12 outubro 2015

alberto caeiro / leve



Leve, leve, muito leve, 
Um vento muito leve passa, 
E vai-se, sempre muito leve. 
E eu não sei o que penso 
Nem procuro sabê-lo.

  
alberto caeiro
o guardador de rebanhos





11 outubro 2015

herberto helder / talvez certa noite uma grande mão anónima tenha por mim


talvez certa noite uma grande mão anónima tenha por mim,
um a um, lado a lado, escavando,
escrito os nomes,
um a um escrito os nomes esquecidos,
e entre os nomes mais obscuros o mais desmemoriado deles
                                                                                                    todos,
e eu esteja atrás vivendo desse próprio esquecimento,
a mão cortada, cortado o nome, além da morte escrita,
pelo buraco da voz o nome escoado para sempre

  
herberto helder
servidões
assírio & alvim
2013




10 outubro 2015

elizabeth bishop / uma arte



A arte de perder não é difícil de se dominar;
tantas coisas parecem cheias de intenção
de se perderem que a sua perda não é uma calamidade.

Perder qualquer coisa todos os dias. Aceitar a agitação
de chaves perdidas, a hora mal passada.
A arte de perder não é difícil de se dominar.

Então procura perder mais, perder mais depressa:
lugares e nomes e para onde se tencionava
viajar. Nenhuma destas coisas trará uma calamidade.

Perdi o relógio da minha mãe. E olha! a última, ou
a penúltima, de três casas amadas desapareceu.
A arte de perder não é difícil de se dominar.

Perdi duas cidades encantadoras. E, mais vastos ainda,
reinos que possuía, dois rios, um continente.
Sinto a falta deles, mas não foi uma calamidade.

 – Mesmo o perder-te (a voz trocista, um gesto
que amo) não foi diferente disso. É evidente
que a arte de perder não é muito difícil de se dominar
mesmo que nos pareça (Toma nota!) uma calamidade.



elizabeth bishop
geografia III
trad. maria de lourdes guimarães
relógio d´água
2006





09 outubro 2015

michel foucault / talvez um dia já não saibamos bem o que foi a loucura




Talvez um dia já não saibamos bem o que foi a loucura. O seu rosto ter-se-á fechado sobre si mesmo não mais permitindo decifrar os rastos que deixou. E, ao olhar ignorante, os próprios rastos conseguirão ser mais do que simples marcas negras? Quando muito farão parte de configurações que agora não saberíamos desenhar mas no futuro serão códigos indispensáveis para nos tornarmos legíveis, nós e a nossa cultura. As nevroses pertencerão às formas constituintes (e não aos desvios) da nossa sociedade. Tudo o que hoje sentimos sobre a forma do limite, ou do estranho, ou do insuportável, ter-se-á reunido à serenidade do positivo. E o que para nós designa actualmente este Exterior arrisca-se um dia a designar-se a nós.

Apenas sobrará o enigma desta Exterioridade. Perguntar-se-á, então, que estranha delimitação era essa que interveio desde o mais fundo da Idade Média até ao Séc. XX e, quem sabe, se além dele. Por que rejeitou a cultura ocidental, desde os primórdios, aquilo que ela própria teria podido tão bem reconhecer-se – ou se reconheceu, de facto, de uma forma oblíqua? Por que teria, claramente desde o Séc. XIX mas na verdade desde a idade clássica, afirmado que a loucura era a desnuda verdade do homem e, apesar disso, a colocou num espaço neutralizado e pálido em que surgia como que anulada? Por que recolheu as palavras de Nerval e Artaud, por que se reencontrou nelas e não neles?

Assim se há-de vergar a viva imagem da razão em fogo. Esse jogo tão familiar que é olharmos para o outro extremo de nós na loucura e pormo-nos à escuta de vozes que, chegadas de tão longe, de perto nos dizem o que somos; esse jogo com as suas regras, tácticas, invenções, artimanhas, toleradas ilegalidades, já não passará de um ritual complexo cujos significados terão sido reduzidos a cinza. Qualquer coisa como a atenção ambígua que a razão grega dispensava aos seus oráculos. Ou ainda como essa instituição gémea, desde o Séc. XIV cristão, das práticas e dos processos de feitiçaria. Nas mãos das culturas históricas não sobrará mais do que as medidas codificadas do internamento, as técnicas da medicina e, por outro lado, a inclusão súbita, irruptiva, da palavra dos banidos na nossa linguagem.


michel foucault
história da loucura na idade clássica



(august strindberg
inferno
trad. aníbal fernandes
& etc
1978)





08 outubro 2015

antónio ramos rosa / quem bate a uma porta de folhas na noite



Quem bate a uma porta de folhas na noite
uma porta de folhas na noite
Quem toca a dura casca do teu nome na noite
a uma porta de folhas


Uma porta de folhas uma porta
Quem bate a essa porta de folhas
Quem bate a essa porta de folhas na noite
Quem bate a essa porta sou eu


antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985




07 outubro 2015

antónio pedro / narciso

  
                Não me crio nem me invento, aceito-me como sou na minha humanidade… e com nervos, com músculos, com as voltas do cérebro para imaginar e as voltas dos intestinos para a vida, dentro das voltas da vida, não como se andasse sozinho, mas torto e acompanhado, triste e com a pele alegre de olhar os outros e de sentir o vento através da camisa e sobre as pálpebras fechadas, como nas tardes de moleza em braços de mulher.
                Faço dos meus joelhos escada para os meus ossos, e em tudo de cima é que ponho a minha carne cheia de cerebrosinhos à flor da pele, tal como nasci.
              Por isso, Narciso pelos meus dedos, sinto-me a vida que tinha de viver, e gosto dos meus olhos – segredos duma alcova aonde me possuo.

quási canções
1932



antónio pedro
antologia poética
obras clássicas da literatura portuguesa séc. xx
edição de fernando matos oliveira
angelus novus, editora
1998




06 outubro 2015

antónio osório / circo



E súbito na rua desfilaram
os fatigados elefantes
e símios, bobos de bobos, anões
falsamente ledos, a trapezista
que me deu vontade de chorar,
aqueles seres, os palhaços, que traziam
o admirável grotesco dos homens,
os cavalos, brancos já por sua idade
e a jaula viajante dos leões,
estendidos, expectantes como sáurios.
E por uma contorcionista,
Que torturava o corpo,
apaixonei-me:  enredada em mim,
como serpente, estava a sua alma.


antónio osório
casa das sementes, poesia escolhida
a matéria volátil
assírio & alvim
2006




05 outubro 2015

jacques prévert / na minha casa



Hás-de vir a minha casa
Aliás não é a minha casa
Não sei de quem ela é
Um dia entrei por aqui
Não estava ninguém
Só uns pimentos vermelhos pendurados na parede branca
Durante muito tempo fiquei nesta casa
Ninguém apareceu
Mas todos todos os dias
Fiquei à sua espera

Não fazia nada
Quer dizer nada de importante
Às vezes de manhã
Soltava gritos de animais
Zurrava como um burro
Com quanta força tinha
E era uma coisa que me dava prazer
E depois brincava com os pés
São muito inteligentes os pés
Levam-nos muito longe
Quando queremos ir muito longe
E quando não queremos sair
Ficam ali a fazer-nos companhia
E quando há música dançam
Não se pode dançar sem eles
É preciso ser estúpido como o homem tantas vezes é
Para dizer coisas tão estúpidas
Como estúpido como um pé alegre como um pardal
O pardal não é alegre
Só é alegre quando está alegre
E triste quando está triste ou nem alegre nem triste
Será que alguém sabe o que é um pardal
Aliás nem sequer se chama realmente assim
O homem é que chamou aquele pássaro assim
Pardal pardal pardal pardal

É muito curioso isto dos nomes
Martin Hugo Victor de seu nome
Bonaparte Napoleão de seu nome
Porquê assim e não assim
Um rebanho de bonapartes passa no deserto
O imperador chama-se Dromedário
Há um cavalo caixa e gavetas de corrida
Ao longe galopa um homem que só tem três nomes
Chama-se Tim-Tam-Tom sem outros apelidos
Ainda mais ao longe está sabe-se lá quem
E muitíssimo mais ao longe está sabe-se lá o quê
Mas afinal que é que tudo isto importa

Hás-de vir a minha casa
Penso noutra coisa mas é só nisso que penso
E quando entrares em minha casa
Despes a roupa toda
E ficas imóvel nua em pé com a tua boca vermelha
Como os pimentos vermelhos pendurados na parede branca
E depois deitas-te e eu deito-me junto a ti
É isso
Hás-de vir a minha casa que não é a minha casa



jacques prévert
traduzido por zé lima
diversos nr. 3




03 outubro 2015

antónio maria lisboa / z



As formas, as sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno pássaro

e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento

e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços

a tua figura era ao que me lembro da cor do jardim.


antónio maria lisboa
ossóptico e outros poemas
poesia
assírio & alvim
1995


02 outubro 2015

antónio madureira rodrigues / resolve crescer para a noite



Resolve crescer para a noite e esperar o início do ruído do corpo apertado
como ao entrar num animal
nos apresentamos directamente na boca
e só aí os dois avançam verdadeiramente no conhecimento do corpo.
Isto é: o afastamento
da mãe – muito tempo na obscuridade sem escrever – como
posso abrir as veias potentes olho-te no silêncio,
vem uma nova sedução do acidente, a quem ele chegar
primeiro pela movimentação dos destroços, o meu alinhamento com gotas
bicos, se alguém vier de novo abre mais o corpo,
a forma batente.


antónio madureira rodrigues
a potência do meio dos nós
quasi
2009




01 outubro 2015

antónio ramos rosa / a respiração do mar



Errantes as palavras, as janelas,
respiração à flor do mar no côncavo da arca,
ombro imenso que não encerra, todo o espaço
como um só corpo onde o vento começa.



antónio ramos rosa
acordes
quetzal editores
1990



30 setembro 2015

antónio josé forte / assinatura



Entre lágrimas de crocodilo
o homem com gestos de lava
que aponta o local do crime
todas as manhãs
e eu despido de rosas
subo a escada de caracol da morte
para ir deixar na tua pele a assinatura bárbara
com a caligrafia trémula todas as manhãs
e todas as noites de terror
entre a música dos astros



antónio josé forte
caligrafia ardente
hiena
1987




29 setembro 2015

antónio gedeão / poema da morte aparente



nos tempos em que acontecia o que está acontecendo
                                                                                      [agora,
e os homens pasmavam de isso ainda acontecer no
                                                                        [tempo deles,
parecia-lhes a vida podre e reles
e suspiravam por viver agora.

a suspirar e a protestar morreram.
e agora, quando se abrem as covas,
encontram-se às vezes os dentes com que rangeram,
tão brancos como se as dentaduras fossem novas.



antónio gedeão
linha de força
1967