18 novembro 2024

carlos de oliveira / porta

 
 
 
A porta que se fecha
inesperadamente na distância
e assusta o romancista
que descreve o seu quarto de criança
(é difícil dizer
se os velhos arquitectos
que punham tanto amor
na construção do quarto
teriam ponderado com rigor
a escala deste som
e o espaço coagulado
ao fundo do corredor)
a porta que se fecha no passado
sobressaltando a escrita e o escritor.
 
 
 
carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982




17 novembro 2024

álvaro de campos / poema de canção sobre a esperança

 
 
 
               I
  
Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar os lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios —
Os melhores lírios —
E as melhores rosas
Sem receber nada.
A não ser a prenda
Da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.
 
 
                II
 
Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambulhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
(Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser...
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!
 
17-6-1929
 
 
álvaro de campos
livro de versos,
fernando pessoa
estampa
1993





16 novembro 2024

ricardo reis / uma após uma as ondas apressadas

 
 
 
Uma após uma as ondas apressadas
Enrolam o seu verde movimento
E chiam a alva espuma
No moreno das praias.
Uma após uma as nuvens vagarosas
Rasgam o seu redondo movimento
E o sol aquece o espaço
Do ar entre as nuvens escassas.
Indiferente a mim e eu a ela,
A natureza deste dia calmo
Furta pouco ao meu senso
De se esvair o tempo.
Só uma vaga pena inconsequente
Pára um momento à porta da minha alma
E após fitar-me um pouco
Passa, a sorrir de nada.
 
23-11-1918
 
 
 
fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946




15 novembro 2024

zbigniew herbert / o seixo




 

 
o seixo é um ser
perfeito
 
igual a si mesmo
zela pelas suas fronteiras
 
inteiramente cheio
do sentido de ser pedra
 
tem um cheiro que nada lembra
não afugenta não desperta desejo
 
o seu entusiasmo e frieza
são justos e cheios de dignidade
 
sinto grande censura
quando o seguro na mão
e o seu corpo nobre
absorve um falso calor
 
                – Os seixos não se deixam domesticar
                hão-de observar-nos até ao fim
                com um olhar tranquilo e muito claro
 
 
 
zbigniew herbert 
poesia quase toda
tradução de teresa fernandes swiatkiewicz
cavalo de ferro
2024
 



 

14 novembro 2024

josé carlos ary dos santos / nona sinfonia

 
 
É por dentro de um homem que se ouve
o som mais alto que tiver a vida
a glória de cantar que tudo move
a força de viver enraivecida.
 
Num palácio de sons erguem-se as traves
que seguram o tecto da alegria
pedras que são ao mesmo tempo as aves
mais livres que voaram na poesia.
 
Para o alto se voltam as volutas
hieráticas     sagradas     impolutas
dos sons que surgem     rangem e se somem.
 
Mas de baixo é que irrompem absolutas
as humanas palavras resolutas.
Por deus não basta. É mais preciso o Homem.
 
 
 
ary dos santos
sonetos de amor e luta (1997)
ary, obra poética
edições avante!
2017
 



13 novembro 2024

nuno júdice / epigrama

 
 
 
A loucura é a grandeza dos simples:
assim são eles mais do que eles,
colhendo flores brancas e reles.
 
Os doidos, de olhos arregalados,
crescem devagar como as árvores:
só não dão folhas nem frutos.
 
Amo as suas frases sem sentido:
dobram nelas os sinos abstractos
de um campanário sem janelas.
 
Dai-me, ó loucos, a vossa razão
– esses remos de subir o tempo
até à fonte de um deus obsceno e nu.
 
 
 
nuno júdice
50 anos de poesia
antologia pessoal (1972-2022)
dom quixote
2024
 



12 novembro 2024

gastão cruz / outono do amor

 
 
 
                                        A voz e a vida a dor me está tirando
 
                                        Camões

 
 

Outono do amor que folhas moves
na direcção dos corpos separados
e molhas desses prantos     ignorados
de quem da primavera conheceu o
 
movimento das aves
e desses movimentos estas esperas
agora só conhece já e ouve
a própria voz descida com as folhas
 
a voz própria cansada
quando a vida
e a voz lhas está a dor tirando
 
Outono do amor outono de aves
e das vozes caladas e de folhas
molhadas de temor e surdo pranto
 
 
 
gastão cruz
as aves
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009




11 novembro 2024

eugénio lisboa / soneto do último ano

 
 
Quando se chega à idade que tenho,
o aniversário que se assinala
pode bem ser o último que venho
a fruir, antes de fechar a mala.
 
Fazer algo pela última vez
é uma experiência estranha:
mesmo que se trate só de talvez,
a coisa é estranha e não se entranha.
 
Beijar ou amar pela última vez,
não permitir dizer «mais uma vez»,
oferecer ao nada um ar cortês
 
é, digam o que disserem Vocês,
seja-se escocês ou mirandês,
fibra de guerreiro cartaginês!
 
25.05.2022
 
 
 
eugénio lisboa
poemas em tempo de guerra suja
guerra & paz
2022




10 novembro 2024

luís quintais / a imagem quase apagada

 
 
 
Dir-me-ás as certezas que não tenho
agora que o Inverno começou
 
e os dias, desamparados, celebram a luz
em perda, o mar que na sombra própria
 
se eclipsa, a noite, tela espessa
onde prometi escrever este poema.
 
A imaginação é meio caminho,
a realidade devora a metade restante.
 
Eu lembro-me de ti, és uma imagem
quase apagada no delicado álbum
 
dos dias felizes, o passado
deste futuro. As árvores – acácias –
 
são sopradas, o vento é imparável,
contradiz o afiado gume cm que retomo
 
a imagem quase apagada.
 
 
 
luís quintais
nocturama
assírio & alvim
2024




09 novembro 2024

nuno guimarães / arte que se desdobra sobre a mesa

 
 
 
Arte que se desdobra sobre a mesa
ao longo da toalha. Rigorosa
nas formas da madeira. No esforço
do linho semeado sobre a mesa.
 
Arte também do trigo que repousa
enérgico no pão sobre a toalha.
Negado à boca fria. E ao palato
sem poder de motor e já sem água.
 
Dobadoira que lavras a secura
do corpo de erosão. Que sem palavras
emigra a sua morte sobre a cama.
 
Dobadoira do pão e da pobreza
articulada à boca como um fruto
aberto e apodrecido sobre a mesa.
 
 
 
nuno guimarães
a carne
entre sílabas e lavas
poesia completa
assírio & alvim
2024
 



08 novembro 2024

josé emílio pacheco / a ilha




 

 
Chegámos à ilha. O Outono
abria caminho pelo ar, e no lago
as folhas encarnadas e amarelas flutuavam
como peixes mortos.
 
Só o crepúsculo me seguiu até à praia.
Águas cor de mar, pedras como ondas.
Por toda a parte
infinitas folhas caídas.
Eu e a ilha éramos
folhas também, e nunca o soubemos.
 
 
 
josé emílio pacheco
islas a la deriva (1973-1975)
a árvore tocada pelo raio
antologia poética
trad. miguel filipe mochila
maldoror
2024
 



 

07 novembro 2024

roger wolfe / noites de página em branco

 
 
 
Tu contra o mundo
e o mundo contra ti.
E nesta guerra só uma coisa
é certa:
vai haver
um morto.
 
 
 
roger wolfe
fazer o trabalho sujo
tradução de luís pedroso
língua morta
2020




 

06 novembro 2024

julio cortázar / instruções-exemplos sobre a maneira de ter medo

 
 
Numa aldeia da Escócia vendem-se livros com uma página em branco, página perdida num lugar qualquer do volume. Se o leitor der com essa página às três da tarde, morre.
 
Na Praça do Quirinal, em Roma, existe um ponto conhecido dos iniciados até ao séc. XIX e do qual, em noites d elua cheia, lentamente se vê mexer estátuas de Dióscuros que lutam com os seus cavalos encabritados.
 
Em Amalfi, ao findar a zona costeira, há um molho que entra pelo mar e pela noite. Ouve-se um cão a ladrar para lá do último candeeiro.
 
Um homem está a pôr pasta na escova dos dentes. De repente vê uma diminuta imagem de mulher deitada de costas, feita de coral ou talvez de miolo de pão colorido.
 
Ao abrir o armário para tirar uma camisa, um velho almanaque cai, que se desfaz, desfolha, que cobre a roupa branca com milhares de sujas borboletas de papel.
 
E um caixeiro-viajante a quem o pulso esquerdo começou a doer, mesmo debaixo do relógio. Ao tirá-lo, o sangue jorrou: a ferida revelava a marca de uns dentes muito finos. O médico acaba de nos examinar, ficamos descansados. A sua voz grave e cordial antecede os medicamentos cuja receita vai escrevendo, sentado à secretária. De vez em quando levanta a cabeça e sorri para nos animar. Não é nada de grave, numa semana já estaremos bons. Felizes recostamo-nos na poltrona, olhamos à volta, distraidamente. De repente, debaixo da secretária, na penumbra, vemos as pernas do médico. Tem as calças pelo joelho e usa meias de mulher.
 
 
 
júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973