24 julho 2016

al berto / filhos de rimbaud


III

Os dias estão cheios de cartas e recomendações,
de amigos que partem para sempre, ou adoecem, de recados e de intrigas,
de contas intermináveis, de ouro, de corpos, de fortuna e de infortúnios.
De morte, e de cães feridos a uivar à porta da desolação.

Uma espécie de miséria e de orgulho, escorrem no fundo de mim.
E talvez seja a mistura venenosa da miséria com o orgulho que me há-de perder...
Não tenho mais nada a dizer. Os poemas morreram.

Fugir tornou-se uma obsessão,
ou então é a melhor maneira de encarar o desespero.
Bebi águas inquinadas. Vi o corpo suspenso no rebordo dos poços,
o coração batendo descontrolado.
Mas a morte, quando se aproxima, é uma coisa simples...
vem comer à mão a cinza melodiosa dos dias.

Por isso sei que, ao amanhecer, posso perguntar:
Quantos africa murcharam na boca do amor?
Quantas feras despedaçadas foram comidas ao entardecer?
Quantos homens conseguiram apaziguar o relâmpago da paixão?
Quantos desejos ficaram abandonados na escuridão intacta dos quartos?
A qual dos demónios me vender?
Que besta suja será preciso adorar?
Em que sangue contaminado mergulharei a língua?
Que fogo estranho é este? - que devora a beleza interior das coisas...
Que mentira me poderá salvar?

Uma golada de veneno e eis que se acende o talento.
O rumor precioso das sílabas. O choro e o riso.
O brilho gelado das imagens.
(Então), Ergo o cachimbo e fumo um tempo futuro,
ajeito o cinturão onde guardo o ouro - e vou pelo engano das palavras...
Descubro a febre, a ânsia do eterno viajante.

Abro as mãos, solto as borboletas e os pássaros,
que dizem ser a alma dos mortos... um espelho onde não me reconheço...
mas o pior é que nunca acreditei no que me disseram, e parti o espelho.
O azar nunca mais me largou, e também não posso dizer
que os negócios me tenham corrido bem...
Foi maldição, dizem.

Paciência. Mas não há maldição sem desejo - e eu não paro de desejar,
sôfrego... capaz de arriscar a vida e a razão. Ou de matar.


al berto
filhos de rimbaud
revista ler
abril de 1997


23 julho 2016

antónio franco alexandre / entende que te ouço quando o corpo



Entende que te ouço quando o corpo
abre na noite os flancos
quando oculta o pavor
as asas de ouro

quando mais nu que a água acordas
na brancura
e fere
o incessante

olhas e
a tempestade varre
o desabrigo

quando se rasga o ar
a boca movediça
fonte escura


antónio franco alexandre
cartão-postal
poemas
assírio & alvim
1996



22 julho 2016

antónio manuel couto viana / café de subúrbio



1.
O café bebe leite, coca-cola
E sumos de laranja e de limão.
A adolescência, quando sai da Escola,
Invade-o de alegria e confusão.

Eu, com a minha idade e uma cerveja,
Escondo-me nas folhas do jornal,
Pra que ninguém me veja
Sem me achar natural.

E sei que já por dentro também envelheci.
E tudo quanto me destrói, agora,
É o desejo de fica aqui,
Envergonhado de não ir embora.


antónio manuel couto viana
as escadas não têm degraus 4
livros cotovia
janeiro 1991




21 julho 2016

jorge luís borges / orgulho da serenidade



Escritas de luz investem pela sombra, mais prodigiosas do que meteoros.
A alta cidade irreconhecível cresce sobre o campo.
Certo da minha vida e da minha morte, olho os ambiciosos e queria
                                                                                             entendê-los.
O seu dia é ávido como o laço no ar.
A sua noite é a trégua da ira no ferro, rápido ao atacar.
Falam de humanidade.
A minha humanidade está em sentir que somos vozes da mesma penúria.
Falam de pátria.
A minha pátria é um ganido de guitarra, alguns retratos e uma velha
                                                                                                       [espada,
a clara prece do salgueiral nos entardeceres.
O tempo está a viver-me.
Mais silencioso do que a minha sombra, cruzo o tropel da sua excitada
                                                                                                          [cobiça.
Eles são imprescindíveis, únicos, merecedores do amanhã.
O meu nome é alguém e qualquer um.
Passo com lentidão, como quem vem de tão longe que não espera chegar.


jorge luís borges
obras completas 1923-1949 vol. 1
lua defronte  (1925)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998



20 julho 2016

diogo vaz pinto / que espécie de anjo


A carne é triste, e eu
já li todos os livros.

Mallarmé


Para o Jorge e o Manuel


Neste vazio, simples, directo, ficamos
como possuídos, amaldiçoando o mundo
em voz baixa, nestes apartamentos minúsculos.
Lâmpadas fundidas, lençóis sujos,
esse colchão cansado e a janela segurando
um copo de chuva.

Recebemos estranhos. Tenho um ali
com a cabeça metida na penumbra,
extraindo a claridade de alguma veia.
(Não sei que espécie de anjo desce
tão baixo.) Os infelizes que se enforcam
neste meu quarto de que a cabra da lua
tanto gosta, e vem vê-los baloiçar.

A minha voz muda a noite inteira,
rindo nuns tropeções de choro,
amargo deslize entre música e sono
derramado. Ando de punhos cerrados
e boca aberta que vai
ler nos lábios de um reflexo
uma descrição absurda. Olha para ti:
de roupão, saco de plástico, lembras
um vagabundo, para cá e para lá,
dentro de casa. Escuta,

o sol já se deixa ouvir nos fundos,
mas perdeste a nitidez. Objectos, imagens.
A luz, por aqui, mal pousa nas coisas.
Não reconheço o céu, não entendo
onde nos levam as distâncias
lá fora, como se fossem caminhos.
Nem banho, nem pente, só o cachecol
e um rumor de sementes nos bolsos.
Sigo-o, embalado pelo vento
até jardins incertos onde engrossa a raiz
dos pássaros. Nas traseiras do mundo,
os quintais do abandono. Um inventário
difícil, a inútil perfeição que regressa
de certas imagens. Um quadro
de bicicleta e um sofá esventrado, telhas
quebradas, flores das que cantam
à beira de precipícios e uma gaiola
envolvida na recordação de qualquer
coisa que nos fugiu. A tarde ali
de gatas, lavada de uma luz magra,
luz de desterro onde a chuva cai num
tom respeitoso e estende a sua rima
subtil entre estas ruínas d´eco.

Não deixes que anoiteça tão cedo.
Sem dares por isso, as mães chamam
os miúdos, os cães perdem os donos,
as ruas precipitam-se como rios
arrastados pelo bulício, e, enfim,
lá está aquilo a que não querias voltar.
Enfiados nas noites uns dos outros,
bares, carrosséis medonhos onde
cada um de nós vai sendo, à vez,
o eixo fixo da mais triste e precária
constelação.

O monstruoso esgar de uns, o frágil
sorriso de outros e a tua cara,
esse olhar de imbecil curiosidade
pactuando com esta fé terrível,
culto de uma raça sem profundidade
a que assistes, desviando o coração.

Horas em que o mundo faz demasiado
sentido e se torna simplesmente
cruel. Mesmo se tudo em nós
pede pátria, continuamos sozinhos.
Seduzimo-nos, fodemos maravilhosamente
como só os desesperados, mas acordamos
a meio da noite com a ansiedade
da lua, à espera denos ver baloiçar.



diogo vaz pinto
ladrador
averno
2012



19 julho 2016

rui miguel saramago / autoretrato – II


[…]

Eu já via as cataratas do Niagara do lado americano.

Eu já via as cataratas do Niagara do lado canadiano.

Eu já bebi um irish cofee no café onde foi inventado o irish cofee.

Eu já assisti a um concerto do Dizzy Gillespie.

Eu já me emocionei por estar no alto do Arc de la Défense só cm o céu
A toda a volta de mim.

[…]

Eu já dei aulas de inglês.

Eu já medi a minha cintura.

Eu já vi a Abbey Lincoln ao vivo por duas vezes.

Eu já assisti a uma sessão de demonstração ao vivo de Sado-masoquismo.

Eu já estive dentro de um reactor nuclear.

[…]

Eu já acendi velas.

Eu já consultei mapas.

Eu já comprei as gravações completas da Carmen McRae para a Decca.

Eu já aprendi a tirar raízes quadradas.

Eu já comi um Big Mac.

[…]

Eu já estive na Praça do Comércio.

Eu já estive na Praça do Comércio quando estava a ser conquistada
Pelos diabos.

Eu já ouvi os discos todos do Prince.

Eu já aplaudi a Dana Bryant.

Eu já comprei um casaco do Oscar de La Renta.

[…]



rui miguel saramago
poezz
almedina
2004



18 julho 2016

kiki dimoulá / quadro biográfico



A casa
fita o caminho público
e o mar
com a lógica de quatro janelas,
rindo-se estereotipadamente
com uma ampla varanda
cor-de-laranja.

Nessa varanda
nesse sorriso
às tardes, a minha mãe
expõe o rosto
ilegível.

O tempo o compôs
sem impulsos
noite após noite
numa língua que escorre dor,
enchendo
páginas de usura.
E nem sequer o erro dum riso.

Senta-se
na pontinha da cadeira
para não pesar na tarde
com todo o peso do seu coração adoentado,
apenas para existir
parada no meio da vida
por uma suspensão do destino,
apenas para poder aguentar agora
o espasmo do seu espanto:

«Existem mares
e barcos nervosos
que empurram soluções
para aquilo que não tem obstáculos?
E ventos que desenraízam aquilo que estagna?
E aquilo que é compreensível onde bebe cores
a tarde alcoólica,
existe?» Não sabe.
Não o soube a sua vida.

Agora
ousa um movimento estranho:
lança o corpo um pouco em frente,
torna a encostá-lo para trás,
dá fortes remadas da memória,
vidro vidro as suas lágrimas.

Pouco a pouco
tarde, rosto e varanda
são mimados pelo crepúsculo.
A sua forma enlouquece.
Fecham-se num espaço tumular
para não voltarem a entrar-nos no olhar.
Anoitece.



kiki dimoulá
inimigo rumor 14
trad. manuel resende
livros cotovia
2003




17 julho 2016

fernando gandra / só hoje te escrevo este vestido



Só hoje te escrevo este vestido
de palavras. Desculpa.
Oxalá que ao recebê-lo os pés
inchados das tuas ilusões inamovíveis
sosseguem junto à fonte.
A mãe, aqui ao lado, é uma sombra
do que pensas: repousa entre o frio
dos joelhos. A tua boina em ponto cruz
está pronta. O forno é bom e sem
enredo: sempre o mesmo.
A taça muito magra do silêncio
entra (ainda) pela janela.
Na varanda as zinias continuam razoáveis.

Pelo corrimão do tempo desce o gelo.
A tua ausência é uma casa muito espaçosa.
Responde-me na volta do sangue.

Beijos.


fernando gandra
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987




16 julho 2016

antónio ramos rosa / o grande nó obscuro de existência



O grande nó obscuro de existência
será dilacerado
pelo derradeiro gume do destino
e não iluminado.
Tudo o que existe vacila lentamente
em torno da indiferença
da luz à sombra dos ciprestes.


antónio ramos rosa
horizonte a ocidente
relâmpago
revista de  poesia nº. 15
outubro de 2004



15 julho 2016

ferreira gullar / a estrela



Gatinho, meu amigo
fazes ideia do que seja uma estrela?

Dizem que todo este nosso imenso planeta
        coberto de oceanos e montanhas
        é menos que um grão de poeira
        se comparado a uma delas

Estrelas são explosões nucleares em cadeia
numa sucessão que dura bilhões de anos

O mesmo que a eternidade

Não obstante, Gatinho, confesso
que pouco me importa
                     quanto dura uma estrela

Importa-me quanto duras tu,
               querido amigo,
               e esses teus olhos azul-safira
               com que me fitas


ferreira gullar
relâmpago
revista de  poesia nº. 14
abril de 2004



14 julho 2016

ruy cinatti / fezada



Eu vi a Cristo num país de assombro
onde rapazes proclamam alto Teu nome,
boca alta, sem nenhum atavio,
que os leve a jogar ao esconde-esconde.
Eu vi e fiquei pávido, pasmado,
como ancorado num cais um navio novo
e dei comigo a cantar – Louvo-te Senhor,
neste meu país, Portugal de assombro,
com os três rapazes que Daniel cantou,
afagando ele a boca aos leões.
E agora procuro-os, penso neles,
a coisa mais natural do mundo
e desafio a que me procurem onde
Jesus andou com as criancinhas, os pobres
e os privados do seu Nome.

8/7/76


ruy cinatti
56 poemas
de os castelos interiores
relógio d´agua
1981




13 julho 2016

martin earl / no instituto


Peter nadava por entre as palavras, arrastando o corpo
com os músculos da boca. Nasceste
numa bicicleta a caminho de uma cimenteira.
À tua mesa o pão ia de mão em mão, resmungando.
Os olhos deles pareciam codornizes dispersas
debaixo da atalaia. As vozes eram o arfar reverso
dos fios, quando os eléctricos tocavam o passeio. Misha
escutava intensamente enquanto o assunto mudava para o-de-
                                                                                     -coração-despedaçado,
uma marca verde no papel diante dele, como Bach.
Acendeste o fogão de louça amarela com carvão
ordinário, grácil como uma frase. Pontus mentiu sobre Belman,
alterou os factos da biografia, para se
distanciar, como o sossego do pátio por detrás
do instituto. Por detrás de certas palavras os homens moveram-se
como ficheiros por detrás de divisórias, já não
pensando em si como almas dentro de corpos, mas
como fundas gavetas de metal sobre calhas. Peter
voltou a Rilke, as oitavas de uma única frase,
a mão com a batuta tecedeira, rolando sobre si própria
no ar, que parecia brilhar de calor cansado.
O poema acabou, segundo Pontus, entre
duas cidades, com alguém que perde a capacidade
de agir, entre uma fieira de prédios, de altos arcos
abatidos, neve no ar, mas sem nevar.



martin earl
poesia do mundo
tradução de maria irene ramalho
edições afrontamento
1995


12 julho 2016

herberto helder / o poema


IV

Nesta laranja encontro aquele repouso frio
e intenso que conheço
como um dom impossuído.
Do ouro terá a luz interior, terá
a graça desconhecida daquilo que mal pousa
na mesa, no mundo.
— Passar nocturno da água que o sangue
mudamente imita. Ilha cercada
de todos os lados
por uma inumerável, inominável
sede humana.
Esta laranja lembra-me uma alta solidão
que nem pode ser nossa, de tão pura. Lembra-me
ainda
uma urna fechada como gelo,
onde o ardor da criação guardado devagar se inspirasse
numa fonte oculta. Onde
os veios amarelos, batidos ao longo do silêncio
pelas pequenas espadas dos raios,
se movessem,
quem sabe até que inapercebido, louco,
tão vivo coração de poema. Laranja
com facas e garfos em volta, ainda recebendo
gota a gota a sua árvore — laranjeira de espírito
desconhecido, irmão
de chuva, irmão de uma noite vagarosamente
purificada. Laranja
encontrada entre dois momentos inimigos, ao meio
como um grito
que bate em cheio entre os ossos e as veias
fulminadas. Doada à poesia que esperava,
entre a rigorosa visão e a experiência
desmedida da carne.
Se a mão se atreve pela confluída laranja,
sobe ao ombro o puro sentimento
de ligação ao mundo. São as manhãs impossíveis
da terra, o subjacente e livre fogo
da noite, as águas a urdir
o peixe que vai nadando até se consumar em lento
lírio.
Cerraria sobre esta laranja que aparta a inocência
da treva
daquilo que o espírito calou como luz indivisa —
sobre ela cerraria a boca,
como se a sepultara num silêncio plantado
de muitas presenças fortes
como sal.
— Talvez todo o enigma materno me fosse dado
de inspiração
através da língua, por confusos órgãos, a todo um corpo
tenso e apto aos segredos e às
delicadas subtilezas da terra.
Talvez esta laranja me dotasse de uma atenção
vertiginosa,
e tudo fosse entrando como sabedoria pelo corpo evocativo,
e cada gesto fosse depois
a íntima unidade deste Poema com as coisas.
                                                                           Laranja
apaixonadamente.



herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



11 julho 2016

luis antonio de villena / uma arte de vida



Viver sem fazer nada. Tratar do que não interessa,
tua gravata à tarde, uma carta que escreves
a um amigo, a opinião sobre um quadro, que dirás
conversando, mas que não terás o mau gosto
de pretender escrita. Beber, que é um prazer efémero.
Amar o sol e desejar verões, e o inverno
lentíssimo que convida à nostalgia (de onde
essa nostalgia?). sair todas as noites, compor
o foulard com carinho esmerado em frente ao espelho,
embriagar-te em beleza quanto possas, perseguir
e ansiar corpos jovens, planícies prodigiosas,
todo o mundo que cabe em tanta euritmia.
Deixar de manhãzinha tão fantásticos leitos,
cheirar as mãos enquanto buscas táxi, gozando
na memória, porque falam de pêlos macios e delícias
e ocultos lugares e perfumes sem nome,
suaves como os corpos. Então que frio amanhecer,
como é triste, que belo! Os lençóis vão acolher-te
depois, um tanto ermos, esperarás o sono.
Do dia que virá não sabes nada. (Não consultas
oráculos.) Queimar-te-ão tédios, emoções,
tertúlias e belezas, as rosas de um banquete
sumptuoso, e as velhas vielas, aí onde se sente
tudo, no Verão, como um aroma intenso.
Viver sem fazer nada. Tratar do que não interessa.
Se tudo corre mal, se enfim tudo é cruel,
como Verlaine, saber ser o rei de um palácio de inverno.



luis antonio de villena
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985



10 julho 2016

vasco miranda / apontamento



Se a morte não fosse mais imperiosa que o silêncio
E me não restasse de vida um sopro de resgate,
Um último sopro a abrir-se sempre à flor de cada tragédia;
Se um puro cravo me não florisse nos lábios
E me não entornasse nas mãos o aroma contagioso
Do sangue das mãos sacrificadas à alegria de viver;
Se uma estranha luz me não prendesse à ara
Do sacrifício comum e me não queimasse
Os membros retalhados nas andadas dos caminhos;
Então reduziria minha fome de teatro
A minha torturante sede de teatro
À tristeza de não dizer as palavras imprevistas.
Assim,    Irmãos,    improvisarei a cada momento o fim do
                                                                                       mundo,
A cada momento apressarei a tragédia universal,
E no meio da fúria dos elementos e do enxofre da hora final
Tomarei lugar à mesa do banquete comum, sereno e impávido,
Como conviva que não recusa fartar os olhos
Sobre o prato delicioso em que o Verbo é servido numa
      última e infinita dimensão.


vasco miranda
a vida suspensa
1953



09 julho 2016

julius lenko / na biblioteca da escola depois da guerra



Ao entrar sinto a cara a arder:
montes de livros, migalhas de cultura e de beleza
juncam o chão como espigas calcadas
após a passagem de um brutal furacão.

A poeira da guerra veio pousar nos lábios
dos homens de génio. Vozes incorruptíveis
a troar por cima do espaço e do tempo.
Mas incapazes de esmagar as botas do fantasma.

Apanho o livro pouco espesso furado
por uma bala. A chaga é horrível.
Todas as folhas estão manchadas de sangue.

Abro. Leio. Não posso reter as lágrimas
quando o título vem dançar diante dos meus olhos:
«Os sonetos sangrentos de Hviezdoslav.»


julius lenko
tradução de ernesto sampaio
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001