02 dezembro 2018

alberto caeiro / sim, talvez tenham razão.




Sim, talvez tenham razão.
Talvez em cada coisa uma coisa oculta more,
Mas essa coisa oculta é a mesma
Que a coisa sem ser oculta.

Na planta, na árvore, na flor
(Em tudo que vive sem fala
E é uma consciência e não o com que se faz uma consciência),
No bosque que não é árvores mas bosque,
Total das árvores sem soma,
Mora uma ninfa, a vida exterior por dentro
Que lhes dá a vida;
Que floresce com o florescer deles
E é verde no seu verdor.

No animal e no homem entra.
Vive por fora por dentro
É um já dentro por fora,
Dizem os filósofos que isto é a alma
Mas não é a alma: é o próprio animal ou homem
Da maneira como existe.

E penso que talvez haja entes
Em que as duas coisas coincidam
E tenham o mesmo tamanho.

E que estes entes serão os deuses,
Que existem porque assim é que completamente se existe,
Que não morrem porque são iguais a si mesmos,
Que podem mentir porque não têm divisão [?]
Entre quem são e quem são,
E talvez não nos amem, nem nos queiram, nem nos apareçam
Porque o que é perfeito não precisa de nada.

4-6-1922



alberto caeiro
poemas inconjuntos
poemas completos de alberto caeiro, fernando pessoa
presença
1994







01 dezembro 2018

herberto helder / poemacto




III
O actor acende a boca. Depois, os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor põe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.
O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.

Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus,
e dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente
como o actor.
Como a unidade do actor.

O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.

Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas —
o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.

Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomima.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.

O actor em estado geral de graça.


herberto helder
poesia toda
poemacto
assírio & alvim
1996







30 novembro 2018

egito gonçalves / aldebaran




Toda a tarde colhi amoras num poema de Ginsberg,
mastigando-as com alguns pensamentos desordenados
que em ti se detinham – como numa paragem de autocarro.


Depois fizemos café numa velha cafeteira
arruinada
que Allen encontrara a limpar as ervas
da sua nova casa de campo
em Berkeley. Enquanto bebíamos
expliquei-lhe as razões que tornavam o teu nome
impronunciável
e o escondiam numa estrela. Falei-lhe disso
e da tua indesmentível energia pélvica.
Sentíamo-nos ambos muito sós
a cortar em fatia sanduíches de realidade.



egito gonçalves
poesia do mundo
edições afrontamento
1995








29 novembro 2018

vasco graça moura / luz




à noite quando alfama se calou
e já não há ninguém pela calçada
ficamos presos entre o que te dou
e o que me dás a mim na madrugada

em corpo e alma somos roda-viva
de afagos tão suaves, tão urgentes,
de bocas, línguas, dentes e saliva,
e das aparições impacientes

depois vem o cansaço que se embala
num leve sussurrar só de ternura
como as naus que baloiçam numa escala
onde as levaram brisas de aventura

e ao fim da noite vemos no postigo
que entretanto nasceu a estrela de alva
um arco-íris serve-nos de abrigo
e o céu é cor de rosa e cor de malva

e se alta madrugada assim nos demos,
no mais fundo de nós era preciso
também esse sinal de que pusemos
na própria entrega a luz do paraíso



vasco graça moura
a puxar ao sentimento
quetzal
2018







28 novembro 2018

charles bukowski / uma definição




o amor é uma luz
a correr de noite pelo nevoeiro

o amor é uma carica de cerveja
pisada a caminho
da casa de banho

o amor é a chave de casa perdida
quando estás bêbado

o amor é o que acontece
uma vez a cada dez anos

o amor é um gato esmagado

o amor é o velho ardina
na esquina
que já desistiu

o amor é o que tu pensas que a outra
pessoa destruiu

o amor é o que desapareceu
na época dos vasos de guerra

o amor é o telefone a tocar
a mesma voz ou outra voz
mas nunca a voz
certa

o amor é traição
o amor é a incineração
de vagabundos num beco

o amor é ferro
o amor é a barata
o amor é a caixa de correio

o amor é a chuva no telhado
de um velho hotel
em Los Angeles

o amor é o meu pai num caixão
(o teu pai que te odiava)

o amor é um cavalo com uma pata
partida
a tentar levantar-se
perante uma assistência
de 45 000 pessoas

o amor é o modo como fervemos
como a lagosta

o amor é tudo aquilo que dissemos
que não era

o amor é a pulga que não consegues
encontrar

e o amor é uma melga
o amor são 50 granadeiros

o amor é uma arrastadeira
vazia

o amor é um banco de bar vazio

o amor é um filme do desastre de Hindenburg
a encarquilhar aos pedaços
um momento que ainda grita

o amor é Dostoiévski diante
da roleta

o amor é o que rasteja
pelo chão

o amor é a tua mulher a dançar
nos braços de um estranho

o amor é uma velha
a roubar um pedaço de
pão

e o amor é uma palavra
usada demasiadas vezes e
demasiado
cedo.



charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018








27 novembro 2018

howie good / cidade com chuva




Só porque
alguns dias
são melhores
do que outros

não quer dizer que
qualquer dia
seja especialmente
bom,

como hoje
quando
o som
metálico
da chuva

se sobrepõe
a tudo
o que dizemos

e
as janelas
emolduram
árvores que

na
luz
encharcada

podem ser
confundidas
com os
homens

de cabelo
escuro
e casacos de pele
pretos
brilhantes

que
vigiam.




howie good
uma vaca solitária a chorar ao amanhecer
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018








26 novembro 2018

charles simic / sinbad, o marinheiro



Nas noites escuras de inverno no campo,
Os pobres e os velhos mantêm
Uma única luz acesa nas casas
Fraca e difícil de ver,
Como alguém que tivesse remado no seu barco
Para lá de onde se avista a terra
E baixado os remos
Para descansar e acender um cigarro
Com o mar calmo à volta –
Ou seriam campos na escuridão
Que a neve a cair tornara silenciosos?



charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018










25 novembro 2018

alberto caeiro / primeiro prenúncio de trovoada de depois de amanhã




Primeiro prenúncio de trovoada de depois de amanhã.
As primeiras nuvens, brancas, pairam baixas no céu mortiço
Da trovoada de depois de amanhã?
Tenho a certeza, mas a certeza é mentira.
Ter certeza é não estar vendo.
Depois de amanhã não há.
O que há é isto:
Um céu azul, um pouco baço, umas nuvens brancas no horizonte,
Com um retoque de sujo em baixo como se viesse negro depois,
Isto é o que hoje é,
E, como hoje por enquanto é tudo, isto é tudo.
Quem sabe se eu estarei morto depois de amanhã?
Se eu estiver morto depois de amanhã, a trovoada de depois de amanhã
Será outra trovoada do que seria se eu não tivesse morrido.
Bem sei que a trovoada não cai da minha vista,
Mas se eu não estiver no mundo,
O mundo será diferente —
Haverá eu a menos —
E a trovoada cairá num mundo diferente e não será a mesma trovoada.

10-7-1930



alberto caeiro
poemas inconjuntos
poemas de alberto caeiro, fernando pessoa
ática
1946







24 novembro 2018

natália correia / o livro dos amantes



I

Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.

Para que desses um nome
à exactidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.

E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida.




natália correia
poemas
antologia poética
dom quixote
2018







23 novembro 2018

david lehman / 8 de março




De vez em quando o meu pai vem
visitar-me pendura o sobretudo e o chapéu
no meu bengaleiro dou-lhe conta
das novidades e faço café para os dois
fica surpreendido por eu gostar de cozinhar
uma vez quando fez uma omelete
virou-a no ar para grande prazer meu
e caiu no chão sim foi
no verão de 1952, lembrava-se
das ondas gigantes e de como sem medo
eu corria para o oceano de qualquer forma
o importante é ver saíres-te
tão bem disse pegou no casaco e no chapéu
e foi-se embora antes de eu me lembrar que estava morto



david lehman
trad. francisco josé craveiro de carvalho
eufeme
magazine de poesia
n.º 4 julho/setembro 2017







22 novembro 2018

jacques roubaud / fins





O sol põe-se sob a porta.

Parece evidente que alguma coisa chega ao fim, mas como saber o quê? se fosse o dia era simples, mas de uma simplicidade exterior, implicando apenas gestos: a lâmpada, o fechar das portas, a cama.

Não pode ser isso.

Procuro um indício no sol, na mancha de sol-posto diante da porta, que já se move, já se retira.

Morrer? não me parece. aliás, morrer não acabaria nada. pelo menos para mim.

Alguma coisa que está no seu fim, muito próxima, no sol-posto sob a porta. não chegarei a saber o quê.

Não tentarei sabê-lo. o sol apagado, a noite consciente do seu fim, levantar-me-ei, fecharei as portas, as lâmpadas, a cama.

Houve um tempo em que não teria deixado perder-se o sentido de nenhum fim interior. teria ficado na noite, as mãos na noite, as palavras.

Agora, que vem um fim, renuncio.




jacques roubaud
alguma coisa negro
trad. josé mário silva
tinta-da-china
2016