11 junho 2016

antónio franco alexandre / eco



Ci est d’amer volonté pure

      Roman de la Rose



Agora vai ser assim: nunca mais te verei.
Este facto simples, que todos me dizem ser simples, trivial,
e humano, como um destino orgânico e sensato,
Fica em mim como um muro imóvel, um aspecto esquecido
e altivo de todas as coisas, de todas as palavras.
Sempre nos separaram as circunstâncias, e a essência
mesma dos dias, quando entre a relva e a copa das árvores
me esquecia de pensar, e o ar passava
por mim antes de erguer os caules verdes e alimentar
a vida sem imagens da paisagem. Marcávamos férias
em meses diferentes. O fim do ano, a páscoa, calhavam sempre
em outros dias. Tesouras surdas
rompiam o cordão dos telefones, e por engano
urgentes cartas atravessavam o planeta, apareciam
anos depois no arquivo municipal. E mais: a minha idade,
a tua, não poderiam nunca encontrar-se no mundo.
As melhores famílias guinchavam de prazer
ao ver como ninguém nos recebia, nos salões doirados
com presidentes e poetas, oradores sombrios,
chefes de câmara, e minúsculas sandes de conversa;
um inocente Portugal, lá fora,
rilhava os dentes prontos, e aguçava a serra.
Esqueçamos isto. Escrevias com as duas mãos
presas no papel, como pássaros, e só o meu olhar
era gaiola, «a gaiola discreta» a fazer de janela
para um crime violento, éramos nós. Também o vídeo emperrava
a meio do filme, bem antes da solução. No canal do lado
pais e mães gritavam, davam socos no ar ou nos filhos
de pequena dimensão, ou em falsas paredes de cartão,
não se esqueciam nunca de rimar. Eram felizes. Com estas ofertas
iriam a maravilhosas praias sublunares, onde rapazes
e raparigas mostram a pele quase todos os dias,
e têm bocas brancas como já se não ê no ocidente;
depois, na véspera do regresso (que se anuncia melancólica)
anjos e bispos descem do céu, trajando
magníficas guirlandas. Meteoros do tamanho de nuvens
rompem as nuvens, produzindo efeitos em tudo
idênticos aos da aurora borealis, mas em completa segurança.
Entravas pela garagem, sem ninguém te ver. Subias
as escadas todas, para não arder
no elevador. Estava a porta entreaberta,
não bati sequer. Sempre me espanta encontrar-te tão
assim de visita, na tua própria casa, sem ti.
Era difícil tocar-te, mexer-te. Na parede branca
oscilam os ramos, as sombras de ramos da alameda.
Era mais fácil beijar-te, por falta de palavras. Tão profundo
é o silêncio, que se ouvem todos os rumores,
o ladrar de um cão, o silvo de uma fisga,
a pancada dos ramos no entardecer, lembrando
um sino submarino. Pensava que amar-te (querer-te livre)
começava na ponta dos dedos e ia até às ideias mais abstractas,
que o teu corpo era a melhor expressão possível de ti, e ainda
muda, como um hieróglifo enterrado
na areia do teu deserto favorito (algures na anatólia),
pensava que serias um dia aquela singular memória
que nos separa, um breve instante, de tudo quanto vemos,
e muitas outras noites, acordado junto ao teu corpo ausente,
seriam como esta: vidros abertos sobre um ror de estrelas,
nuvens ligeiras navegando em direcção ao mar,
o jovem coração, liso detrás das grades, dos ossos.
(«Expressão» é tão inexacto! Na verdade existes
no teu corpo, com todo o passado embrulhado
na pele sensível, no calor animal do gemido que
às vezes sopra dos teus sonhos, e até o futuro
misteriosamente cabe no exíguo volume
entre as mãos.) Podias desfazer-me
com um encolher de ombros, faltar todos os dias
a encontros mal marcados no café da esquina,
rasgar folhas de livros com imagens a cores,
partir de noite, em barcos clandestinos, sem deixar recado.
Dias depois, o correio trazia
imagens de hamburgo ou de amsterdão, marcas
postais de Américas asiáticas, golfos lacunares,
frases censuradas por arcaicos déspotas
de damasco e bagdade. Podias servir-me
à sobremesa, com as facas rombas
da cantina escolar. Podias trazer-me
por horas sem conta dentro da mochila,
a cair de bruços sobre o cadeado.
Podias amar-me, perder-me, ser visto
nas ruas de tarde com outras mulheres. Não podias ser
mais duro que agora, mais frágil que a boca
cinzenta do céu unânime e opaco,
mais simples do que o simples «nunca mais».
Cheguei hoje mesmo de distantes rotas,
de passar desertos e vastos desterros,
subi as escadas sem ninguém me ver.
Ouço não sei onde os passos que deixam
um lume de aurora disperso no ar,
vou já ter contigo meu amor de outrora,
noutro surdo verso hás-de vir ainda
outra vida começar. Trocávamos rimas,
quadras e tercetos, lamentos e odes,
canções triviais. E aquele dia! em medellín, suponho,
num festival de líricas cabeças, até nobelizáveis,
desapareceste por dois dias. No palco engalanado
vomitei poemas, enquanto por dentro
me vomitava. Afinal passeavas de táxi, como um vulgar
sicário de vallejo, disparavas
dois ou três numa tarde, com as famosas setas
que te deu tua mãe. Já me não serve de nada a poesia,
a literária «arte de chiar». E quanto a pensamento: esse schelling
já me moeu o siso. Desisti de entender
a «identidade». Pense quem lê. Todos os teus
passaportes eram falsos, por mero paradoxo;
o rio, de que tanto falavas, nem sequer existia;
nunca te parecias, nem nunca aparecias
com o perfil, tão certo, do retrato. O que querias:
viajar de helicóptero, mudar de trocadilho,
olhar para os doutores como quem
inteligentemente não percebe,
planear operações anfíbias ao largo de tripoli,
dançar com a cantora josefina. Ter planos de vida
 para depois da guerra que não acaba, quando vier
a paz que não vem. Talvez em almada, pelos guindastes;
ou em almofagema, pelo nome: berlim, pelo frio
silêncio, no meio do trânsito; este planeta, 
certamente, pela atmosfera oxigenada. Por £1.000
visitará treblinka, regresso a varsóvia pela tarde,
passeio no parque lazienki ao som de chopin. Depois
hotel, jantar. Consulte www tourtours programa completo.
Invulgar idade a minha, quase centenário
entre edifícios bem mais jovens, avenidas abertas
quando já tinha tido juízo e perdido juízo,
carregado de lembranças do século passado, a passar
moeda falsa à porta dos liceus. Agarrado ao papel,
crente na chamada, aquele dia em que chegámos tarde
e com as mãos trocadas. Por punição levaram-nos
ao calabouço subterrâneo, onde cantava
o grande pavarotti. Porque eras infantil
(uma criança infantil) equivocaste «tosca» e «toscos»
e até a pouca graça na tua voz ficava um mistério
fundo e generoso onde se reflectia
o inesperado sabor da pele nua. Isso porém
não é amor, ditou o psi de urgência; é só
desejo, aroma adolescente; nem é conforme
à lei divina natural, murmurou outro padre moral
com certa comicidade. E no entanto a natureza
crescia folhas verdes no meio de cabelos e lábios
e palavras secretas na turva espuma das ondas;
nas pedras musgosas brilhavam o sílex e  xisto,
moviam-se lentas as placas geológicas, formando
continentes; pássaros, vertiginosamente
movendo as asas, imitavam o efeito
de aurora borealis. Por «isso», dizias (mas era mais
telepatia) vale a pena morrer, viver. Todos estes
fatos com carne dentro estão dentro
da morte sem vida, da vida sem morte, e cheiram
ao mofo sublime dos «imortais». Do camarote
real o rei acenava, com uma princesa
de sérios dentes a sorrir. Estas férias grandes
quando o céu for largo e o sol queimar
iremos plo rio fora até ao mundo, até à foz do mar!
não fomos; crescemos, tivemos frases e poemas,
e surdas dores quando era nossa a deixa,
e a voz mudando nos deixava mudos.
Em Fürstengraben 16 colecionavas mapas da europa
Ferroviária, cobriam paredes e mesas, linhas negras crescendo
Atravessando o século, umas grossas como cordões outras
Delicados filamentos. Assim os romanos, suas estradas,
Suas pontes, seus esgotos. Esta rotina alemã
convêm-me, agora que estou velho e vejo mal.
Os jovens não sabem que são eles
a fonte da juventude, que tornam jovem o que tocam. Que banal
esse ponce de léon! confesso, quando levanto
os olhos destes mapas, já quase tudo me é igual.
Bem visto, cada mapa corresponde
a uma parte do corpo humano; não há poema tão certeiro assim.
E depois há que ver nos arquivos, tabelas, horários, e directivas
especiais; e folhas, cadernos e pequenas fotos
com olhos quietos a espreitar. Às vezes converso com um vizinho
que nunca viu um comboio, ou fico a ouvir o rapazinho
louro que leu novalis e hölderlin; é bonito e não desiste
de um ar antigo a modelo de list.
Mas a câmara é um túnel, um olho imóvel a caminho
da distante saída que não há; podemos ser sombra ou pó, ficamos
sempre do lado de cá. Em manhãs de espessa névoa
só se avista o topo das colinas, além rio;
e os barcos iluminados parecem
vogar sem rumo, com a solene absorção de pássaros.
Desde esse dia desde esse primeiro e completo dia
se tornou impossível viver, morrer. A uma esquina qualquer
inevitavelmente te havia de encontrar, para cair
de novo, para ter filhos distraídos, para dizer
frases no ar sensíveis, mentirosas,
e te falar de schelling para esquecer a verdadeira
«revelação» que acontecia cada vez que te via
sempre, como é ridículo, em camuflado de arbustos,
no jeito de uma frase ouvida, ou de uma boca desatenta,
na asa de um ombro, na face mais obscura de uma voz.
Não tinhas, reparei, «identidade». Faltara-te, ou perderas,
identikit, umbigo de fabrico, carte de séjour; só ficaram
as marcas distintivas de um humano rosto, e depois
também elas se apagaram ou multiplicaram
nos humanos gestos amados e na cegueira
do humano desejo desejado, da palavra «tu».
Como posso agora começar a falar-te? Ninguém
melhor conhece o amor e o desprezo do amor,
a indiferença a passar por ti como um caminho florestal
nas colinas redondas da renânia,
tão inocentes debaixo da redoma romântica,
imóveis para sempre ou para nunca mais.
A trivial verdade é que temos apetites e interesses,
mas «o amor não é um sentimento» e raramente
o aceitamos. Não promete nada de bom. Vem
quando menos se espera, de onde menos se quer.
Pudesse eu agora ingenuamente dizer «amo-te» e
ser ouvido pelo ouvido humano da tua boca
não como quem pede mas como quem traz
um desconhecido até à mesa posta
para connosco celebrar a saída de egipto
voltaria a juventude de outrora até ao lume claro
do teu rosto; mas, desse lado da vida, vês
somente a pele antiga que se dobra em rugas
e vai pelas ruas interrogando os passantes
como um provérbio em línguas estrangeiras…
Em Fürstengraben 16 escrevias o ensaio
«ética da fantasia», com os comboios parados
em estações desertas, ou a meio da planície cinzenta
sob o céu do inverno. Ouvias continuamente
os pequenos sinais do tamagochi,
todo o silêncio do mundo cabia
na palma da mão, como o inócuo pesadelo
da fantasia final. Entendias de terra e de árvores
e de gente; rias, citando hamann: «a minha rude
imaginação não imagina pensadores em genitália»,
e nesta minha condição já só o medo esconde
a dor miúda, o parco sofrimento;
não mais serás amado, daquele amor inteiro
com que se escolhe, numa montra, um bicho
doméstico que nos acompanhe em lentas horas;
julgam estes que os desejo «sexualmente»… e é
«sexualmente» que lhes sinto o cheiro, o sopro
do pensamento que se constrói no corpo alheio,
os dias do futuro em que serei, talvez, imagem
falsa nas suas bocas; já nenhum sonho
outro que o do amor me tem desperto.
Incapaz de palavras, a porta entreaberta
para o jardim dos gestos proibidos,
ouvindo o som tranquilo dos teus passos; o ar,
tão fresco, estremecia; tudo era manhã
dentro da noite. Tudo será manhã
por ti, jovem amor, de nunca mais, de sempre.
Sou tão antigo, hoje; e são cegos os lábios
usados no costume, e na verdade
que me serve de máscara.
Vai ser assim: ver-te continuamente,
como se vê no céu o aeroplano
idêntico a si mesmo em cada imagem,
leve nuvem vogando para o mar; e como o arco
que está na gota mínima do orvalho
e na distância, o mesmo em cada olhar;
e no prazer dos corpos, quando alcançam
além de vida e morte o breve lume humano.
  


antónio franco alexandre
uma fábula
assírio & alvim
2001



10 junho 2016

luís vaz de camões / super flumina




Sôbolos rios que vão
por Babilónia, m´ achei,
onde sentado chorei
as lembranças de Sião,
e quanto nela passei.
Ali o rio corrente
de meus olhos foi manado;
e tudo bem comparado,
Babilónia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.

Ali lembranças contentes
n'alma se representaram;
e minhas cousas ausentes
se fizeram tão presentes,
como se nunca passaram.
Ali, despois de acordado,
co rosto banhado em água,
deste sonho imaginado,
vi que todo o bem passado
não é gosto, mas é mágoa

E vi que todos os danos
se causavam das mudanças,
e as mudanças dos anos;
onde vi quantos enganos
faz o tempo às esperanças.
Ali vi o maior bem
quão pouco espaço que dura,
o mal quão depressa vem;
e quão triste estado tem
quem se fia da ventura.

Vi aquilo que mais val
Que então se entende milhor
quando mais perdido for;
vi o bem suceder mal,
e o mal, muito pior.
E vi com muito trabalho
comprar arrependimento;
vi nenhum contentamento,
e vejo-me a mim, qu'espalho
tristes palavras ao vento.

Bem são rios estas águas
com que banho este papel;
bem parece ser cruel
variedade de mágoas,
e confusão de Babel.
Como homem que, por exemplo
dos transes em que se achou,
despois que a guerra deixou,
pelas paredes do templo
suas armas pendurou:

Assi, despois que assentei
que tudo o tempo gastava,
da tristeza que tomei
nos salgueiros pendurei
os órgãos com que cantava.
Aquele instrumento ledo
deixei da vida passada,
dizendo:  – Música amada,
deixo-vos neste arvoredo
à memória consagrada.

Frauta minha, que tangendo,
os montes fazíeis vir
para onde estáveis, correndo;
e as águas, que iam descendo,
tornavam logo a subir:
jamais vos não ouvirão
os tigres, que se amansavam,
e as ovelhas, que pastavam,
das ervas se fartarão
que por vos ouvir deixavam.

Já não fareis docemente
em rosas tornar abrolhos
na ribeira florecente;
nem poreis freio à corrente,
e mais, se for dos meus olhos.
Não movereis a espessura,
nem podereis já trazer
atrás vós a fonte pura,
pois não pudestes mover
desconcertos da ventura.

Ficareis oferecida
à Fama, que sempre vela,
frauta de mi tão querida;
porque mudando-se a vida,
se mudam os gostos dela.
Acha a tenra mocidade
prazeres acomodados,
e logo a maior idade
já sente por pouquidade
aqueles gostos passados.

Um gosto que hoje se alcança,
amanhã já o não vejo:
assi nos traz a mudança
de esperança em esperança,
e de desejo em desejo.
Mas em vida tão escassa
Que esperança será forte?
Fraqueza da humana sorte,
que, quanto da vida passa
está recitando a morte!

Mas deixar nesta espessura
o canto da mocidade,
não cuide a gente futura
que será obra da idade
o que é força da ventura.
Que idade, tempo, o espanto
de ver quão ligeiro passe,
nunca em mim puderam tanto
que, posto que deixo o canto,
a causa dele deixasse.

Mas, em tristezas e nojos
em gosto e contentamento,
por sol, por neve, por vento,
tendré presente á los ojos
por quien muero tan contento.
Órgãos e frauta deixava,
despojo meu tão querido,
no salgueiro que ali estava
que para troféu ficava
de quem me tinha vencido.

Mas lembranças da afeição
que ali cativo me tinha,
me perguntaram então:
que era da música minha,
qu´ eu cantava em Sião?
Que foi daquele cantar
das gentes tão celebrado?
Porque o deixava de usar,
pois sempre ajuda a passar
qualquer trabalho passado?

Canta o caminhante ledo
no caminho trabalhoso,
por antr´o espesso arvoredo;
e, de noite, o temeroso
cantando, refreia o medo.
Canta o preso docemente,
os duros grilhões tocando;
canta o segador contente;
e o trabalhador, cantando,
o trabalho menos sente.

Eu qu'estas cousas senti
n'alma, de mágoas tão cheia,
 – Como dirá, respondi,
quem tão alheio está de si
doce canto em terra alheia?
Como poderá cantar
quem em choro banha´o peito?
Porque se quem trabalhar
canta por menos cansar,
eu só descansos enjeito.

Que não parece razão,
nem seria cousa idónea,
por abrandar a paixão
que cantasse em Babilónia
as cantigas de Sião.
Que quando a muita graveza
de saudade quebrante
esta vital fortaleza,
antes moura de tristeza,
que, por abrandá-la cante.

Que se o fino pensamento
só na tristeza consiste,
não tenho medo ao tormento:
que morrer de puro triste,
que maior contentamento?
Nem na frauta cantarei
o que passo, e passei já,
nem menos o escreverei
porque a pena cansará,
e eu não descansarei.

Que se vida tão pequena
se acrescenta em terra estranha,
e se amor assi o ordena,
razão é que canse a pena
de escrever pena tamanha.
Porém se, para assentar
o que sente o coração,
a pena já me cansar,
não canse para voar
a memória em Sião.

Terra bem-aventurada,
se por algum movimento,
d'alma me fores tirada,
minha pena seja dada
a perpétuo esquecimento.
A pena deste desterro,
que eu mais desejo esculpida
em pedra, ou em duro ferro,
essa nunca seja ouvida,
em castigo de meu erro.

E se eu cantar quiser
em Babilónia sujeito,
Hierusalém, sem te ver,
a voz, quando a mover,
se me congele no peito.
A  minha língua se apegue
às fauces, pois te perdi,
se enquanto viver assi
houver tempo em que te negue,
ou que me esqueça de ti.

Mas ó tu, terra de Glória,
se eu nunca vi tua essência,
como me lembras na ausência?
Não me lembras na memória,
senão na reminiscência.
Que a alma é tábua rasa,
que, com a escrita doutrina
celeste, tanto imagina,
que voa da própria casa
e sobe à pátria divina.

Não é, logo, a saudade
das terras onde nasceu
a carne, mas é do Céu,
daquela santa cidade,
donde esta alma descendeu.
E aquela humana figura,
que cá me pôde alterar,
não é quem se há- de buscar;
é raio da formosura,
que só se deve de amar.

Que os olhos e a luz que ateia
o fogo que cá sujeita,
não do sol, mas da candeia,
é sombra daquela Ideia
qu'em Deus está mais perfeita.
E os que cá me cativaram
são poderosos afeitos
que os corações têm sujeitos;
sofistas, que me ensinaram
maus caminhos por direitos.

Destes o mando tirano
me obriga com desatino,
a cantar ao som do dano
cantares d'amor profano
por versos d'amor divino.
Mas eu, lustrado co santo
Raio, na terra de dor,
de confusão e d'espanto,
como hei-de cantar o canto,
que só se deve ao Senhor?

Tanto pode o beneficio
da Graça que dá saúde,
que ordena que a vida mude:
e o que eu tomei por vício
me faz grau para a virtude;
e faz que este natural
amor, que tanto se preza,
suba da sombra ao Real,
da particular beleza
para a Beleza geral.

Fique logo pendurada
a frauta com que tangi,
ó Hierusalém sagrada,
e tome a lira dourada
para só cantar de ti!
Não cativo e ferrolhado
na Babilónia infernal,
mas dos vícios desatado,
e cá desta a ti levado,
Pátria minha natural.

E se eu mais der a cerviz
a mundanos acidentes,
duros, tiranos e urgentes,
risque-se quanto já fiz
do grão livro dos viventes.
E tomando já na mão
a lira santa e capaz
doutra mais alta invenção,
cale-se esta confusão,
cante-se a visão de paz.

Ouça-me o pastor e o Rei,
retumbe este acento santo,
mova-se no mundo espanto,
que do que já mal cantei
a palinódia já canto.
A vós só me quero ir,
Senhor e grão Capitão
da alta torre de Sião,
à qual não posso subir,
se me vós não dais a mão.

No grão dia singular
que na lira em douto som
Hierusalém celebrar,
lembrai-vos de castigar
os ruins filhos de Edom.
Aqueles que tintos vão
no pobre sangue inocente,
soberbos co poder vão,
arrasai-os igualmente,
conheçam que humanos são.

E aquele poder tão duro
dos afeitos com que venho,
que encendem alma e engenho,
que já me entraram o muro
do livro alvídrio que tenho;
estes, que tão furiosos
gritando vêm a escalar-me,
maus espíritos danosos,
que querem como forçosos
do alicerce derrubar-me;

Derrubai-os, fiquem sós,
de forças fracos, imbeles,
porque não podemos nós
nem com eles ir a Vós,
nem sem Vós tirar-nos deles.
Não basta minha fraqueza
para me dar defensão,
se vós, santo Capitão,
nesta minha fortaleza
não puserdes guarnição.

E tu, ó carne, que encantas,
filha de Babel tão feia,
toda de miséria cheia,
que mil vezes te levantas
contra quem te senhoreia:
beato só pode ser
quem co a ajuda celeste
contra ti prevalecer,
e te vier a fazer
o mal que lhe tu fizeste:

Quem com disciplina crua
se fere mais que  huma vez,
cuja alma, de vícios nua,
faz nódoas na carne sua,
que já a carne n'alma fez.
E beato quem tomar
seus pensamentos recentes,
e em nascendo os afogar,
por não virem a parar
em vícios graves e urgentes:

Quem com eles logo der
na pedra do furor santo,
e, batendo, os desfizer
na Pedra, que veio a ser
enfim cabeça do Ccanto.
Quem logo, quando imagina
nos vícios da carne má,
os pensamentos declina
àquela Carne divina,
que na Cruz esteve já.

Quem do vil contentamento
cá deste mundo visível,
quanto ao homem for possível,
passar logo entendimento
para o mundo inteligível:
ali achará alegria
em tudo perfeita e cheia,
de tão suave harmonia,
que nem por pouca recreia,
nem por sobeja enfastia.

Ali verá tão profundo
mistério na suma alteza
que, vencida a natureza,
os mores faustos do mundo
julgue por maior baixeza.
Ó tu, divino aposento,
minha pátria singular!
Se só com te imaginar
tanto sobe o entendimento,
que fará se em ti se achar?

Ditoso quem se partir
para ti, terra excelente,
tão justo e tão penitente,
que despois de a ti subir,
lá descanse eternamente!



luís vaz de camões
poesia lírica






09 junho 2016

manuel antónio pina / depois



Primeiro sabem-se as respostas.
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração
quando o coração já se recolheu
de perguntas e respostas.

Que coração, no entanto, pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.

Porquê, tão tardo, o passado?
Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Diabo
e se é o coração o saldo
porquê agora. Cobrança,
quando medo e esperança

se recolheram também sob
lembranças extenuadas?

Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas,
e de poços, e de portas entreabertas,
e sonham no escuro
as coisas acabadas.


manuel antónio pina
nenhuma palavra e nenhuma lembrança (1999)
primeiros poemas
todas as palavras,poesia reunida
assírio & alvim
2012



08 junho 2016

jorge luís borges / a recoleta



Convencidos de caducidade
por tantas nobres certezas do pó,
demoramo-nos e baixamos a voz
entre as lentas filas de panteões
cuja retórica de mármore e sombra
promete ou antecipa a desejável
dignidade de ter morrido.
Belos são os sepulcros,
o despido latim e as firmes datas fatais,
a conjunção do mármore e da flor
e as pracetas com frescura de pátios
e os muitos ontens da história
hoje parada e única.
Enganamos essa paz com a morte,
cremos ansiar pelo nosso fim
e ansiamos pelo sonho, a indiferença.
Vibrante nas espadas, na paixão,
adormecida na hera,
somente a vida existe.
O espaço e o tempo são as suas formas,
são instrumentos mágicos da alma,
e quando ela se apagar,
vão consigo apagar-se o espaço, o tempo e a morte,
como ao cessar a luz
caduca o simulacro dos espelhos
que a tarde já foi apagando.
Sombra benigna das árvores,
vento com aves, que ondeia nos ramos,
alma que se dispersa noutras almas,
seria um milagre se deixassem de ser,
milagre incompreensível,
mesmo que a sua imaginária repetição
avilte com horror os nossos dias.
Tudo isto pensei na Recoleta,
lugar das minhas cinzas.


jorge luís borges
obras completas 1923-1949 vol. 1
fervor de buenos aires (1923)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998



07 junho 2016

herberto helder / o poema


III

Às vezes estou à mesa, e como ou sonho ou estou
somente imóvel entre a aérea
felicidade da noite. O sangue do mundo corre
e brilha. Parece que a minha carne
se distrai entre as coisas altas da primavera nocturna.
Ocupo-me nos símbolos, e gostaria
que o meu coração
entontecesse lentamente, que meu coração
caísse numa espécie de extática e sagrada loucura.

Porque, enquanto estou só e o céu rodeado de lírios
amarelos, e animais de luz, e fabulosos
órgãos de silêncio, descansa
sobre os meus ombros
seu doce peso antigo - eu penso
que haveria uma palavra vingativa e pura,
uma esfera com espinhos de fogo que me ferisse
primeiro na voz ou na castidade
ou na tenebrosa
fantasia, e que depois me ferisse
na minha própria morte, sob a intensa
profusão celeste.

Penso que deve existir para cada um
uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de sentido e que,
vinda de um ponto fogoso da treva, batesse
como um raio
nos telhados de uma vida, e o céu
com águas e astros
caísse sobre esse rosto dormente, essa fechada
exaltação.

Que palavra seria, ignoro. O nome talvez
de um instrumento antigo, um nome ligado
à morte - veneno, punhal, rio
bárbaro onde
os afogados aparecem cegamente abraçados a enormes
luas impassíveis.
Um abstracto nome de mulher ou pássaro.
Quem sabe? - Espelho, Cotovia, ou a desconhecida
palavra Amor.

Somente sei que a minha vida estremeceria, que
os braços sonâmbulos
iriam para o alto e queimariam a ligeira
noite de junho, ou que o meu
coração ficaria profundamente louco. E nessa
loucura
cada coisa tomaria seu próprio nome e espírito,
e cada nome seria iluminado
por todos os outros nomes da terra, e tudo
arderia num só fogo, entre o espaço violento
do mês de primavera e a terra
baixa e magnífica.

Com grandes dedos eu tocaria as trémulas
campânulas dos signos, e beijaria
as rodas excitadas do ar. Os ossos
cantariam sob os pequenos vulcões dos frutos
e, dentro dos tanques, tombaria a água
infantil da aurora. Comer ou sonhar ou estar
à mesa da fantasia nocturna
seria para um homem só, sob a abóbada da cabeça,
como o espírito caído dentro da forma
e a forma incrustada, como uma lâmpada,
na inspiração da cabeça.

– Cada boca pousada sobre a terra
pousaria
sobre a voz universal de outra boca.



herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



06 junho 2016

rené char / força clemente



Sei onde me entravam as minhas insuficiências, vitral quando a flor se aparta do sangue do jovem Verão. O coração de água do sol tomou o lugar do sol, tomou o lugar do meu coração. Esta noite, pode ser que a grande roda errante tão grave do desejo seja apenas visível a meus olhos. Poderei eu alguma vez naufragar noutro sítio?

         
rené char
furor e mistério
l´avant monde
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000