20 outubro 2016

arsenii tarkovskii / o espelho



V
Uma pessoa tem um corpo,
um só, sozinho,
a alma já está farta
de ficar confinada dentro de uma caixa,
com orelhas e olhos
do tamanho de moedas,
feita de pele – só cicatrizes –
cobrindo um esqueleto.
Pela córnea ela voa
para a cúpula do céu,
sobre um raio gélido,
até a uma rodopiante revoada de pássaros,
e ouve pelas paredes
da sua prisão viva
o crepitar de florestas e milharais,
o troar de sete mares.
Uma alma sem corpo é pecaminosa
como um corpo sem camisa:
nenhuma intenção, nem um verso.
Uma charada sem solução:
Quem vai voltar
ao salão do baile,
quando não ninguém para dançar?
E eu sonho com uma alma diferente
vestida com outras roupas:
que se inflama enquanto corre
da tristeza à esperança;
pura e sem sombra,
como fogo, ela percorre a Terra,
deixa lilases sobre a mesa
para que se lembrem dela.
Então continua a correr, criança, não
Te aflijas por causa da pobre Eurídice;
Continua a rodar o teu aro de cobre,
corre com ele mundo fora
enquanto, em notas firmes
de tom alegre e frio,
em resposta a cada passo que deres,
a Terra soar em teus ouvidos.



arsenii tarkovskii
o espelho
andrei tarkovsky
1975




19 outubro 2016

carlos de oliveira / desenho infantil



I

Os animais no alvorecer, os gritos reflectidos num plafond mais denso da neblina e devolvidos aos chiqueiros, sob a forma de raios que fulminam o gado, para subir de novo como gritos à bruma impermeável e tornar a descer: na madrugada, a aprendizagem da criança começa pela dor, que se desdobra sem descanso e a partir de si mesma.




carlos de oliveira
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001




18 outubro 2016

amalia bautista / pecados capitais



Cada vez que tive vontade e pude
entreguei-me à gula e à luxúria.
Com a preguiça vivo amancebada.
Só fui seduzida pela avareza
como meio para outros desvios.
Sempre me mostrei irada e soberba,
orgulhosa, arbitrária e teimosa.
Talvez por isso não sentisse inveja.
Tão segura de mim, tão inflexível,
não podia invejar nada nem ninguém.
Hoje, contudo, derrotada e só,
sem esperança e vencida, tão inútil,
sinto inveja de mim quando me amavas.


amalia bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013



17 outubro 2016

nuno júdice / o jogo



Eu, sabendo que te amo
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.



nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997




16 outubro 2016

alexander search / por isso, muito bem disse caeiro




Por isso, muito bem disse Caeiro

A Natureza é partes sem um todo.

O Universo, como conjunto, síntese e não soma das coisas, é uma ideia abstracta. Por isso não há Universo. Não é por não sabermos se não há; é por sabermos, por isso que ele é uma ideia abstracta, que não há.

O exemplo melhor das ideias abstractas e do para que servem são os números, a matemática. Nada mais útil, mas, em si, nada mais falso. Só um louco julga que o número 5, por exemplo, é uma coisa: mas o n.0 5 é útil, como os outros números, porque é um meio de compreender a realidade, não em si mesma, mas tem utilidade, em relação apenas a nós e à nossa imperfeição.

Se os nossos sentidos fossem perfeitos, não precisávamos de inteligência, as ideias abstractas de nada nos serviriam.

A imperfeição dos nossos sentidos faz com que não concordemos nunca em absoluto sobre um objecto ou um facto do exterior. Nas ideias abstractas concordamos em absoluto. Dois homens não vêem uma mesa da mesma maneira; mas ambos entendem a palavra «mesa» da mesma maneira. Só querendo visualizar uma mesa é que divergirão; isso, porém, não é a ideia abstracta da mesa.

s.d.


poemas completos de alberto caeiro
textos heterónimos
fernando pessoa
recolha, transcrição e notas de teresa sobral cunha
presença
1994



15 outubro 2016

herberto helder / tríptico



     III

     Todas as coisas são mesa para os pensamentos
     onde faço minha vida de paz
     num peso íntimo de alegria como um existir de mão
     fechada puramente sobre o ombro.
     — Junto a coisas magnânimas de água
     e espíritos,
     a casas e achas de manso consumindo-se,
     ervas e barcos altos — meus pensamentos criam-se
     com um outrora lento, um sabor
     de terra velha e pão diurno.


     E em cada minuto a criatura
     feliz do amor, a nua criatura
     da minha história de desejo,
     inteiramente se abre em mim como um tempo,
     uma pedra simples,
     ou um nascer de bichos num lugar de maio.


     Ela explica tudo, e o vir para mim —
     como se levantam paredes brancas
     ou se dão testas nos dedos espantados das crianças
     — é a vida ser redonda
     com seus ritmos sobressaltados e antigos.


     Tudo é trigo que se coma e ela
     é o trigo das coisas,
     o último sentido do que acontece pelos dias dentro.
     Espero cada momento seu
     como se espera o rebentar das amoras
     e a suave loucura das uvas sobre o mundo.
     — E o resto é uma altura oculta,
     um leite e uma vontade de cantar.




herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996





14 outubro 2016

olga orozco / a véspera do pródigo



     Eu, o que vigia abrigado na inocência,
sou o eu não partiu quando meu último sopro apagou a vela.
Mas, quem decifrou lentamente os fabulosos signos?
Oh, distante!
Quem buscava nas nuvens o espelho onde dorme a imagem de
                secretos países?
Quem ouvia outras vozes a queixar-se o vento contra o cristal batido?
Quem inscreveu com fogo o seu nome nos troncos para que fosse
                anúncio ardente nas praias?
Oh, mensageiros!
Outro é o que partiu.
Mas por seu rosto passo às vezes como se ainda se visse no balão
                inquieto da infância que o tempo balança:
e às vezes chega a mim, atrás das frondes errantes, o fulgor de sua
                mísera realeza.
Não me julgueis agora.
Esperai-o comigo.
Sua morte há-de alcançar-me tanto como sua vida.


olga orozco
trad. josé bento
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




13 outubro 2016

arsenii tarkovskii / o espelho



IV
Um sonho perturba-me com uma
persistência espantosa.
Chama-me de volta
à aldeia do meu avô.
Àquela casa, onde eu nasci
há 40 anos,
em cima da mesa de jantar.
Mas, quando quero entrar nessa casa,
aparece qualquer coisa a impedir-me
tenho este sonho com frequência.
Mas quando vejo as paredes
de madeira e a escuridão da entrada,
sei, mesmo a sonhar,
que não passa de um sonho.
E a minha imensa alegria perde-se
na sombra do esperado despertar.
Às vezes, porém, deixo de sonhar
com a casa e os pinheiros
em torno dessa casa da minha infância.
E tenho saudades.
E espero impaciente
o regresso deste sonho,
onde voltarei a ver-me criança
e a sentir-me feliz de novo,
porque tudo está ainda pela frente
e tudo será ainda possível…


arsenii tarkovskii
o espelho
andrei tarkovsky
1975




12 outubro 2016

joão rebocho / a vida adulta



a vida adulta
escapando entre as gotas
da chuva
e do talento
até ficar velho
depois
mais velho as
portas não fecham
poemas jornais amarelos a tua foto
a cafeteira esquecida
incandescente
os teus amigos mortos
com saudades de ti
o poema igual

indecisa
a casa na esquina
entre arder e não arder
morte ou ruína
que faz aqui um homem vitorioso?
em silêncio
adeus memória


joão rebocho
ruas lavadas
edição do autor
2016




11 outubro 2016

pablo neruda / walking around



Acontece que me canso de ser homem.
Acontece que entro nas alfaiatarias e nos cinemas
abatido, impenetrável, como um cisne de feltro
vogando numa água de origem e de cinza.

O cheiro das barbearias faz-me gritar em lágrimas.
Eu só quero um descanso de pedras ou de lã,
eu só quero não ver as lojas e os jardins,
mercadorias, óculos, ascensores.

Acontece que me canso destes pés, destas unhas,
e do cabelo e da sombra.
Acontece que me canso de ser homem.

E no entanto seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
há dentaduras esquecidas numa cafeteira,
há espelhos
que deviam ter chorado de vergonha e de espanto,
com fúria, com esquecimento,
passo, atravesso escritórios e centros ortopédicos
e pátios onde há roupa a secar num arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sujas.



pablo neruda
antologia breve
tradução de fernando assis pacheco
dom quixote
1971




10 outubro 2016

samuel beckett / há nela o acto calmo



há nela o acto calmo
os poros sábios o sexo bom rapaz
a espera nunca lenta de mais os ais demasiado
                                                                       [longos
a ausência
ao serviço da presença
alguns farrapos de azul na cabeça pontos
                  [finalmente mortos do coração
toda a graça tardia da chuva que cessa
ao cair de uma noite
de Agosto

há nela vazio
ele puro
de amor


samuel beckett
poemas escolhidos
tradução de jorge rosa e armando da silva carvalho
dom quixote
1970



09 outubro 2016

álvaro de campos / não! só quero a liberdade!




Não! Só quero a liberdade!
Amor, glória, dinheiro são prisões.
Bonitas salas? Bons estofos? Tapetes moles?
Ah, mas deixem-me sair para ir ter comigo.
Quero respirar o ar sozinho,
Não tenho pulsações em conjunto,
Não sinto em sociedade por quotas,
Não sou senão eu, não nasci senão quem sou, estou cheio de mim.
Onde quero dormir? No quintal...
Nada de paredes — ser o grande entendimento —
Eu e o universo,
E que sossego, que paz não ver antes de dormir o espectro do guarda-fatos
Mas o grande esplendor, negro e fresco de todos os astros juntos,
O grande abismo infinito para cima
A pôr brisas e bondades do alto na caveira tapada de carne que é a minha cara,
Onde só os olhos — outro céu — revelam o grande ser subjectivo.
Não quero! Dêem-me a liberdade!
Quero ser igual a mim mesmo.
Não me capem com ideais!
Não me vistam as camisas-de-forças das maneiras!
Não me façam elogiável ou inteligível!
Não me matem em vida!
Quero saber atirar com essa bola alta à lua
E ouvi-la cair no quintal do lado!
Quero ir deitar-me na relva, pensando "Amanhã vou buscá-la"...
Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado...
Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado...
" Amanhã vou buscá-la ao quintal"
Buscá-la ao quintal
Ao quintal
ao lado...

11-8-1930



álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993





08 outubro 2016

j. h. santos barros / lajes field, ilha terceira, açores



1.
I love to be here. Impossível
escrever português. Ó ky master, Master
of war. A espessura do asfalto, dos vidros.
Café com leite milk no wisky. Good-bye Susan
till after Vietnam. Angola. I love you.
O petróleo.

2.
Ó God, save Lajes Field. Acordei
o ar condicionado arejava-me por dentro.
O brilho das bolas de bilhar, a limpeza
extrema do clube de sargentos. Escrevo
voltado para o norte, onde fica o mar, o limite
da terra. Outrora o trigo. As vacas e as casas baixas,
brancas, além. O novo mundo há-de dar cabo
de tudo isto. Let me see. Folk. Ó subdesenvolvimento,
ó miséria, enjoy, enjoy, yourself.
A relva do campo de golfe relva bem tratada,
relva clara. Iluminada. Como chocolates,
let me try the slot. No. no. machine guns never.
I´ll give you peace and chewing-gum. Believe.
Rebentaram com o bairro da lata? Santa Rita,
serra de Santiago, ó when the saints.

3.
O que me dói nos olhos é a noite passada
em claro. Alguma coisa tentando safar
dos bidões do lixo. Da polícia tentando
também safar-me. Estou atento a Mrs. Glen
espero tudo do seu programa people to people.
Abençoada América que tantos favores nos
fazes. Meu tio Lopes passou 18 meses na prisão
Por ter roubado uma peça de paraquedas
Julgando tratar-se duma gabardina? Importante.
O self-service funciona. Refeições económicas. Coca-e-
– cola. I love to be here. Justice.
In God we trust.
O chão molhado. Cruzam-me a pele e os ossos
Motores potentíssimos. Devagar e a boots
saio da base. Fuck you, Joe!  



j. h. santos barros
os alicates do tempo
afrontamento
1979



07 outubro 2016

mário dionísio / jovem de riso ardente



LXII
Jovem de riso ardente
e voz irreverente
rubra provocação

Jovem-explosão
tratando a Revolução
tu cá-tu lá

daqui a vinte anos que dirás?

Como serás
e que haverá
então?



mário dionísio
poesia completa
terceira idade 1982
imprensa nacional-casa da moeda
2016




06 outubro 2016

arsenii tarkovskii / o espelho


III
Não acredito em pressentimentos
e augúrios.
Não me amedrontam. Não fujo da calúnia.
Nem do veneno.
Não há morte na Terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal.
Não há por que ter medo da morte aos 17
ou mesmo aos 70.
Realidade e luz existem,
mas morte e trevas, não.
Agora estamos todos na praia
e eu sou um dos que içam as redes
quando um cardume
de imortalidade nelas entra.
Vive na casa – e a casa continua de pé.
Vou aparecer em qualquer século.
Entrar e fazer uma casa para mim.
É por isso que os teus filhos
estão ao meu lado
e as tuas esposas,
todos sentados a uma mesa,
uma mesa para o avô e o neto.
O futuro é consumado aqui e agora,
e se eu erguer levemente
a minha mão diante de ti,
ficarás com cinco feixes de luz.
Com omoplatas como esteios de madeira
eu ergui todos os dias
que fizeram o passado.
Com uma cadeia de agrimensor,
eu medi o tempo
e viajei através dele como
se viajasse elos Urais.
Escolhi uma era que
estivesse à minha altura.
Rumámos para o sul,
Fizemos a poeira rodopiar na estepe.
Ervaçais cresciam viçosos;
um gafanhoto tocava,
esfregando as pernas, profetizava.
E contou-me, como um monge,
que eu pereceria.
Peguei no meu destino
e amarrei-o à minha sela;
e agora que cheguei ao futuro ficarei
erecto sobre os meus
estribos como um garoto.
Só preciso da imortalidade
para que o meu sangue continue
a fluir de era para era.
Eu prontamente trocaria a vida
Por um lugar seguro e quente
se a agulha veloz da vida
não me puxasse pelo
mundo como uma linha.


arsenii tarkovskii
o espelho
andrei  tarkovsky
1975