08 março 2016

paul éluard / juventude gera juventude



Fui tal qual uma criança
E tal qual um homem
Conjuguei com paixão
O verbo ser e a minha juventude
Com vontade de ser homem

Queremo-nos mal quando se é jovem
Um homenzinho
Teria querido fazer de mim uma criança grande
Mais forte e mais justa do que um homem
E mais lúcida do que uma simples criança

Juventude força fraterna
O sangue repete a primavera
A aurora é de todas as idades
Numa qualquer delas se abre a porta
Resplandecente da coragem

Como um diálogo de amantes apaixonados
O coração só tem uma boca para falar.


paul éluard
últimos poemas de amor
corpo memorável 1948
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002



07 março 2016

pier paolo pasolini / as cinzas de gramsci


II

Entre os dois mundos, a trégua em que não existimos.
Escolhas, dedicações… já outro som não têm
senão o som deste jardim descolorido

e nobre, onde teimoso o embuste
que mitigava a vida se mantém na morte.
Nos medalhões dos sarcófagos, as leigas

inscrições nas pedras cinzentas, curtas e
imponentes, mostram apenas o que resta
dos destinos de gente profana.

Ardem ainda de insaciáveis paixões,
sem qualquer escândalo, os ossos
dos milionários de nações

mais poderosas; rondam ainda os restos
das ironias dos príncipes, dos pederastas,
cujos corpos estão nas urnas espalhadas,

reduzidos a cinzas e não ainda castos.
Aqui o silêncio da morte prova
o silêncio civil de homens que continuam

a ser homens, de um tédio que no tédio
do Parque, discretamente, muda: e a cidade
que, indiferente, o relega para o meio

de tugúrios e igrejas, ímpia na sua piedade,
despe-se nele de todo o seu esplendor. A terra
semeada de urtigas e outras ervas dá

estes magros ciprestes, esta morrinha negra
que salpica os muros em redor
de pálidos rabiscos de buxo, que o crepúsculo

adoça e depois apaga em acres
cheiros de alga… essa erva rara
e inodora, onde roxo mergulha

o ar, com um arrepio de menta,
ou de feno podre, e calma aí começa,
na melancolia do dia, a abafada

trepidação da noite. Rude
é o clima, dulcíssima é a história
deste chão, entre estes muros, onde ressuma

outro chão; desta morrinha que
lembra outra morrinha; e ouvem-se soar
 – familiares em latitudes e

Horizontes onde as florestas inglesas coroam
Lagos perdidos no céu, por entre prados
Verdes como bilhares fosforescentes ou

Esmeraldas: «And O ye Fountains…» – piedosas
invocações




pier paolo pasolini
le ceneri di gramsci
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005



06 março 2016

fernando lemos / cepti-cidade


           Ao Augusto Figueiredo


Em 1953
     atravessar a avenida só
para do outro lado
ficar a falar de Deus como se o conhecêssemos…
Ouvir cantar pneus
e continuar a supor que são sempre para os outros
todos os Pschitt! ignorantes
Fumar um cigarro entre duas dificuldades
como se fossem dedos
Ir a Paris dizer:  – Que bem!...
e voltar por entre tambores cardíacos

para uma cave de cobras e lagartos

a verificar que surge sempre

um iô-iô antes de uma guerra…

  

fernando lemos
teclado universal
cadernos de poesia
campo das letras
2004



05 março 2016

josé de almada negreiros / momento de poesia



Se escrevo ou leio ou desenho ou pinto
logo me sinto tão atrasado
no que devo à eternidade,
que começo a empurrar p’ra diante o tempo
e empurro-o, empurro-o à bruta
como empurra um atrasado
até que cansado me julgo satisfeito.
(Tão gémeos são
a fadiga  e a satisfação!)
Em troca, se vou por aí
sou tão inteligente a ver tudo o que não é comigo,
compreendo tão bem o que não me diz respeito,
sinto-me tão chefe do que está fora de mim,
dou conselhos tão bíblicos aos aflitos de uma aflição
                                                               que não a minha,
que, sinceramente, não sei qual é melhor:
se estar sozinho em casa a dar à manivela da vida,
se ir por ai e ser Rei de tudo o que não é meu.

lisboa, novembro de 1939


almada negreiros
cadernos de poesia 5
lisboa
1942



04 março 2016

david mourão-ferreira / presídio



Nem todo o corpo é carne … Não, nem todo,
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco …?

E o ventre, inconsistente como o lodo? …
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor … Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo …

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono …
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!



david mourão-ferreira
obra poética
editorial presença
1996



03 março 2016

per aage brandt / se mudares a entoação duma frase



*
se mudares a entoação duma frase,
por pouco que seja, então é outro que
falará na frase, e se mudares a sua velocidade,
então é outro que falará, e se pegares
na frase com uma pinça como a um in-
secto ou a um preparado, ou se nela, nela repetires
qualquer coisa, então estarás a falar com ironia
e, assim, não poderás estar a falar a sério,
porque o que disseres ou é falso ou tão verdadeiro, que
nem sequer será possível prenunciá-lo

*

  
per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004



02 março 2016

antónio quadros ferro / ou a empatia



Há-de haver um fundo inesperado no extremo oposto onde
morrem os sonhos, sob os pés onde procuramos a própria
sombra, fundida talvez à luz que um dia ameaçou o regresso
das dores passadas, logo a seguir à infância, muito antes da
poesia.


antónio quadros ferro
ou a empatia
artes e letras atelier
2015






01 março 2016

nicanor parra / paisagem




Vedes essa perna humana dependurada da lua
Como uma árvore crescendo para baixo
Essa perna temível que flutua no vazio
Iluminada apenas pelos raios
Da lua e o ar do esquecimento?

  
nicanor parra
trad. albano martins
relâmpago, revista de poesia nº 17
outubro 2005



29 fevereiro 2016

christoph wilhelm aigner / dois pontos



O vento corre de pés frios
e atira chuva fina como lâminas
corta e fere-nos o rosto
Somos dois pontos num campo
que aparentemente cegos e sem fundamento
se movem um em direcção ao outro


christoph wilhelm aigner
a negação do relógio de pêndulo
stuttgart, DVA, 1996
trad. maria teresa dias furtado
relâmpago, revista de poesia nº 17
outubro 2005


28 fevereiro 2016

reinaldo ferreira / bispo de pádua


              (fragmento)

Ora o céu não é um pálio
Para a passagem de quem
Vai para o trono da morte
Desde as entranhas da mãe,
Nem o mundo coroação,
Nem as vidas que pisamos
Poeira erguida, ao de leve,
Pelo manto que envergamos,
Nem Deus o erro prudente,
Degrau de altura do trono,
Osso de esp’rança atirado
À boca dos cães sem dono.
Nós somos mais, porque vamos
Lutando contra o capricho
Que fez de nós uma estrela
Num firmamento de lixo.


reinaldo ferreira
sião
organização de al berto, paulo da costa domingos
e rui baião
frenesi
1987



27 fevereiro 2016

álvaro lapa / o deserto



O deserto sem nexo, inesperado, tal como surge metaforicamente sentido no imponderável percurso de além-tréguas. Sobrecadência de algum meio-dia já percorrido, já esgotado (em corridas, em percursos múltiplos), e aí se anuncia um excedente percurso a acometer e nesse percurso se revela o deserto. É a experiência pura da terra abrasada, desassombrada, enigmática de neutra. Estranha ao caminhante. Envolve a luz, a distância e a mortalidade consumada do caminhante. A finitude, e os vários amarelos dessas horas solares. Meio-dia, ou mais uma, duas, até sete meias-horas após o meio-dia: as horas magnas da imolação desértica. Em qualquer estrada anexa a um lugar povoado, ao sul. Espírito dos lugares circunvalantes, nas 7 meias-horas do meio-dia, ao sul. Experiência que pode ser instantânea, intervalar. Basta que surja sobre, a mais que, a cadência adquirida de uma manhã esgotada. É nesse além-tréguas, nessa sobre intimidade que o deserto consiste. Ir de rastos, a-té-ao-fim-do-es-pa-ço.


álvaro lapa
sião
organização de al berto, paulo da costa domingos
e rui baião
frenesi
1987



26 fevereiro 2016

cesare pavese / paternidade



Homem só, diante do mar inútil,
À espera da noite, à espera da manhã.
As crianças vêm brincar, mas este homem
Não vê brincar nenhuma junto de si.
Grandes nuvens erguem um palácio sobre as águas
Que todos os dias desaba e ressurge, e põe cor
Nos rostos das crianças. Sempre haverá o mar.

A manhã fere. Sobre esta húmida praia
O sol rasteja, agarrado às redes e às pedras.
Ao sol nublado, o homem caminha junto
Ao mar. não olha as lentas espumas
Que sem descanso tentam escorrer na areia.
A esta hora as crianças dormem ainda
Na tepidez da cama. A esta hora, mulheres
Dormem nas suas camas. Estariam a fazer amor
Se não estivessem sós. O homem despe-se lentamente
E nu como as mulheres longínquas entra no mar.

Depois, à noite, quando o mar se encobre, ouve-se
O grande vazio debaixo das estrelas. As crianças
Nas casas tingidas de vermelho caem de sono,
Por vezes em lágrimas. O homem, cansado de esperar,
Ergue os olhos para as estrelas, que não ouvem nada.
A esta hora, há mulheres a despir crianças
E a adormecê-las. Também as há na cama,
Abraçadas a um homem. Pela janela escura
Entra um sopro rouco, e ninguém o escuta
A não ser o homem que conhece todo o desprezo do mar.


cesare pavese
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de ernesto sampaio
assírio & alvim
2001




25 fevereiro 2016

gonçalo m. tavares / o número 76



Uma vaca, com o número 76 na orelha, está morta, o corpo caído sobre a neve. O excessivo frio súbito matou vários animais – dezenas, centenas, milhares de animais. Mas nenhum animal era igual àquela vaca com o número 76 desenhado numa placa amarela agarrada à orelha. Esse número, sabe-se lá porquê, assusta.

  
gonçalo m. tavares
short movies
caminho
2011