move ela mesma a mola.

      Narciso no Último Acorde das Flautas, 1979



leopoldo maría panero
antologia poética (1979/1994)
selecção, tradução e notas de jorge melícias
lume editor
2014




19 outubro 2014

bernardo soares / trovoada



59

[s.d.; 1930?]


Este ar baixo de nuvens paradas. O azul do céu estava sujo de branco transparente.

O moço, ao fundo do escritório, suspende um minuto o cordel à roda do embrulho eterno…
«Como está […],» comenta estatisticamente.

Um silêncio frio. Os sons da rua como que foram cortados à faca. Sentiu-se, prolongadamente, como um mal-estar de tudo, um suspender cósmico da respiração. Parara o universo inteiro. Momentos, momentos, momentos. A treva encarvoou-se de silêncio.
Súbito, aço vivo, (…)

Que humano era o toque metálico dos eléctricos! Que paisagem alegre a simples chuva na rua ressuscitada do abismo.

Oh, Lisboa, meu lar!




fernando pessoa
livro do desassossego
por bernardo soares
ática
1982



18 outubro 2014

stéphane mallarmé / sinfonia literária (*)




No inverno, quando sinto um torpor envolver-me, mergulho cheio de prazer nessas tão queridas páginas das FJeurs du mal. Mal abro o meu Baudelaire sou lançado numa paisagem surpreendente que revive aos nossos olhos com a intensidade das que têm a sua origem no ópio ou na sua profundeza. No horizonte, ao alto, estende-se um céu lívido de aborrecimento, com rasgões azuis neles feitos por uma Oração proscrita. No caminho, única espécie de vegetação, penam algumas raras árvores em cuja casca, dorida, se entrelaçam nervos despidos: o seu crescimento visível, apesar da estranha imobilidade do ar, é interminavelmente seguido por um choro tão dilacerante como o de violinos e que, atingida a extremidade dos ramos, sob a forma de folhas musicais estremecesse. Assim que penetro nesse domínio, descubro langorosos lagos dispersos corno canteiros de um eterno jardim: no granito negro das suas cercaduras, em que se encastram pedras preciosas da India, repousa uma água morta e metálica, com fontes de cobre maciças, onde um raio bizarro se vem tristemente reflectir, com a graça das coisas fenecidas. Nenhumas flores, em volta, por terra — mas apenas, de longe em longe, penas de asas de algumas almas decaídas. O céu, que um segundo raio, logo seguido de outros, finalmente ilumina, perde rapidamente a sua lividez e desprende o azul claro desses dias de Outubro, magníficos, enquanto a água, o granito de ébano e as pedras preciosas depressa flamejam como só o fazem, ao entardecer, os pavimentos da cidade: é o Sol que se põe! E, oh prodígio!, uma vermelhidão singular, em torno da qual alastra o odor enervante de cabeleiras que se soltam, cai em cascata do céu obscuro! Tratar-se-á de um dilúvio de rosas corruptas de que o pecado constituísse o único perfume? —Sangue?, ou uma pintura?— Estranho pôr do Sol! Ou iimitar-se-á esta inundação unicamente a ser o rio das lágrimas avermelhadas pelo fogo de artifício de um Satã saltimbanco que, escondido, mexe os cordelinhos? Ouçam como cai com um ruído de beijos, lascivo... Por fim trevas de tinta invadem tudo e ouve-se apenas, com o remorso e a Morte, esvoaçar o crime. Então cubro o rosto e um choro arrancado menos da minha alma por tal pesadelo do que por uma amarga sensação de exílio, atravessa o negro silêncio. Pátria—O que é para nós afinal o país mais íntimo?

Fecho o livro, os olhos, e procuro-a. Diante de mim ergue-se a aparição do sábio poeta que m’a aponta por meio de um hino misticamente ascendente, como se fosse um lírio. O ritmo desse canto assemelha-se à rosácea de uma velha igreja: no meio da ornamentação de cantaria antiga, com um seráfico sorriso ultramarino que parece mais  ser a oração que dos seus olhos azuis se desprende do que o nosso costumado azul, anjos, fazendo-se acompanhar de harpas, imitação das suas asas ou címbalos de um ouro primitivo, da brancura das óstias o seu êxtase entoam — puros raios agora modelados como trombetas e tamborins onde ainda ressoa a virgindade dos trovões imaturos. — As santas trazem palmas, e embora eu não levante o olhar mais alto do que as virtudes teologais — de tal forma a santidade do lugar é inefável —, ouço ribombar infindavelmente o agradecimento: Aleluia!



(*) Este texto de Mallarmé, quo aqui apenas reproduzimos parcialmente, foi publicado pela primeira vez sob a forma de artigo» no número de 1/2/1865 do jornal L’artiste. Neste texto Mallarmé, além de Charles Baudelaire, refere-se também a Théophile Gautier e a Thóodore Bainville. Posteriormente Mallarmé corrigiu a redacção inicial do «artigo», tendo anotado à margem uma nova sugestão de título: «No meu divã, com três livros — invocação, seguida de solilóquio». (N. do T.)




stéphane mallarmé
baudelaire
escritos íntimos
tradução de fernando guerreiro
editorial estampa
1994




17 outubro 2014

herberto helder / queria fechar-se inteiro num poema



queria fechar-se inteiro num poema
lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena
poema enfim onde coubessem os dez dedos
desde a roca ao fuso
para lá dentro ficar escrito direito e esquerdo
quero eu dizer: todo
vivo moribundo morto
a sombra dos elementos por cima


herberto helder
a morte sem mestre
porto editora
2014




16 outubro 2014

boris vian / rua transversal



Na Rua Transversal
Cresciam rosas
E uma data doutras coisas
Que ninguém via


Na Rua Transversal
Havia um velho bébé
Que chorava à janela
Poqu´ia cair


Na Rua Transversal
Havia uma avó
Que mostrava o traseiro
Por duzentos e trinta e cinco francos


Na Rua Transversal
Em silêncio junto de um pórtico
Havia um militar
Com os pés no bicórnio


Na Rua Transversal
Havia um inventor
Que fabricava balões
A preto e a cor


Na Rua Transversal
Havia uma guilhotina
Que cortava o charuto
Para o papá da Alina


Na Rua Transversal
Havia namorados
Debaixo dos umbrais
Olhos nos olhos fixados


Na Rua Transversal
Havia leões ferozes
Vestidos de cossacos
Para irem para a boda


Na Rua Transversal
Nunca se lá passava
Não era uma rua a sério
E todos estavam mortos...

  

boris vian
canções e poemas
tradução de irene freire nunes e fernando cabral martins
assírio & alvim
1997




15 outubro 2014

sylvia plath / o jardim do solar




As fontes estão secas e as rosas acabaram.
Incenso da morte. O teu dia aproxima-se.
As pêras engordam como pequenos budas.
Uma névoa azul prolonga o lago.

Moves-te através da era dos peixes,
dos presumidos séculos do porco...
A cabeça, os dedos dos pés e das mãos
saem nítidos da sombra. A História

alimenta estas caneluras quebradas,
estas coroas de acantos,
e o corvo vem arranjar as suas vestes.
Tu herdas a urze branca, uma asa de abelha.

Dois suicidas, os lobos da família,
horas de escuridão. Algumas estrelas isoladas
já iluminam os céus.
A aranha na sua própria teia

atravessa o lago. Os vermes
abandonam as suas casas habituais.
As pequenas aves convergem, convergem
com as suas dádivas para um difícil nascimento.



sylvia plath
pela água
tradução de maria de lurdes guimarães
assírio & alvim
1990





14 outubro 2014

josé gomes ferreira / extrai do todos-os-dias


I

                               (Didáctica.)

Extrai do todos-os-dias
o hoje de todo-o-sempre
até ao fim do mundo
quando o sol gelar
a última eternidade.

Embala amanhã nos braços dos outros
a criança esquecida
que foi agora atropelada
por mil automóveis
em todas as ruas do mundo…

Procura nas lágrimas recentes
os olhos que hão-de chorá-las
daqui a dez mil anos…

E se queres a glória
de ser ignorado
pelo egoísmo do futuro
ouve, Poeta do Desdém Novo:
canta os mortos das barricadas
e a volúpia das dores do tempo.

(Mas pede às rosas
que continuem a repetir-se
até ao fim das pedras…
─  em memória do sangue apagado dos homens.)



josé gomes ferreira
pessoais 1939-1940
poesia III
portugália
1971