22 outubro 2025

sebastião belfort cerqueira / sexto poema sobre o mar

 


 

 
Quando eu morrer
Deitem-me as cinzas
Quais cinzas
Deitem-me inteiro ao rio
E deixem-me seguir
O trilho frio
Até ao mar
 
Quando eu morrer
E me acharem na margem
Só vos peço um empurrão ligeiro
 
Depois vou a boiar
Como um pau
 
Vou a dormir
Como uma pedra
 
Para encravar
A engrenagem do maior cargueiro.
 
 
 
sebastião belfort cerqueira
está um dia lindo
edições sempre-em-pé
2021
 




21 outubro 2025

joão miguel fernandes jorge / e tu perguntas

  
 
E tu perguntas
fechando o corpo e a casa
o que fazemos aqui
como saímos daqui?
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019






20 outubro 2025

egito gonçalves / outubro

  
 
Os mortos esperam o frio de Novembro
enquanto as pétalas dos crisântemos se vão definindo
neste meio de Outubro, hereditariamente mortiço.
Os mortos estão esperando! Os cardíacos, os fuzilados,
os arrogantes, os tuberculosos, os suicidas
estão esperando as sus flores, o seu pretexto
para se imporem ao coração dos existentes
e manejarem a saudade como um látego,
rasgando a carne dos joelhos que amaram.
É a hora de nos ditarem a contemplação de pequenos objectos
sepultados no fundo de gavetas incómodas…
é a hora de se transformarem em flechas
e apresentarem os retratos fidelíssimos
para serem salgados de lágrimas veementes.
Ridículo oferecer-lhes um passeio no rio,
constelações em marcha, conferências sobre o sexo,
magazines ilustrados, foguetes luminosos…
o choro é essencial; Novembro não esquece,
reforça os seus pilares, não tardará a erguer-se.
Com os relógios quebrados contra o tempo
os mortos aguardam embrulhados nas horas que não têm,
enquanto as pétalas dos crisântemos já se torcem, disformes,
como a dor que depositaremos sobre os túmulos.
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020





 

19 outubro 2025

ángél gonzález / o outono atravessava

  
 
O Outono atravessava
as colinas de frágeis
tremores. Cada
folha caída
fazia estremecer uma montanha.
 
Leve rumor de luzes e de brisas
rolava pelo vale, aproximava-se.
Os pássaros deixavam bruscamente
trémulos os ramos
caindo rumo ao céu, arrebatados
por uma força estranha.
 
As carnosas urtigas
comprimiam-se
como um rebanho
inquieto. Levantavam da água
a cabeça, os juncos.
As verdinegras silvas
cresciam.
Imperceptíveis, mais delgadas
pela tensa postura de quem espera,
as ervas, desejantes…
                                        E tu chegavas,
e uma amarelenta paz de folhas caídas
refazia o silêncio atrás de ti.
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018
 



18 outubro 2025

josé saramago / até ao fim do mundo

  
 
É tempo já, Inês, o mundo acaba
Em que amor foi possível e urgente;
A promessa talhada nessa pedra,
Ou é cumprida hoje, ou tudo mente.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018




17 outubro 2025

josé gomes ferreira / melodia

  
 
II
Há anos de raiva
que te busco em vão.
Melodia!
 
No sopro dos meus versos,
nas fontes com sede,
nas portas que rangem,
na cólera do mar aberto…
 
Mas quem te ouve, Melodia,
para além do contorno do silêncio?
 
Pobre voz que trago em mim
e há-de morrer ignorada
nas trevas sum sol profundo
sem luas de superfície.
 
 
 
josé gomes ferreira
melodia 1932
poesia I
portugália
1972




16 outubro 2025

jorge luís borges / a luís de camões

  
 
Sem cólera nem mágoa arromba o tempo
As heroicas espadas. Pobre e triste,
À nostálgica pátria regrediste
Pra com ela morrer nesse momento,
O capitão, no mágico deserto.
Tinha-se a flor de Portugal perdido
E o áspero espanhol, antes vencido,
Ameaçava o seu costado aberto.
Quero saber se aquém da derradeira
Margem compreendeste humildemente
Que o império perdido, o Ocidente
E o Oriente, o aço e a bandeira,
Perduraria (alheio a toda a humana
Mudança) em tua Eneida lusitana.
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o  fazedor (1960)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




15 outubro 2025

henri michaux / je vous écris d´un pays lointain

  
2
 
Quando se passeia no campo, confidencia-lhe ela ainda, é possível encontrar-se no caminho massas consideráveis. São montanhas e, mais cedo ou mais tarde, temos de vergar os joelhos. Não serve de nada resistir, não poderíamos avançar mais, nem que nos fizéssemos mal.
 
Não é para magoar que o digo. Poderia dizer outras coisas, se quisesse realmente magoar.
 
 
 
henri michaux
(escrevo-lhe de um país distante, 1942)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999
 



14 outubro 2025

billy collins / como sempre

  
 
Depois de nos termos separado, os barcos
continuarão a sair do cais de madrugada.
O salmão batalhará até às piscinas*,
um mês seguir-se-á a outro na parede.
 
A magnólia florirá
e a abelha, a nobre abelha –
vi uma lá atrás na minha caminhada –
abrirá caminho para o botão.
 
*Penso nas piscinas como lugares onde os salmões vão para se repro-
duzir, para depositar os ovos depois da difícil viagem corrente acima.
(Billy Collins)

 
 
 
billy collins
a aranha irlandesa & outros poemas,
trad. francisco José craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2023


13 outubro 2025

paul éluard / fresco

  
 
V
 
Partiu de um belo Verão
Para celebrar os ramos mortos
De uma floresta preta e branca
Igual à noite destruída
 
Partiu forte e valente
Para descansar na praia
Com uma mão que descansa
Um trabalho demasiado bem feito
 
Partiu da sua infância
Do mais fundo da esperança
Para encontrar o seu próprio fim
Todo enrugado de remorsos.
 
 
paul éluard
a cama a mesa
tradução de luís lima
barco bêbado
2021




12 outubro 2025

manuel neto dos santos / terra firme, mar de anil



 
19
 
Quando um turbilhão, na alma, se desata
no ranger das vagas contra a barcaça anciã…
Aí na terra firme, dourada, pela manhã
a linha de um sorriso é curvatura ingrata.
 
 
manuel neto dos santos
terra firme, mar de anil
editora urutau
2021


 

11 outubro 2025

leonor castro nunes e marcos foz / a bifurcação dos ossos



 
16.
 
As narrativas ideológicas fluem nas costas de um triste sozinho no café
– a salvação do mundo é uma ocorrência diária no meu bairro
cada vez mais marginalizado pelos forasteiros e pela minha sonolência.
 
À excepção de uma mão-cheia de baleias,
já há pouco para resgatar nesta liquidez
e mesmo essas não me parecem contentes com a minha intenção.
Estamos melhor assim, confortáveis na languidez larvar
de quem sabe que se subir tem que descer
 
mas deixemos estes assuntos para os de vanguarda.
A melancolia da sala está a pedir uma valsa fora de horas.
 
 
 
leonor castro nunes
marcos foz
a bifurcação dos ossos
do lado esquerdo
2016





 


 

10 outubro 2025

gil t. sousa / alguns poemas de verão

  
 
I
 
e nas
suas mãos tão belas
passavam como caravelas
 
a luva do tempo
e a do vento
 
 
 
gil. t. sousa