16 setembro 2012

mário-henrique leiria / forte de caxias, março de 1952





nós somos…
nós somos inúmeros
desconhecidos
feitos de revoltas e de lutas
nós somos inúmeros
feitos de sangue e de combates
nós somos todos os de nome ignorado
feitos de força e de amor
somos aqueles que
de Ocidente a Oriente
olham o sol bem de frente
e acreditam nas estrelas
somos os que caem a sorrir
que morrem a cantar
folhas ignoradas duma árvore
que ao tombar     verticais     belas
vêm fecundar a raiz
de outras árvores por nascer
aquecer a terra
onde nascerão papoilas vermelhas
que serão colhidas por crianças sorridentes
nós somos os que caminham
de olhos bem abertos virados à manhã
canções nos lábios

nós somos inúmeros
desconhecidos…





mário-henrique leiria
depoimentos escritos
editorial estampa
1997





15 setembro 2012

mudam-se os tempos, mudam-se as vontades





Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.




é hoje, outra vez todos. pacíficos mas fortes






14 setembro 2012

enche o ar de caminhos e de espaços e acorda as ruas mortas




antoine de saint-exupéry / no asteróide 325






— Senhor... que é que governais?
— Tudo, respondeu o rei com uma grande simplicidade.
— Tudo?
O rei com um gesto discreto designou o seu planeta, os outros planetas e as estrelas.
— Tudo isto?, perguntou o principezinho.
— Tudo isto..., respondeu o rei.
Porque não só era um monarca absoluto, mas também um monarca universal.
— E as estrelas obedecem-vos?
— Com certeza. Obedecem imediatamente. Não tolero a indisciplina.
Um poder tal deixou o principezinho maravilhado. Se o possuísse, poderia assistir, não a quarenta e três, mas a setenta e dois ou mesmo a cem, ou mesmo a duzentos poentes, no mesmo dia, sem precisar sequer de mexer a cadeira! E porque tinha saudades do seu planetazinho abandonado, atreveu-se a solicitar ao rei uma graça:
— Queria ver um pôr-do-sol... Faça-me um favor... Ordene ao sol que se ponha...
— Se eu ordenasse a um general que voasse de flor em flor, como as borboletas, ou que escrevesse uma tragédia ou que se transformasse em ave marinha e se o general não executasse a ordem recebida, quem teria a culpa, ele ou eu?
— Seríeis vós, disse firmemente o principezinho.
É isso mesmo. Não devemos exigir a ninguém mais do que lhe é possível dar, continuou o rei. A autoridade baseia-se, em primeiro lugar, na razão. Se alguém ordenar ao seu povo que se vá deitar ao mar, tem de contar com a revolta. As minhas ordens são sensatas. Por isso é que tenho o direito de exigir obediência.
— Então o meu pôr-do-sol’? Lembrou o principezinho que, desde que fazia uma pergunta, não mais desistia dela.
— O teu pôr-do-sol, hás-de tê-Io. Hei-de exigi-lo. Mas, dada a minha ciência da governação, esperarei que as condições sejam favoráveis.
— Quando será isso?, inquiriu o principezinho.
— Anh! anh! respondeu-lhe o rei, consultando primeiramente um volumoso calendário, anh! anh! será pelas... pelas... será esta tarde pelas sete horas e quarenta! Vais ver como sou obedecido cega mente.
O principezinho bocejou. Tinha saudades do pôr-do-sol que perdera. E, além disso, já começava a sentir-se aborrecido:
— Não tenho niais nada a fazer aqui, disse ele ao rei. Vou-me embora.
— Não te vás embora, respondeu o rei que tinha orgulho em possuir um súbdito. Não te vás embora, faço-te ministro!
— Ministro de quê?
— Da... da Justiça!
— Mas não há ninguém para julgar!
— Não se sabe, disse-lhe o rei. Ainda não dei uma volta pelo reino. Estou muito velho, não tenho lugar para uma carruagem e canso-me a caminhar.
— Oh! Mas eu já vi, disse o príncipe, inclinando-se para lançar nova vista de olhos pelo outro lado do planeta. Lá adiante não há ninguém...
— Farás, então, o teu próprio julgamento, respondeu-lhe o rei. É o mais difícil. Ë bem mais difícil julgar-se a si próprio do que julgar outrem. Se conseguires julgar-te, provas que és um verdadeiro sábio.
— Eu, disse o principezinho, posso julgar-me a mim próprio num sítio qualquer. Não preciso de viver aqui.
— Anh! anh! disse o rei, creio que, no teu planeta, há um rato em qualquer parte. Podes condená-lo à morte de vez em quando. Assim, da tua justiça dependerá a sua vida. Mas de todas as vezes lhe concederás o perdão para o economizar. Não há mais nenhum.
— Eu, respondeu o principezinho, não gosto de condenar à morte e creio bem que me vou embora.
— Não, disse o rei
Mas o principezinho, tendo acabado os preparativos, não quis penalizar o velho monarca
— Se Vossa Majestade deseje ser obedecido pontualmente tem de me dar uma ordem sensata. Podia, por exemplo, ordenar-me que partisse dentro de um minuto. Parece-me que as condições são favoráveis.
Como o rei não respondesse, o principezinho, a princípio hesitou; depois com um suspiro, partiu.
— Faço-te meu embaixador, apressou-se a gritar o rei.
Tinha uns grandes ares de autoridade.
As pessoas crescidas são muito estranhas, disse o principezinho para consigo, durante a viagem.



antoine de saint-exupéry
o príncipezinho



13 setembro 2012

dia D dignidade




dannie abse / raio x


   


Alguns revistam o fundo do mar, alguns lançam-se a uma estrela
e, mãe, alguns obsessivos voltam ao contrário cada pedra
ou abrem sepulturas para que entre aquela luz da estrela.
Há homens capazes de abrir seja o que for.
Harvey, a circulação do sangue,
e Freud, a circulação dos nossos sonhos,
espreitam honradamente e honrados são
como todos os exploradores. Homens capazes de abrir homens.
E aqueles outros, mãe, com doenças
como ruas grandiosas que tomaram o seu nome: Addison,
Parkinson, Hodgkin - médicos capazes de chegar
depressa e primeiro a qualquer cena amarga com um leito de morte.
Deles sou o colega lento, meio amedrontado,
incurioso. Em rapaz era assim: sabes como
a minha pequena mão nunca arreliou até destroçar
um despertador ou retalhou um morto.
E esta mão maior é igual. Estende-se agora
de uma manga branca para erguer, mãe,
o teu raio x até ao ecrã brilhante. Os meus olhos vêem
mas não querem ver; eu ainda não quero saber.



  
dannie abse
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de cecília rego pinheiro
assírio & alvim
2001


12 setembro 2012

revolta-te




nathan zakh / dizem





Dizem
Aquele que tropeçou, tropeçou
dizem
que aquele que traiu traiu
dizem
que aquele que está só está só
dizem
que aquele que esqueceu esqueceu
dizem
que aquele que não está contigo
dizem que se foi embora
dizem que esqueceu




nathan zakh
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de cecília meireles 
assírio & alvim
2001




11 setembro 2012

os ratos






Escrevi este post em setembro de 2005 a propósito das eleições presidenciais que se adivinhavam. Lembro-me de ter dito que o protesto perfeito seria um dia em que toda a gente se dirigisse à fronteira e abandonasse o país por um dia, deixando-o entregue aos seus ratos.

Tenho, por estes dias, regressado a essa utopia. Talvez porque os ratos estão mais gordos e mais visíveis e se passeiam já sem qualquer pudor pelas nossas vidas.  




também me estou a lixar para eleições. revolução já!






czeslaw milosz / ars poetica





Sempre aspirei por uma forma mais ampla,
que não fosse poesia nem prosa em demasia
e permitisse a compreensão, sem expor ninguém,
nem autor nem leitor, a grandes tormentos.
Em sua essência, a poesia é algo horrível:
nasce de nós uma coisa que não sabíamos que está dentro de nós,
e piscamos os olhos como se atrás de nós tivesse saltado um tigre,
e tivesse parado na luz, batendo a cauda sobre os quadris."

(...)



czeslaw milosz
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de aleksandar jovanovic
assírio & alvim
2001


10 setembro 2012

roberto juarroz / a densidade do que não é





   A densidade do que não é,
a força do que não se tem,
amontoa a água da vida
e cria um rumor de fundo
para todos os gestos.

   Até o tecido preto da morte
 tem um pálido fio
onde a trama cede e se aligeira
porque lhe falta morte.

   E até o que nunca viveu
e nunca morrerá
ergue-se na greta de uma ausência
que lhe empresta seu corpo.

   A pedra do não ser,
a certeira condição negativa,
a pressão do nada,
é o último apoio que nos resta.




roberto juarroz
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé bento
assírio & alvim
2001