06 março 2024

manuel a. domingos / segredo

 
 
 
Estas coisas
só minhas:
o medo
de morrer
 
e a maneira
como deitado
olho o tecto
a pensar o dia
 
 
 
manuel a. domingos
aprendiz
volta d´mar
2019




05 março 2024

gerrit kouwenaar / isto não

 
 
 
Isto não é bonito
isto não é ilegível
isto não é para crianças
 
isto não é linguagem cifrada
isto não dignifica o povo
 
isto é o lado de dentro
da tua porta de fora, isto
deves conhecer: a tua mão
colada ao trinco
 
no capacho debaixo dos pés
o jornal o semanário o mensário
o anuário
 
está calor e está a nevar
está a morrer em paz, a letra
comeu tudo, nada
é mentira, nada é passado, nada
foi digerido –
 
 
 
gerrit kouwenaar
uma migalha na saia do universo
antologia da poesia neerlandesa do século vinte
selecção de gerrit komrij
tradução de fernando venâncio
assírio & Alvim
1996




 

04 março 2024

fiama hasse pais brandão / do espaço-tempo?

 
 
 
Sobre o telhado, feito de espaço
que remata as paredes da casa,
as altas chaminés com o fumo desta hora
sobem no tempo, brancas e vãs.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002





03 março 2024

antónio ramos rosa / sujei o teu nome




 

Sujei o teu nome
para me libertar de ti
o sujo foi sombra
teu nome esqueci-o
 
O sujo era ferida
e eu falso cantava
Não reconheci a minha voz
Ai que deserta liberdade
 
Preso de novo
que rede tamanha
de laços e vozes
Um eco talvez
um eco incessante
 
 
 
antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985




 

02 março 2024

josé pascoal / convocatória




 
Sem título,
Sem mandato,
Convoco todos os sócios
Da poesia
E dos seus afluentes,
Para uma assembleia geral
Sem ordem de trabalhos,
A realizar no Dia-de-São-Nunca,
À hora nona dos calvários,
E cada um de vós traga
O que lhe der na gana,
O que lhe deram de prenda,
Seja o que for,
Para afogarmos no álcool
Dos livros
Esta sempre latente
E lancinante dor.
 
 
 
josé pascoal
ponto infinito
editorial minerva
2018




 

01 março 2024

antónio franco alexandre / duende





 

4.

Guardado na redoma o antigo pó
das perplexas ruínas de sodoma,
e aberto no jardim o estandarte
de livre amor em todos os sentidos,
ficou para mim só este interdito
modo de te querer sem nome ou emblema,
nem arte certa que na escola ensine
do poema o ruído mais decente.
Nem sei se existes nesse espaço oco
onde passam ridículos cometas
anunciando o fim de toda a terra;
se ao deixares-me se rasgou o tempo,
a água se fez ar, e fogo o vento;
ou se existe outro mundo além da pele.
 
 
 
antónio franco alexandre
duende
assírio & alvim
2002
 



 

29 fevereiro 2024

joaquim manuel magalhães / era como estar só

 




 
 
Era como estar só. Mas
estar só e feliz.
A varanda envidraçada,
o cheiro do café, um ramo
chamado pelo sono.
Sombras de sol batiam
no chão de madeira velha.
Restos de água da noite
brilhavam nos vidros
os primeiros insectos.
A maresia das aves costeiras
lanceoladas de luz.
Os olhos pousavam à espera
de te voltar a ter.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
de súbito
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990
 




28 fevereiro 2024

fernando pinto do amaral / escotomas

 
 
5.

Sempre que as sombras crescem, esta ferida
abre-se em mim – recordação
de um paraíso inabitável. Sonho,
mas cada sonho deixa atrás de si
a cicatriz de um beijo que adormece
nos meus lábios desertos.
 
Sempre que a lua acorda e espalha
o seu perfume azul neste jardim,
a luz de uma pergunta sobe, agonizante,
pela atmosfera pouco a pouco
mais fria, rarefeita. A minha sede
precisa desse voo,
dessa fé que renasce e procura
beber algum presságio nas estrelas,
florescer na penumbra, acreditar
na memória de Deus
sob o gelo dos olhos que flutuam
de céu em céu, de vida em vida, às vezes
tão perto de um oásis.
 
 
 
fernando pinto do amaral
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000




27 fevereiro 2024

mário-henrique leiria / claridade dada pelo tempo

 




 
7
 
do meu braço
a mancha de sangue
corre incessantemente
 
comboio esperado há muito
sombra da noite
talvez o corvo
em que não acreditamos
 
em criança aprendi
a olhar a lua distante
mar ignorado da memória
– lâmina aguda e
extremamente fina –
 
a grande aranha do tempo
duas asas       sono que
nos foi dado outrora
 
 
                                   junho- 1950
 
 
 
mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018
 





26 fevereiro 2024

joão miguel fernandes jorge / a neve começa

 
 
A neve começa. O frio
torna o ar transparente.
Perigo
é uma carta que vem longe.
 
A terra traz os frutos.
 
Tu dirás que sou eu
eram meus olhos
nunca a neve foi silêncio
nem o frio
voo de ave.
 
Suspenso da atmosfera crepuscular
vem pela luz da madrugada
 
conheço os seus cabelos cortados em mármore
versos calmos e razoáveis tinham sido as palavras
reconheço os traços vigorosos do seu rosto
ao qual dirás que
 
nunca foram silêncio nem o frio voo de ave.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019





25 fevereiro 2024

armando silva carvalho / o peso das fronteiras

 
 
 
Aqui me tens. E o texto.
Partículas. Partes sensíveis, pequenas
vísceras onde ocultam vermes;
uma poeira doce;
depois uma ferida.
 
Repara bem nas frases.
Na lenta fusão das letras sob o estômago.
Feriste-me. E as sílabas de um mar
há tanto, tanto tempo desejado,
vais ouvi-las mais tarde
quando discutes Marx, ofendes os amigos
ou passeias de mão dada com os poderes do tédio.
 
Insisto apenas para que me descubras.
Mais ou menos absorto. Virado de costas
ou simplesmente lendo
sem fome as páginas do tempo.
Nunca pesei muito.
Aliás, repara, quando os textos explodem
e se notam no ar as mil paciências
sobre a paciência;
quando a solidão se escama
como um peixe dúbio,
tudo se torna leve, final, tenso, coeso,
e tu podes ouvir, uivando,
um cão banhado em lágrimas.
 
Eu sou eu. Um cão dentro do túnel.
Já de patas desfeitas. Mais frio. Ao frio.
Roubando, entre os antigos, ossos
roendo, entre os modernos, mitos.
 
Os poetas começam onde acaba isto.
Este penso infectado que me pões nos olhos.
Um país termina. Logo nasce um outro.
E o território és tu.,
população, governo.
Amor administrativo; viva pátria
dos cínicos.
 
Vamos: sacode as armas quietas
da mentira.
Alarga as fronteiras
com teu riso sinistro.
 
Eu, mar, ligadura dobrada
sobre o sol do amor,
ardo na terra. Vou e venho.
E, além do mais, sou isto.
 
 
 
armando silva carvalho
o peso das fronteiras 1976
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007
 




24 fevereiro 2024

irene lisboa / sobre as palavras

 
 
 
SOBRE as palavras, sua importância e oportunidade, seu valor, bastas vezes me tenho detido.
 
No próprio acto de escrever (como as palavras, afinal, é que o permitem) esta reflexão de acode e me peia tanta vez: a linguagem antecede ou sucede o pensamento? que parte faz dele?
 
Nem a mim própria me pareça tola a minha pergunta!
 
A linguagem aflui-nos, ou vem-nos num certo encadeamento mental em que nos envolvemos, em que penetramos, como um surto natural, mais ou menos fácil, do espírito. (Lembremo-nos dos faladores solitários, faladores sem ouvintes.) E assim, sobre uma rápida, esporádica ou fugidia ideia, qualquer ideia ou sensação – tão difícil é desembaraçar estas daquelas! – as palavras entram num jogo de certa independência, mudas ou articuladas, ou até mesmo gesticuladas e vagas, sobrepondo-se à tal coisa (ideia ou sensação), perseguindo-a e fugindo-lhe e enredando-se nela… confundindo-se e dilatando-se à custa dela, a ponto de a afogarem, não poucas vezes… de a excederem!
 
É que as palavras têm espírito e vida por si próprias. O que tão bem se patenteia musical e sentimentalmente no verso. Um espírito que arrasta e sujeita os seus forçados manejadores, mau grado o desejo de supremacia e de domínio da parte destes.
 
Mercê das palavras usadas se salta de um para outro lado… Chegando nós a tornar-nos confusos e prolixos, pouco substanciosos, acorrentados àquele tal sortilégio.
 
Mas é amor o que as palavras em nós despertam! Um gosto de as seguir, de as explorar e até de as esperar pacientemente para que qualquer coisa interior, nossa, saia do seu limbo.
 
E não serão elas próprias que a criam, frequentemente?
 
 
 
irene lisboa
da estrela
solidão II
portugália editora
1966
 




23 fevereiro 2024

inger christensen / alfabeto

 




 

7
 
as guerras existem, as ruas, o esquecimento
 
e a erva e os pepinos e as cabras e o tojo,
o entusiasmo existe, as guerras existem;
 
os galhos existem, o vento que as levanta
existe e o desenho único dos galhos
 
da árvore chamada carvalho existe,
da árvore chamada freixo, bétula,
o cedro existe, o desenho repetido
 
existe, no saibro do caminho do jardim; existe
também o pranto, e o epilóbio e a Artemisa existem,
os reféns, os gansos, as crias dos gansos;
 
e as armas existem, um enigmático logradouro,
selvagem, ermo e decorado apenas com groselhas,
as armas existem; no meio do iluminado
gueto químico existem as armas
com a sua antiquada e pacífica precisão existem
 
as armas, e as mulheres lamentando, saciadas
como corujas gananciosas; a cena do crime existe;
a cena do crime, sonolento, normal e abstracto,
banhando numa luz caiada, abandonada,
este poema venenoso, branco, que se desintegra
 
 
 
inger christensen
alfabeto
trad. ricardo marques
não (edições)
2024