24 março 2017

saint-john perse / estrofe



I
…Estreitos são os barcos, estreita a nossa cama.
Imensa a extensão das águas, mais vasto o nosso império
Nos quartos fechados do desejo.

Entra o Verão, que vem do mar. ao mar apenas, diremos
Que estrangeiros fomos nas festas da Cidade, e que astro su-
bindo das festas submarinas
                Veio certa noite, sobre a nossa cama, farejar a cama do divino.

                Em vão a terra vizinha traça para nós a sua fronteira. Uma
mesma vaga pelo mundo, uma mesma vaga desde Tróia
                Rola a sua anca para nós. Num mar alto longe de nós foi
outrora  impresso este sopro…
                E certa noite foi grande o rumor nos quartos: a própria
morte, com um som de búzios, não se faria ouvir!

                Amai, ó casais, os barcos; e o mar alto dentro dos quartos!
                A terra chora certa noite os seus deuses, e o homem caça as
bestas fulvas; as cidades gastam-se, as mulheres sonham… Que
para sempre paire à nossa porta
                Essa alvorada imensa que se chama mar – elite de asas e le-
vantamento de armas, amor e mar do mesmo leito, amor e mar
no mesmo leito –

e de novo este diálogo nos quartos:



saint-john perse
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016






23 março 2017

tamura ryuichi / país longínquo



O meu sofrimento
É simples
     Tal como para cuidar de um animal de um país longínquo
     Não é necessário um tratador

A minha poesia
É simples
     Tal como para ler uma carta de um país longínquo
     Não são necessárias lágrimas

As minhas alegrias e penas
Ainda são mais simples
     Tal como para matar um homem de um país longínquo
     Não são necessárias palavras


tamura ryuichi
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé alberto oliveira
assírio & alvim
2001


22 março 2017

rené char / canção do veludo côtelé



O dia dizia: «Tudo o que sofre me acompanha, agarra-se a mim, quer ser feliz. Testemunhas da minha comédia, segurai meu pé alegre. Receio o meio-dia e a sua seta merecida. Não há nada que nos favoreça aos seus olhos. Se o meu desaparecimento anunciar a vossa grandeza, as águas frias do Verão apenas me hão-de receber melhor.»

A noite dizia: «Os que me ofendem morrem jovens. Como não os amar? Pradaria de todos os meus instantes, não podem pisar-me. A sua viagem é a minha viagem e eu permaneço obscuridade.»

Havia entre os dois um mal que os despedaçava. O vento ia de um ao outro; o vento ou nada, as fraldas do rude estofo e a avalanche das montanhas, ou nada.


         
rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000




21 março 2017

luis muñoz / a moral ordinária



Não foi somente provar, mas provar-se.
Foi um cheiro e um tacto,
uma penugem,
pegar com as palavras as carícias,
consentir-se na forma de um corpo semelhante,
nadar nesse espelho de prata temperada,
saber que estava nele, no seu destino.

Se se deitou na sua cama ao meio-dia,
Depois de mergulhar no prazer de outro,
se transportou um calor a outro calor
e se passou na rua pela moral ordinária,
a tenaz de gelo de volta do trabalho,
soube que não voltava a retroceder no seu caminho,
soube que para sempre
atravessava um cerco.


luis muñoz
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000






20 março 2017

wislawa szymborska / possibilidades



Prefiro o cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos nas margens do Warta.
Prefiro Dickens a Dostoiévski.
Prefiro-me gostando dos homens
em vez de estar amando a humanidade.
Prefiro ter uma agulha preparada com a linha.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não afirmar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as excepções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar com os médicos sobre outra coisa.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não os  escrever.
No amor prefiro os aniversários não marcados,
para serem comemorados cada dia.
Prefiro os moralistas
que não prometem nada.
Prefiro a bondade esperta à bondade ingénua demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos países conquistadores.
Prefiro ter objecções.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de fada de Grimm às manchetes de jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães com o rabo não cortado.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que aqui não disse,
outras tantas não mencionadas aqui.
Prefiro os zeros à solta
a tê-los numa fila junto ao algarismo.
Prefiro o tempo do insecto ao tempo das estrelas.
Prefiro isolar.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro levar em consideração até a possibilidade
do ser ter a sua razão.


wislawa szymborska
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de aleksandar jovanovic e henry siewierski
assírio & alvim
2001





19 março 2017

bernardo soares / a crueldade da dor — gozar e sofrer,



A crueldade da dor — gozar e sofrer, por gozar a própria personalidade consubstanciada com a dor. O último refúgio sincero da ânsia de viver e da sede de gozar;
Amores cruéis
Serás quem eu quiser. Farei de ti um ornamento da minha emoção posta onde quero, e como quero, dentro de mim. Contigo não tens nada. Não és ninguém, porque não és consciente; apenas vives.
Meu espírito está [...] como os clássicos fazem, e com o que os decadentes dizem.
s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982



18 março 2017

herberto helder / o poema


     VII

     A manhã começa a bater no meu poema.
     As manhãs, os martelos velozes, as grandes flores
     líricas.
     Muita coisa começa a bater contra os muros do meu poema.
     Escuto um pouco a medo o ruído das gárgulas,
     o rodopio das rosáceas do meu
     poema batido pela revelação das coisas.
     Os finos ramos da cabeça cantam mexidos
     pelo sangue.
     Talvez eu enlouqueça à beira desta treva
     rapidamente transfigurada.
     Batem nas portas das palavras,
     sobem as escadas desta intimidade.
     É como uma casa, é como os pés e a as mãos
     das pessoas invasoras e quentes.

     Estou deitado no meu poema. Estou universalmente só,
     deitado de costas, com o nariz que aspira,
     a boca que emudece,
     o sexo negro no seu quieto pensamento.
     Batem, sobem, abrem, fecham,
     gritam à volta da minha carne que é a complicada carne
     do poema.

     Uma inspiração fende lírios na minha testa,
     fende-os ao meio
     como os raios fendem as direitas taças de pedra.
     Eu sorrio e levo pela mão essa criança poderosa,
     Uma visita do sangue cheio de luzes interiores.
     Acompanho, como tocando uma espécie de paisagem
     levitante,
     as palavras pessoas caudas luminosas ascéticas aldeias.

     É a madrugada e a noite que rolam sobre os telhados
     do poema. É Deus que rola e a morte
     e a vida violenta. E o meu coração é um castiçal
     à beira
     do povo que até mim separa os espinhos das formas
     e traz sua pureza aguda e legítima.
     — Trazem liras nas mãos, trazem nas mãos brutais
     pequenos cravos de ouro ou peixes delicados
     de música fria.

     — Eu enlouqueço com a doçura dos meses vagarosos.

     O poema dói-me, faz-me.
     O povo traz coisas para a sua casa
     do meu poema.
     Eu acordo e grito, bato com os martelos
     dos dias da minha morte
     a matéria secreta de que é feito o poema.

     — A manhã começa a colocar o poema na parte
     mais límpida da vida. E o povo canta-o
     enquanto crescem os campos levantados
     ao cume das seivas.
     A manhã começa a dispersar o poema na luz incontida
     do mundo.



     herberto helder
     poesia toda
     assírio & alvim
     1996




17 março 2017

juan-eduardo cirlot / a virgem da tristeza levantada no fumo,



A virgem da tristeza levantada no fumo,
as palavras azuis,
os signos como flores com a forma de cruz.

Consumir-me-ia na sombra das muralhas absortas.

Mas ninguém.



juan-eduardo cirlot
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985





16 março 2017

mário cesariny / mágica



É uma estrada no céu silenciosa
um anão sem ninguém que o suspeite
é um braço pregado a uma rosa
um mamilo escorrendo leite

São edénicos anjos expulsos
sonhando quietude e distância
são homens marcados nos pulsos
é uma secreta elegância

São velhos demónios ociosos
fitando o céu bailando ao vento
são gritos rápidos, nervosos
que destroem todo o pensamento

É o frio deserto marinho
operando na escuridão
é o corpo que geme sozinho
é a veia que é coração

São aranhas jovens, pernaltas
arrastando embrulhos para o mar
são altas colunas tão altas
que o chão ameaça estalar

São espadas voantes são vielas
passeios de todos e nenhuns
são grandes rectas paralelas
são grandes silêncios comuns

É uma edição reduzida
das aras da história sagrada
é a técnica mais proibida
da mágica mais procurada

É uma estrada no céu silenciosa
por um domingo extenso e plácido
é um anoitecer cor de rosa
um ar inocente, ácido


mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981



15 março 2017

carlos martínez aguirre / o amor é um género literário



Pensei em escrever-te como se não existisse
ainda o feminismo. Como se o nosso tempo
não fosse o fim do século, nem ninguém conhecesse
a igualdade dos sexos, nem causasse estranheza
ouvir que te dissesse que o amor que eu sinto
por ti nunca poderias senti-lo tu por ninguém.
Talvez o amor seja apenas literatura
que muda com o tempo. Eu suponho que nós
não amamos como Shakespeare, nem Shakespeare como Dante,
nem Dante como Safo, nem Safo como ninguém.



carlos martínez aguirre
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



14 março 2017

kamâl fawsi al-sharâbi / a viagem vermelha



estende-te sobre o meu braço
oh meu ramo de lírios
só a mim, a mim só pertence
este mundo azul e liso
sobre o mar dos teus olhos
o amor é a barca de Ys

guiam-me as estrelas
para a luz de ouro
de um esplêndido universo
engrandecido pela aurora
entre teus seios altas paragens
sigo a alegria do corpo

no rio das tempestades
estende-te, corre nelas
boca a boca
fogo sobre fogo
oh tu, meu vinho sem juízo
oh espírito amoroso

e depois, quando imersos
desta viagem embriagada,
eis-nos imutáveis.
nossos fogos têm mais raiva
nosso espírito surpreso
de desejos e confidências


kamâl fawsi al-sharâbi  
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de adalberto alves
assírio & alvim
2001





13 março 2017

eugénio de andrade / canção infantil



Era um amieiro.
Depois uma azenha.
E junto
um ribeiro.

Tudo tão parado.
Que devia fazer?
Meti tudo no bolso
para os não perder.




eugénio de andrade





12 março 2017

fernando pessoa / eu amo tudo o que foi,



Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errónea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.

1931


fernando pessoa
poesias inéditas (1930-1935)
ática
1955




11 março 2017

antónio osório / despir a floresta



Despir a floresta,
conduzir as nuvens
até à próxima nascente.


E alegria em terra lavrada,
Confortá-la na mão
Por suas invisíveis sementes.


antónio osório
o lugar do amor
a boca junta
gota de água
1981




10 março 2017

jesús llorente / picture



A vida desfeita
como a cama do hotel que abandonas de manhã
À espera de alguém que, distraído, mascando chiclete,
lhe ponha lençóis lavados,
esconda o pó debaixo do tapete
e procure roubar-te algo de valor.

Uma emoção infiltra-se nesta casa
como um ladrão que procura forçar todas as portas
e só encontrou por fechar,
mesmo completamente aberta,
a minha,
que não escondia nada de nada.



jesús llorente
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000





09 março 2017

silvia ugidos / canção de inocência




Não acreditávamos nos velhos provérbios
que vaticinam que a ventura é breve
e o amor
um enganoso fruto de coração incerto.

Não acreditávamos nos velhos provérbios
e fizemos bem,
quem poderá negar que durante um tempo
fomos felizes, semelhantes a deuses,
que nunca então o medo nos tocou
nem era possível incerteza nos nossos sonhos.

Não acreditávamos nos velhos provérbios…
Mas isto era ainda no tempo em que
desconhecíamos as sombras e os ardis
os tribunais funestos que o amor ampara
e os tributos amargos que depois exige o desamor.



silvia ugidos
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



08 março 2017

ana hatherly / o gato amarelo



durante muito tempo
tentei compreender por
que razão o meu gato Leonardo
sempre tão afectuoso detestava
a mulher da limpeza. Mas
um dia fez-se luz no meu
espírito. Ela chamava-se
Conceição e ele era amarelo.


ana hatherly
estruturas poéticas
1967