02 novembro 2018

ferreira gullar / arte poética




Não quero morrer não quero
Apodrecer no poema
Que o cadáver das minhas tardes
Não venha feder em tua manhã feliz
                               E o lume
Que tua boca acenda acaso das palavras
– ainda que nascido da morte –
some-se
                               aos outros fogos do dia
aos barulhos da casa e da avenida
                               no presente veloz

Nada que se pareça
a pássaro empalhado múmia
de flor
dentro do livro
               e o que da noite volte
volte em chamas
                ou em chaga

                vertiginosamente como o jasmim
que num lampejo só
ilumina a cidade inteira




ferreira gullar
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001









01 novembro 2018

antónio pedro / poema




Os homens que fazem jazigos também cantam de manhã… e os jazigos envolvidos na cantiga têm um ar acolhedor, burguês e confortável…

Não te ocupes daquilo que está à tua volta, nem daquilo que à tua volta é um símbolo de outra coisa: nada tem símbolos e tudo é a sua própria definição. Não queiras saber das coisas à tua volta: elas são o seu porquê – adora! – e que o gosto de olhá-las te seja tão suave e sagrado como uma bênção!

– Vê como é tão simples a mote, e tão inúteis os mistérios insondáveis numa manhã de sol!



antónio pedro
antologia poética
obras clássicas da literatura portuguesa séc. xx
edição de fernando matos oliveira
angelus novus, editora
1998








31 outubro 2018

vasco graça moura / recitativos




                          absorpta est mors in vitctoria
                                                                     (coríntios, I-XV, 54)

I
em roma, onde eu não estive, sá de miranda,
assim falando, em terra estranha e em ar,
fazia agrimensura de saudades e recordo que tinha
a parente escritora, de 31 anos de idade,
e ambos eram tristes, perguntando
para quê chamar sempre a surda morte
pelos campos sem fim

o vento, o gosto amargo, a lua obscura transtiberim
chegavam ao postigo
donde viam
uma boa parte da cidade
cheia de majestade antiga

falavam longamente e os loureiros
e a pedra cor-de-rosa
aboliam o tempo




vasco graça moura
recitativos
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007










30 outubro 2018

paul éluard / no meu bonito bairro





Abrir as portas da noite. Um sonho que equivale a abrir as portas do mar. A torrente afogaria o temerário.

*

Mas , para o lado do homem, as portas abrem-se de par em par. Corre o seu sangue como o seu pesar, e a sua coragem de viver apesar da miséria, contra a miséria, brilha no pavimento enlameado, engendrando prodígios.

*

Não é maravilha nenhuma habitar entre Barbés e La Villette. Nunca me queixei. Para me aborrecer ia a outros lugares, e o meu desejo de outros lugares não tinha então limite. Teria eu realmente necessidade de me aborrecer? Teria eu realmente necessidade de partir para as ilhas com a secreta esperança de esperar aí, com paciência, a morte? Imaginei-o porque fechava os olhos sobre mim. A minha juventude causava-me algum medo.

*

No meu bonito bairro, entre Barbés e La Villette, é honroso viver. E por toda a parte poderia a felicidade ter lugar. O único obstáculo é o tempo, o tempo de morrer. Antes da noite total, dentro da noite furtiva, poderemos ver, teremos o tempo de ver, de nos iluminarmos?

*

No meu bonito bairro, há homens que adquirem sem cessar o direito a tratar da sua vida – e não o fazem, o direito a serem belos – e, quando se olham ao espelho, encolhem os ombros – o direito a punir e a perdoar, o direito a repousar, a amar e ser amado, porque o mereceram. Sabem que as suas ruas não são becos sem saída e estendem desesperadamente a mão para se unirem a todos os seus semelhantes.

*

No meu bonito bairro, a resistência é o amor, é a vida. A mulher, a criança, são tesoiros. E o destino é um vagabundo a quem serão queimados, à luz do dia, os andrajos, os bichos e a estupidez rapace.



paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971







29 outubro 2018

bertolt brecht / lendo horácio





Nem o próprio dilúvio
Foi eterno.
Um dia as negras
Águas partiram. Mas como,
É verdade, houve poucos
Sobreviventes.



bertolt brecht
poemas
selecção e trad. de arnaldo saraiva
presença
1976










28 outubro 2018

bernardo soares / enrolar o mundo à volta dos nossos dedos,




Enrolar o mundo à volta dos nossos dedos, como um fio ou uma fita com que brinque uma mulher que sonha à janela.

Resume-se tudo enfim em procurar sentir o tédio de modo que ele não doa.

Seria interessante poder ser dois reis ao mesmo tempo (: ser não a uma alma de eles dois, mas as duas almas).

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982









27 outubro 2018

al berto / salsugem




7
virava todo o meu sentir para o mar
quando no medo dos míticos promontórios
se rasgou a oceânica visão… a ânsia de partir

remotas eram as constelações que consultara
os rostos traziam a brancura queimada das velas
eram palavras segredadas lendas de feras
que os dedos e a matemática já tinham assinalado nos mapas
a vida da selva a flora mole dos pântanos
os costumes tribais dos arquipélagos
a prata das planícies o mistério de caudalosos rios

a tempestade sacudia o granito
da sua imobilidade surgiam estes sinais transparentes
estes animais cuja pelagem de ouro a noite corroeu
e os passos alucinados pelas lajes do porto
ressoavam no medo… medo que o mar o acorde
e descubra que não existe mar nenhum

por fim atacaram-no as febres
as febres da alba com perfume a violeta
as febres que iluminam os sentidos
e alimentam o surdo canto dos loucos e dos búzios


al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997








26 outubro 2018

eugénio de andrade / eros




Nunca o verão se demorara
assim nos lábios
e na água
– como podíamos morrer,
tão próximos
e nus e inocentes?



eugénio de andrade
mar de setembro
poesia
fundação eugénio de andrade
2000









25 outubro 2018

antónio osório / diospiro




O verde converte-se em vermelho,
é o outono nas folhas do diospiro.
E caem intactas, por terra
são fogo adolescente. Tudo porque
no alto entre labaredas
amadurecem os frutos, oferta
do divino, desgostoso de si próprio.


antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982











24 outubro 2018

leonard cohen / o regresso




Mas eu não me perdi
mais do que se perdem as folhas
ou vasos enterrados
Esta não é a minha hora
Só te faria cismar

Sei que deves chamar-me traidor
porque desperdicei o meu sangue
num amor sem sentido
e tens razão
Sangue como este
nunca ganhou um átomo de estrela

Sabes como chamar-me
ainda que semelhante ruído agora
apenas confundisse o ar
Nenhum dos dois pode esquecer
os passos que dançámos
as palavras que me estendeste
para que saísse do pó

Sim, desejo-te
não como uma folha ao tempo
ou o vaso do tempo
mas com um estreito anseio humano
que faz com que um homem recuse
outro campo que não o seu
Espero-te num
lugar inesperado da tua viagem
com uma chave enferrujada
ou uma pluma que não recolhes
até ao regresso
quando for claro
que o remoto e doloroso destino
nada mudou na tua vida



leonard cohen
poemas e canções
flores para hitler
tradução margarida vale de gato e manuel alberto
relógio d´água
1999






23 outubro 2018

rené char / rasto negro




Ao compilar do pôr-do-sol sonoro
A cada andar de nuvens
A noite reencontra, esquece o seu nome

Não há similitude
Há apenas solidão
Que se abandona, uivo e lobo

O amor que tinha adormecido
Como o mar sob uma vaga
Guarda um rosto de múmia
E fala uma língua de areia.

1926





rené char
este fanático das nuvens
furor e mistério
o pau de roseira (1983)
tradução y. k. centeno
cotovia
1995







22 outubro 2018

joaquim manuel magalhães / fotografias de jorge molder




1.

Amanhã do dia leva a noite num fino fumo.
A promessa quebrada abre uma porta e partia.
O alarme do corpo aprende outras palavras,
guardam-no do bem os cantos mais escuros.
A última cadeira de um homem espera
na sala vazia. Onde secavam as flores das canas?
Um pássaro voava contra o vento
o das lágrimas, não sabendo como dizer adeus.


joaquim manuel magalhães
fotografias de Jorge molder
os dias, pequenos charcos
editorial presença
1981









21 outubro 2018

antero de quental / voz do outono




Ouve tu, meu cansado coração,
O que te diz a voz da Natureza:
‑ "Mais te valera, nu e sem defesa,
Ter nascido em aspérrima solidão,

Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel devesa,
Do que embalar-te a Fada da Beleza,
Como embalou, no berço da Ilusão!

Mais valera à tua alma visionária
Silenciosa e triste ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba vária,

(Sem ver uma só flor, das mil, que amaste)
Com ódio e raiva e dor... que ter sonhado
Os sonhos ideais que tu sonhaste!" ‑



antero de quental
sonetos