V
Explico uma cidade quando as luzes evoluem.
Quando é assaltada pelos gestos devotados.
Explico um espaço solene e unido
por virtude do fogo infantil.
Com a boca sobre um casulo
de som, uma criança
é sempre livre e encerrada.
Explico uma cidade através
de brilhos interiores. De pedras raras
viradas na palma da mão.
Cidades são janelas em brasa com cortinas
puras, e pracetas com chuva entre aspas.
Rostos de mulheres em jarras.
Ou girando sobre gonzos.
E por dentro de tudo a morte ou a loucura.
Estátuas encarnadas cheias
de peixes. E o silêncio
dobrado para a frente, na força da luz.
Cidades existem entre as mães que contemplam
as flores e folhas
do sono. A criança roxa
e prolongada para dentro, como no fundo
de uma estampada idade do ouro.
Cidades são aposentos fixos
quer na cabeça, entre brasas, quer
no gosto, na audição.
Barulho de passos, profundidade,
devotamento misterioso.
É o girassol do talento materno,
amando o movimento por cima brilhante.
e atirado, pela fascinação
da noite, para o gelo virgem da terra.
Ao longo de sons sempre passaram
mulheres apaixonadas,
separando os pés sobre frígidas gotas.
Mulheres partindo, chegando, voltando
o corpo na luz suspensa
e inteligente. Mulheres cheias de uma
atenta suspeita.
Vergadas para o fundo de uma existência
dura e pura.
Cidades que se envolvem de ecos e em cuja
solidão extraordinária
as mulheres batem seus dedos puros.
Sua sinistra fantasia.
Tiradas dos limbos segundo um ardente
princípio de ilusão.
Amadas tragicamente por Deus e entrando
na corrupção de Deus.
São quentes e frias, colocadas sobre moventes
comoções antigas.
Metidas pelo espanto dentro, enterradas
até ao livre espírito e ao terror.
Fábulas de comércio.
Imagens delicadas de uma suave indústria.
Cidades dotadas de uma inteira falta de intenção.
Abertas a ligeiras canções tenebrosas e,
sobre as graves canções, fechadas
como pedras frias.
Na noite impressa nos dois lados e,
pelo mais escuro lado antigo,
a revelação. Cada cidade é uma vingança
anterior onde a beleza passa
vestida de mulher.
Beleza lembrada e relembrada em seu
circuito ardente.
Escoada, esquecida.
E logo ressurrecta.
Tão próxima.
Cidades vazias de cócoras contra a noite,
ao lado de uma enorme ressurreição. Lírica
antropofagia.
E os arquitectos deslocam-se, unindo
nos dedos a pedra encurvada.
Ouvindo o som contra o som.
Imaginando logo uma paixão espantosa
no sono.
E agarrando-se às vozes, como as vozes brilhantes
se agarram à língua para fora.
Arquitectos fechados sobre as mãos com instrumentos
que se voltam no ar. Principiando
a queimar-se.
Isolando concepções geladas
que entram na terrível purificação universal.
E então levanta-se o exemplo dos violinos,
voando à altura das janelas.
Dos malmequeres aglomerados.
De galáxia em galáxia de encontro às cabeças.
E eis o que se ama: o sino
das mulheres e dos homens distantes.
Arco ligado que leva a música
pelos dedos à pedra.
Eis que se ama as cordas, as chaves,
a caixa soante dos mortos.
herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996