IV
A colher de súbito cai no silêncio da língua.
Paro com a gelada imagem do tempo nos sentidos
puros. E sei que não é uma flor aberta
ou a noite cercada de águas extremas.
Paro por esta monstruosa,
ingénua força de uma morte.
— A colher envolvida pelo silêncio extenuante
da minha boca, da minha vida.
Que faço? Bem sei como se alimenta um homem,
e tímido e arguto
alimenta a sua irónica inspiração solar,
a inocente astronomia
de ossos e estrelas, veias e flores
e órgãos genitais —
para que tudo se construa docemente,
com as mulheres sentadas nos seus vestidos coalhados,
sorrindo fixamente como as crianças na lírica,
tenebrosa densidade da carne.
A colher cheia de alimento. Era um jogo vivo,
manso, ponderado — por certo
de uma beleza confusa e evocativa.
Eis: sou um homem que instante a instante
ganhava um sabor de perene
sentido, uma duração de sombra extasiada,
laboriosa, inclinada no grave centro
da primavera — a sombra
das minhas mãos.
A colher subia como um instrumento da criação,
firme subia nos dedos
como que invocando, unindo os fragmentos
do espírito,
a mímica na sugerida integridade
da pessoa
colocada na doce integridade do tempo.
Mas paro. Cai no silêncio da língua
a colher que era — quem sabe? — música,
intimidade, sinal fortuito
de uma essência, de um génio interior.
O puro roer devagar roerá
a colher na mão e a boca na colher,
e no sangue imóvel o pudor da imagem onde
coagulava a leve espessura das casas. Essas que ardiam
na assimetria festiva e sagaz das invenções.
— Cai
no silêncio da língua a colher tão brusca.
herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996