24 dezembro 2021

ovídio / metamorfoses

 
 
No centro do mundo há um lugar situado entre as terras,
o mar e as regiões celestes, os limites do tríplice universo.
Dali se avista tudo o que acontece em qualquer sítio, mesmo
no mais distante, e todas as vozes lhe chegam às orelhas ocas.
Mora ali o Rumor. Escolhera casa para si no cimo da cidadela.
À mansão proporcionou entradas sem conta e mil aberturas,
mas com portas nenhumas fechou os umbrais: de noite e de dia
permanece escancarada. É toda feita de bronze ressonante:
ela vibra toda, e ecoa as palavras todas, e repete o que ouve.
Lá dentro não há sossego nem silêncio em parte alguma.
Não é, porém, um clamor, mas antes um murmurar baixinho,
tal como costuma soar as ondas do mar quando se ouvem
ao longe, ou como o som do troar dos derradeiros trovões
quando Júpiter faz ribombar as negras nuvens.
O átrio formiga de gente; vêm e vão, multidão insubstancial,
e por toda a parte vagueiam milhares de rumores, falsidades
à mistura com verdades, e fazem rebolar conversas confusas.
Estes atafulham os ouvidos ociosos com mexericos,
aqueles levam aos outros o que ouviram contar, e a invenção
cresce de tamanho: cada um junta algo de novo ao que ouviu.
Ali mora a Credulidade, ali o Erro que age sem pensar,
e a Alegria fútil, tal como os angustiados Temores,
e a repentina Sedição, e os Sussurros, de origem incerta.
Dali o Rumor observa tudo o que se passa no céu e no mar
e na terra, e tudo procura inquirir sobre o mundo inteiro.
 
 
 
ovídio
metamorfoses
livro XII
tradução paulo farmhouse alberto
livros cotovia
2018




 

23 dezembro 2021

luís miguel nava / retrato

 
 
A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.
Há quem, tendo-a metida
num cofre até às mais fundas raízes,
simule não ter pele, quando
de facto ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária, era uma pele metida
consigo mesma e que servia
de poço, onde além de água ele procurava protecção.
 
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020




 

22 dezembro 2021

antónio franco alexandre / (norte)

 
 
 
Das cidades, a melhor é Porto em Portugal.
É uma questão de nuca.
Viseu do Pará tem os seus encantos,
Belém, beleza. Mas –
Outra é a floresta nas cidades do Norte.
 
Cruzam-se pontes no ar;
uns poucos barcos balouçam;
por todas as ruas vais virar de sorte,
vais mudar de norte, vais guinar.
Acabou-se a flânerie: vamos de caça e colheita.
O trabalhoso verso, quando serve
ou salva, é quase por acaso.
 
Ajuda a arquitectura, e o vento, e a chuva.
Faz quente pudera, está o rio a arder;
ficou-me do cerco um gosto de alturas,
um gosto de ser.
Depois do tempo todo que perdi
a andar a pé no mar,
aqui encontro casa que me habite,
modos de desembarcar.
 
 
 
antónio franco alexandre
poemas
carrocel
assírio & alvim
2021




 

21 dezembro 2021

philippe jaccottet / interior

 
 
Há muito tempo que procuro viver aqui,
neste quarto que finjo amar,
a mesa, os objectos sem inquietação, a janela
abrindo-se ao fim de cada noite para outros verdores,
e o coração do melro que bate dentro da hera sombria,
por todo o lado os fulgores derrotam a sombra
                                                              envelhecida.
 
Também eu aceito acreditar que é agradável,
que estou em casa, que o dia será bom.
Mesmo junto ao pé da cama, esta aranha
(por causa do jardim) que não espezinhei
Suficientemente, dir-se-ia que prepara ainda
a armadilha espera o meu frágil fantasma…
 
 
 
philippe jaccottet
descida brusca de temperatura
alguma poesia suíça
tradução de luís filipe parrado
contracapa
2021




 
 
 

20 dezembro 2021

ernst moerman / mil anos na vida de um pássaro

 
 
Não sei muito bem quem sou.
As minhas questões, lá no céu, parecem indiscretas,
E toda a gente aqui tem um ar tão apressado.
 
Porque havia eu de fazer como eles?
O meu lugar está reservado, na morte.
Cem mil pássaros voam em meu redor,
E fingem não me avistar.
Cem mil pássaros de cristal
Invisíveis aos olhos do Mal.
 
É no meio desses pássaros
que me sinto mais à vontade;
os pássaros não têm começo nem fim.
Incessantemente pousam no que digo
E o que escrevem no céu
Deve ser lido ao contrário.
Os homens sacam ferros dos bolsos,
E prendem-nos pelos seus crimes impunes.
Na confluência do homem e da noite,
Três arames inimigos
Desenham no céu um triângulo,
Cujos três ângulos
Em conjunto valem dois ângulos rectos.
 
Triângulos no céu
Trespassados pela bruma,
Permitem aos pássaros sem memória
Partilhar entre si a noite.
 
Não sei muito bem quem sou.
Mas lembro-me duma noite de tempestade
Em que não pude afogar-me no mar.
A minha mãe ensinou-me a pintar-me de azul,
Para escapar às flechas do caçador.
Sou o urso do céu,
Num mundo em que o metal não tem cor,
E a música é imóbil.
 
Não sei muito bem quem sou.
E conheço poucas coisas.
Conheço o cheiro da Terra
Como conheço a chuva do Céu,
Entre dois fumos.
 
A morte é uma ladra de pássaros.
E é por ela que agora sei,
Que fui um pássaro.
 
 
 
 
O mundo, esse nó corrediço à volta do pescoço,
Para os muito jovens, apertado se usa,
Para os muito velhos, frouxo se usa,
Mas a juventude, para comprar cordas
Não tem dinheiro.
E a velhice já não tem pescoço.
 
 
 
ernst moerman
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021
 



 

19 dezembro 2021

cesare pavese / o paraíso sobre os telhados

 
 
Será um dia tranquilo, de luz fria
como o sol que nasce ou que morre, e o vidro
fechará por fora o ar sórdido.
 
Acorda-se uma manhã, de uma vez para sempre,
na tepidez do último sono: a sombra
será como a tepidez. Encherá o quarto
pela grande janela um céu mais vasto.
Da escada subida um dia para sempre
não virão mais vozes nem rostos mortos.
 
Não será preciso deixar a cama.
Só a aurora entrará no quarto vazio.
Bastará a janela para vestir cada coisa
de uma claridade tranquila, quase uma luz.
Pousará uma sombra descarnada no rosto supino.
As recordações serão coágulos de sombra
calcados quais velhas brasas
na chaminé. A recordação será a chama
que ainda ontem picava nos olhos apagados.
 
 
 
cesare pavese
paternidade
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997
 


18 dezembro 2021

rené char / folhas de hipno

 
135

Não era preciso amar os homens para os socorrer eficazmente. Apenas desejar melhorar essa expressão do seu olhar quando este recai sobre qualquer coisa mais miserável do que eles, prolongar por um segundo um certo minuto agradável da sua vida. Dado esse passo e tratadas todas as raízes, a sua respiração tornar-se-ia mais serena. Sobretudo, não lhes suprimir inteiramente esses caminhos penosos, a cujo esforço se sucede a evidência da verdade por entre lágrimas e frutos.
 
 
    
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000




17 dezembro 2021

pier paolo pasolini / who is me, poeta das cinzas

  
[…]
 
Como é que me tornei marxista?
Bem… passeava eu entre florzinhas cândidas e azulinhas
                                                                                          [da Primavera,
aquelas que nascem logo depois das prímulas,
– e pouco antes de as acácias se carregarem de flores,
odorosas como carne humana, que se decompõe ao calor
                                                                                                    [sublime
da mais bela estação –
e escrevia nas margens de pequenas lagoas
que lá, na aldeia da minha mãe, com um daqueles nomes
intraduzíveis se chamam “fundas”,
com os rapazes filhos dos camponeses,
que inocentes, se banhavam
(porque viviam impassíveis à vida que levavam,
enquanto eu achava que tinham consciência daquilo que eram)
escrevia os poemas d’ «O Rouxinol da Igreja Católica»:
passava-se isto em ’43:
em ’45 <foi completamente diferente>.
Aqueles filhos de camponeses, já um pouco mais crescidos,
um dia puseram ao pescoço um lencinho vermelho
e marcharam
em direcção ao centro do governo, com as suas portas
e os seus palacetes venezianos.
Foi assim que soube que eram trabalhadores,
e que, portanto, havia os patrões.
Pus-me ao lado dos trabalhadores e li Marx.

[…]
 
 
 
pier paolo pasolini
who is me
poeta das cinzas
trad. de ana isabel soares
barco bêbado
2021




16 dezembro 2021

mário cesariny / estado segundo

 
 
 
IV
 
Um corte nos dedos      e agora
que estamos no inverno
vale a pena esperar mais depressa
a maravilha minúscula
o império
que foi comprado para bêbados
a dez centavos o hectar
 
 
 
mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1999




15 dezembro 2021

ruy belo / relatório e contas

 
 
Setembro é o teu mês, homem da tarde
anunciada em folhas como uma ameaça
Ninguém morreu ainda e tudo treme já
Ventos e chuvas rondam pelos côncavos dos céus
e brilhas como quem no próprio brilho se consome
Tens retiradas hábeis, sabes como
a maçã se arredonda e se rebola à volta do que a rói
Há uvas há o trigo e o búzio da azeitona asperge em leque o som inabalável
nos leves ondulados e restritos renques das mais longínquas oliveiras conhecidas
Poisas sólidos pés sobre tantas traições e no entanto foste jovem
e tinhas quem sinceramente acreditasse em ti
A consciência mói-te mais que uma doença
reúnes em redor da casa equilibrada restos de rebanhos
e voltas entre estevas pelos múltiplos caminhos
Há fumos névoas noites coisas que se elevam e dispersam
regressas como quem dependurado cai da sua podridão de pomo
Reconheces o teu terrível nome as rugas do teu riso
começam já então a retalhar-te a cara
Despedias poentes por diversos pontos realmente
És aquele que no maior número possível de palavras nada disse
Comprazes-te contigo quando o próprio sol
desce sobre o teu pátio e passa tantas mãos na pele dos rostos que tiveste
Repara: não esbarras já contra a cor amarela?
Setembro na verdade é mês para voltar
Podes tentar ainda alguns expedientes respeitáveis
multiplicar diversas diligências nos ameaçados cumes dos outeiros
ser e não ser fugir do rótulo aceitar e esquivar o nome fixo
E no entanto é inevitável: a temperatura descerá mais dia menos dia
Calas-te então cumprido como um rosto e puxas toda a tarde
sobre esse corpo que se estende e jaz
Andaste de lugar para lugar e deste o dito por não dito
mas todos toda a vida teus credores saberão onde encontrar-te
pois passarás a estar nalguma parte
Tens domicílio ali que a terra sobe levemente
e toda a tua boca ambiciosa sabe e sente quanto barro encerra
 
 
 
ruy belo
todos os poemas I
o testamento de elvira sanches
assírio & alvim
2004




14 dezembro 2021

luis garcia montero / canção 2001

 
 
Os jornais são
longas noites de inverno.
 
As minhas palavras ardem no lume.
 
E nos televisores
chove no molhado,
precisamente ali onde a terra
não conhece a chuva.
 
O frio do sermão
descobriu rosas, castigos e milagres
nas regras impuras da objectividade,
e agora vende notícias
em vez de areia branca nos passos do náufrago
ou liberdade nos cemitérios.
 
São as regras
e o mar não as esquece.
Espero-te à luz de um passado imperfeito.
Chegas pelas sombras de um futuro perdido.
 
 
 
luis garcia montero
a intimidade da serpente (2003)
as lições da intimidade
antologia
trad. de nuno júdice
abysmo
2018




 

13 dezembro 2021

albano martins / as palavras do pai

 
 
Olha, meu filho, esta
é a árvore
da vida. Crescerás
com ela. Às vezes
nos seus ombros colherás
lágrimas em lugar
de frutos, mas
é nos ramos mais altos
que o sonho
mora e a liberdade
floresce.
 
 
 
albano martins
por ti eu daria
toda a poesia
caderno de argolas (2000-2010)
glaciar
2021




 

12 dezembro 2021

josé agostinho baptista / eden mar hotel

 
 
Anoitece.
No promontório a oeste,
as aves do mar parecem adormecidas.
Uma única estrela acende a sua luz sobre o
horizonte,
sobre as lanternas brancas e azuis,
sobre a inquietação dos peixes vermelhos.
Mas nada se ouve.
Ninguém bate à porta,
os amigos são apenas uma palavra vazia,
sepultada para sempre.
Silenciosamente,
duas lágrimas descem do meu rosto,
na varanda deste hotel,
entre as árvores do fogo e a noite em ruínas.
Fecho os olhos.
Dói, às vezes docemente, dói a vida.
 
 
 
josé agostinho baptista
quatro luas
assírio & alvim
2006