III
Os dias estão cheios de cartas e recomendações,
de amigos que partem para sempre, ou adoecem, de recados e de intrigas,
de contas intermináveis, de ouro, de corpos, de fortuna e de
infortúnios.
De morte, e de cães feridos a uivar à porta da desolação.
Uma espécie de miséria e de orgulho, escorrem no fundo de mim.
E talvez seja a mistura venenosa da miséria com o orgulho que me há-de
perder...
Não tenho mais nada a dizer. Os poemas morreram.
Fugir tornou-se uma obsessão,
ou então é a melhor maneira de encarar o desespero.
Bebi águas inquinadas. Vi o corpo suspenso no rebordo dos poços,
o coração batendo descontrolado.
Mas a morte, quando se aproxima, é uma coisa simples...
vem comer à mão a cinza melodiosa dos dias.
Por isso sei que, ao amanhecer, posso perguntar:
Quantos africa murcharam na boca do amor?
Quantas feras despedaçadas foram comidas ao entardecer?
Quantos homens conseguiram apaziguar o relâmpago da paixão?
Quantos desejos ficaram abandonados na escuridão intacta dos quartos?
A qual dos demónios me vender?
Que besta suja será preciso adorar?
Em que sangue contaminado mergulharei a língua?
Que fogo estranho é este? - que devora a beleza interior das coisas...
Que mentira me poderá salvar?
Uma golada de veneno e eis que se acende o talento.
O rumor precioso das sílabas. O choro e o riso.
O brilho gelado das imagens.
(Então), Ergo o cachimbo e fumo um tempo futuro,
ajeito o cinturão onde guardo o ouro - e vou pelo engano das
palavras...
Descubro a febre, a ânsia do eterno viajante.
Abro as mãos, solto as borboletas e os pássaros,
que dizem ser a alma dos mortos... um espelho onde não me reconheço...
mas o pior é que nunca acreditei no que me disseram, e parti o espelho.
O azar nunca mais me largou, e também não posso dizer
que os negócios me tenham corrido bem...
Foi maldição, dizem.
Paciência. Mas não há maldição sem desejo - e eu não paro de desejar,
sôfrego... capaz de arriscar a vida e a razão. Ou de matar.
al berto
filhos de rimbaud
revista ler
abril de 1997