30 outubro 2018

paul éluard / no meu bonito bairro





Abrir as portas da noite. Um sonho que equivale a abrir as portas do mar. A torrente afogaria o temerário.

*

Mas , para o lado do homem, as portas abrem-se de par em par. Corre o seu sangue como o seu pesar, e a sua coragem de viver apesar da miséria, contra a miséria, brilha no pavimento enlameado, engendrando prodígios.

*

Não é maravilha nenhuma habitar entre Barbés e La Villette. Nunca me queixei. Para me aborrecer ia a outros lugares, e o meu desejo de outros lugares não tinha então limite. Teria eu realmente necessidade de me aborrecer? Teria eu realmente necessidade de partir para as ilhas com a secreta esperança de esperar aí, com paciência, a morte? Imaginei-o porque fechava os olhos sobre mim. A minha juventude causava-me algum medo.

*

No meu bonito bairro, entre Barbés e La Villette, é honroso viver. E por toda a parte poderia a felicidade ter lugar. O único obstáculo é o tempo, o tempo de morrer. Antes da noite total, dentro da noite furtiva, poderemos ver, teremos o tempo de ver, de nos iluminarmos?

*

No meu bonito bairro, há homens que adquirem sem cessar o direito a tratar da sua vida – e não o fazem, o direito a serem belos – e, quando se olham ao espelho, encolhem os ombros – o direito a punir e a perdoar, o direito a repousar, a amar e ser amado, porque o mereceram. Sabem que as suas ruas não são becos sem saída e estendem desesperadamente a mão para se unirem a todos os seus semelhantes.

*

No meu bonito bairro, a resistência é o amor, é a vida. A mulher, a criança, são tesoiros. E o destino é um vagabundo a quem serão queimados, à luz do dia, os andrajos, os bichos e a estupidez rapace.



paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971







29 outubro 2018

bertolt brecht / lendo horácio





Nem o próprio dilúvio
Foi eterno.
Um dia as negras
Águas partiram. Mas como,
É verdade, houve poucos
Sobreviventes.



bertolt brecht
poemas
selecção e trad. de arnaldo saraiva
presença
1976










28 outubro 2018

bernardo soares / enrolar o mundo à volta dos nossos dedos,




Enrolar o mundo à volta dos nossos dedos, como um fio ou uma fita com que brinque uma mulher que sonha à janela.

Resume-se tudo enfim em procurar sentir o tédio de modo que ele não doa.

Seria interessante poder ser dois reis ao mesmo tempo (: ser não a uma alma de eles dois, mas as duas almas).

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982









27 outubro 2018

al berto / salsugem




7
virava todo o meu sentir para o mar
quando no medo dos míticos promontórios
se rasgou a oceânica visão… a ânsia de partir

remotas eram as constelações que consultara
os rostos traziam a brancura queimada das velas
eram palavras segredadas lendas de feras
que os dedos e a matemática já tinham assinalado nos mapas
a vida da selva a flora mole dos pântanos
os costumes tribais dos arquipélagos
a prata das planícies o mistério de caudalosos rios

a tempestade sacudia o granito
da sua imobilidade surgiam estes sinais transparentes
estes animais cuja pelagem de ouro a noite corroeu
e os passos alucinados pelas lajes do porto
ressoavam no medo… medo que o mar o acorde
e descubra que não existe mar nenhum

por fim atacaram-no as febres
as febres da alba com perfume a violeta
as febres que iluminam os sentidos
e alimentam o surdo canto dos loucos e dos búzios


al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997








26 outubro 2018

eugénio de andrade / eros




Nunca o verão se demorara
assim nos lábios
e na água
– como podíamos morrer,
tão próximos
e nus e inocentes?



eugénio de andrade
mar de setembro
poesia
fundação eugénio de andrade
2000









25 outubro 2018

antónio osório / diospiro




O verde converte-se em vermelho,
é o outono nas folhas do diospiro.
E caem intactas, por terra
são fogo adolescente. Tudo porque
no alto entre labaredas
amadurecem os frutos, oferta
do divino, desgostoso de si próprio.


antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982











24 outubro 2018

leonard cohen / o regresso




Mas eu não me perdi
mais do que se perdem as folhas
ou vasos enterrados
Esta não é a minha hora
Só te faria cismar

Sei que deves chamar-me traidor
porque desperdicei o meu sangue
num amor sem sentido
e tens razão
Sangue como este
nunca ganhou um átomo de estrela

Sabes como chamar-me
ainda que semelhante ruído agora
apenas confundisse o ar
Nenhum dos dois pode esquecer
os passos que dançámos
as palavras que me estendeste
para que saísse do pó

Sim, desejo-te
não como uma folha ao tempo
ou o vaso do tempo
mas com um estreito anseio humano
que faz com que um homem recuse
outro campo que não o seu
Espero-te num
lugar inesperado da tua viagem
com uma chave enferrujada
ou uma pluma que não recolhes
até ao regresso
quando for claro
que o remoto e doloroso destino
nada mudou na tua vida



leonard cohen
poemas e canções
flores para hitler
tradução margarida vale de gato e manuel alberto
relógio d´água
1999






23 outubro 2018

rené char / rasto negro




Ao compilar do pôr-do-sol sonoro
A cada andar de nuvens
A noite reencontra, esquece o seu nome

Não há similitude
Há apenas solidão
Que se abandona, uivo e lobo

O amor que tinha adormecido
Como o mar sob uma vaga
Guarda um rosto de múmia
E fala uma língua de areia.

1926





rené char
este fanático das nuvens
furor e mistério
o pau de roseira (1983)
tradução y. k. centeno
cotovia
1995







22 outubro 2018

joaquim manuel magalhães / fotografias de jorge molder




1.

Amanhã do dia leva a noite num fino fumo.
A promessa quebrada abre uma porta e partia.
O alarme do corpo aprende outras palavras,
guardam-no do bem os cantos mais escuros.
A última cadeira de um homem espera
na sala vazia. Onde secavam as flores das canas?
Um pássaro voava contra o vento
o das lágrimas, não sabendo como dizer adeus.


joaquim manuel magalhães
fotografias de Jorge molder
os dias, pequenos charcos
editorial presença
1981









21 outubro 2018

antero de quental / voz do outono




Ouve tu, meu cansado coração,
O que te diz a voz da Natureza:
‑ "Mais te valera, nu e sem defesa,
Ter nascido em aspérrima solidão,

Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel devesa,
Do que embalar-te a Fada da Beleza,
Como embalou, no berço da Ilusão!

Mais valera à tua alma visionária
Silenciosa e triste ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba vária,

(Sem ver uma só flor, das mil, que amaste)
Com ódio e raiva e dor... que ter sonhado
Os sonhos ideais que tu sonhaste!" ‑



antero de quental
sonetos









20 outubro 2018

john havelda / um ford modelo t




                    Para M.E.


Ford pensou fazer fortuna
a fabricar relógios.
Mas, enfim, nem toda a gente
precisa de um relógio.


Normalmente, não acreditava
em pregar as janelas das suas ideias infelizes
tão cedo. Aquela, no entanto, ele bem via
que não ia longe.

Nem toda a gente precisa de um relógio, mas o que toda a gente
deseja em breve se tornou claro.
Um belo dia, entediado com o tilintar do gelo
no seu cocktail, pôs-se a olhar quem passava para lá
e ao fim do segundo copo,
passava para cá. Na verdade ninguém
estava ali,
em frente àquela janela.
«Sou o único aqui», disse ele,
e bateu palmas porque finalmente
nascera a fortuna.
Enquanto pulava pela sala,
entornando gin na camisa,
até ele se tornou um freguês potencial,
porque ninguém, nem mesmo sua excelência
o próprio senhor Henry Ford
quer ficar onde está.



John havelda
poesia do mundo
tradução do autor
edições afrontamento
1995








19 outubro 2018

antónio maria lisboa / acento




Vem dos montes friíssimos da Noruega
onde te sonhei para beberes estrelas
e caminhar a custo entre as cascatas
onde a ternura é um escadote
e o ar um caracol de planetas nas órbitas.


antónio maria lisboa
ossóptico e outros poemas
poesia
assírio & alvim
1995












18 outubro 2018

antónio ramos rosa / este homem que esperou




Este homem que esperou
humilde em sua casa
que o sol lavasse a cara
ao seu desgosto

Este homem que esperou
à sombra de uma árvore
mudar a direcção
ao seu próprio destino

Este homem que esperou
com uma pedra na mão
transformá-la num pão
transformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra



antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985