11 dezembro 2018

anna akhmatova / tantas vezes maldizia



Tantas vezes maldizia
Este céu e esta terra,
As mãos do moinho com musgo
Agitando-se pesadas!
No anexo está um morto,
Hirto e grisalho, num banco,
Como há três anos atrás.
Os ratos roem os livros,
Para a esquerda verga a chama
Da vela de estearina.
E canta e canta odioso
O guizo de Níjni-Novgorod
Uma singela canção
Da minha alegria amarga.
E pintadas vivamente
Erguem-se rectas as dálias
Pelo carreiro de prata
Com caracóis e absinto.
Foi assim: a reclusão
Tornou-se segunda pátria,
Mas da primeira não ouso
Nem nas preces recordar.

Julho de 1915
Slepnevo




anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003







10 dezembro 2018

steve klepetar / mille feuille




Ando à procura de alguém nesta
rua deserta, perto dum café onde
um dia comemos o melhor Mille Feuille

de sempre, mas ela desapareceu há horas,
muito depois de todos os camiões passarem,
os autocarros arquejarem e se sumirem no calor.




steve klepetar
o filho da bebedora de café
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018










09 dezembro 2018

alberto caeiro / não basta abrir a janela





Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

4-1923



alberto caeiro
poemas inconjuntos
poemas de alberto caeiro, fernando pessoa
àtica
1946






08 dezembro 2018

eugénio de andrade / branco no branco




XLIX

As casas entram pela água,
a porta do pátio aberta à estrela
matutina, em flor
os espinheiros,

nas janelas apenas a cintilação
juvenil do mar antigo,
esse que viu ainda as naves
do mais errante de quantos marinheiros

perderam norte e razão
a contemplar a reflectida estrela
da manhã:
só na morte não somos estrangeiros.




eugénio de andrade
branco no branco
poesia
fundação eugénio de andrade
2000






07 dezembro 2018

juan gelman / nota XXII




     ossos que deram fogo a tanto amor
exilados do sul sem casa ou número
agora dessonham tanto sonho destruído
uma fadiga distrai sua alma

     passeiam pela dor como crianças
sob a chuva alheia / uma mulher
fala em voz baixa com seus pedacinhos
como embalando-os não ser / ou nunca

     partiram do país ou pátria ou puma
que percorria a cabeça como
dita infeliz / país de memória

     onde nasci / morri / tive substância /
ossinhos que juntei para acender /
terra que me enterrava para sempre



juan gelman
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. josé bento
assírio & alvim
2001






06 dezembro 2018

richard zenith / só coisas boas



Nas ruas das grandes cidades do Brasil
Ninguém carrega consigo uma história.
Os rapazes que se esfregam pelo bar à esquina
Respiram leveza, de camisas brancas
Desabotoadas. Já têm idade para
Gostar de cerveja mas ainda não sentem o barulho
E os escapes dos autocarros parando pela Avenida
Abaixo. E nem sequer vêem os mendigos
Estropiados batendo o passeio largo e sujo.
Porém eles (os rapazes) por vezes dão-lhes
Dinheiro, como se fosse natural, ou mesmo,
Uma vez por outra, uma cerveja. E então eles
(Os mendigos) vão andando de mãos
Estendidas, como se fossem elas
A oferecer a vida ao mundo.

Pago a minha cerveja e vou atrás deles
Na torrente pedestre, onde todos
São exactamente o que eu vejo à luz sem nuvens
Do sol subtropical. Esbarro em alguém
E instintivamente volto-me
Com uma desculpa muda, por sua vez recebida
Pela linguagem universal de olhos e mãos,
Que foi sem querer,
Aconteceu, e eu avanço, perdido
De repente no presente entre tantos como eu.



richard zenith
trad. maria irene ramalho
poesia do mundo/2
edições afrontamento
1998








05 dezembro 2018

jane hirshfield / os meus olhos




Uma hora não é uma casa,
uma vida não é uma casa,
não se atravessam como se
fossem portas dando para outra.

Contudo uma hora pode ter forma e proporção,
quatro paredes, um tecto.
Pode deixar-se cair uma hora como se fosse um copo.

Alguns querem tranquilidade como outros querem pão.
Alguns querem sono.

Os meus olhos foram
à janela, como um gato ou um cão deixado sozinho.



jane hirshfield
a mulher do casaco vermelho
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017








04 dezembro 2018

neil curry / sobre a vida em geral




Às vezes parece-me viver a minha vida
Como uma criança no circo, espantada
Com os leões, os malabaristas e os palhaços,
A equilibrista de saia de lantejoulas;
Silenciosa perante tanta animação e
O encanto de tudo; um silêncio
Para o qual tanto desejo encontrar palavras.



neil curry
companhia a mrs woolf
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017









03 dezembro 2018

steve mccaffery / k como em sono



Devia achar difícil
reencontrar o lugar entre estas perdas,
véus,
o que não faz história.

O primeiro bígamo e apontar
para atributos canónicos
onde um corpo vem e se desfaz
dividido em despidas agressões
do espelho.

Não entender
como imobilidade
o signo
que é
ou o fio de cabelo que entre outros
permite
a definição.

Ficar afásico.
Apenas frequentar a linguagem
quando nos perturba.


Aqui ninguém tem por certa
a voz da paixão
o desejo televisivo de permanecer
a criança de serviço
com a lembrança de encomenda, pois
o ódio em agonia é diferente
numa cena possuída
depois reencenada.



steve mccaffery
poesia do mundo/3
trad. graça capinha
edições afrontamento
2001







02 dezembro 2018

alberto caeiro / sim, talvez tenham razão.




Sim, talvez tenham razão.
Talvez em cada coisa uma coisa oculta more,
Mas essa coisa oculta é a mesma
Que a coisa sem ser oculta.

Na planta, na árvore, na flor
(Em tudo que vive sem fala
E é uma consciência e não o com que se faz uma consciência),
No bosque que não é árvores mas bosque,
Total das árvores sem soma,
Mora uma ninfa, a vida exterior por dentro
Que lhes dá a vida;
Que floresce com o florescer deles
E é verde no seu verdor.

No animal e no homem entra.
Vive por fora por dentro
É um já dentro por fora,
Dizem os filósofos que isto é a alma
Mas não é a alma: é o próprio animal ou homem
Da maneira como existe.

E penso que talvez haja entes
Em que as duas coisas coincidam
E tenham o mesmo tamanho.

E que estes entes serão os deuses,
Que existem porque assim é que completamente se existe,
Que não morrem porque são iguais a si mesmos,
Que podem mentir porque não têm divisão [?]
Entre quem são e quem são,
E talvez não nos amem, nem nos queiram, nem nos apareçam
Porque o que é perfeito não precisa de nada.

4-6-1922



alberto caeiro
poemas inconjuntos
poemas completos de alberto caeiro, fernando pessoa
presença
1994







01 dezembro 2018

herberto helder / poemacto




III
O actor acende a boca. Depois, os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor põe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.
O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.

Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus,
e dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente
como o actor.
Como a unidade do actor.

O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.

Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas —
o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.

Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomima.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.

O actor em estado geral de graça.


herberto helder
poesia toda
poemacto
assírio & alvim
1996







30 novembro 2018

egito gonçalves / aldebaran




Toda a tarde colhi amoras num poema de Ginsberg,
mastigando-as com alguns pensamentos desordenados
que em ti se detinham – como numa paragem de autocarro.


Depois fizemos café numa velha cafeteira
arruinada
que Allen encontrara a limpar as ervas
da sua nova casa de campo
em Berkeley. Enquanto bebíamos
expliquei-lhe as razões que tornavam o teu nome
impronunciável
e o escondiam numa estrela. Falei-lhe disso
e da tua indesmentível energia pélvica.
Sentíamo-nos ambos muito sós
a cortar em fatia sanduíches de realidade.



egito gonçalves
poesia do mundo
edições afrontamento
1995








29 novembro 2018

vasco graça moura / luz




à noite quando alfama se calou
e já não há ninguém pela calçada
ficamos presos entre o que te dou
e o que me dás a mim na madrugada

em corpo e alma somos roda-viva
de afagos tão suaves, tão urgentes,
de bocas, línguas, dentes e saliva,
e das aparições impacientes

depois vem o cansaço que se embala
num leve sussurrar só de ternura
como as naus que baloiçam numa escala
onde as levaram brisas de aventura

e ao fim da noite vemos no postigo
que entretanto nasceu a estrela de alva
um arco-íris serve-nos de abrigo
e o céu é cor de rosa e cor de malva

e se alta madrugada assim nos demos,
no mais fundo de nós era preciso
também esse sinal de que pusemos
na própria entrega a luz do paraíso



vasco graça moura
a puxar ao sentimento
quetzal
2018