02 outubro 2015

antónio madureira rodrigues / resolve crescer para a noite



Resolve crescer para a noite e esperar o início do ruído do corpo apertado
como ao entrar num animal
nos apresentamos directamente na boca
e só aí os dois avançam verdadeiramente no conhecimento do corpo.
Isto é: o afastamento
da mãe – muito tempo na obscuridade sem escrever – como
posso abrir as veias potentes olho-te no silêncio,
vem uma nova sedução do acidente, a quem ele chegar
primeiro pela movimentação dos destroços, o meu alinhamento com gotas
bicos, se alguém vier de novo abre mais o corpo,
a forma batente.


antónio madureira rodrigues
a potência do meio dos nós
quasi
2009




01 outubro 2015

antónio ramos rosa / a respiração do mar



Errantes as palavras, as janelas,
respiração à flor do mar no côncavo da arca,
ombro imenso que não encerra, todo o espaço
como um só corpo onde o vento começa.



antónio ramos rosa
acordes
quetzal editores
1990



30 setembro 2015

antónio josé forte / assinatura



Entre lágrimas de crocodilo
o homem com gestos de lava
que aponta o local do crime
todas as manhãs
e eu despido de rosas
subo a escada de caracol da morte
para ir deixar na tua pele a assinatura bárbara
com a caligrafia trémula todas as manhãs
e todas as noites de terror
entre a música dos astros



antónio josé forte
caligrafia ardente
hiena
1987




29 setembro 2015

antónio gedeão / poema da morte aparente



nos tempos em que acontecia o que está acontecendo
                                                                                      [agora,
e os homens pasmavam de isso ainda acontecer no
                                                                        [tempo deles,
parecia-lhes a vida podre e reles
e suspiravam por viver agora.

a suspirar e a protestar morreram.
e agora, quando se abrem as covas,
encontram-se às vezes os dentes com que rangeram,
tão brancos como se as dentaduras fossem novas.



antónio gedeão
linha de força
1967







28 setembro 2015

antónio gancho / a estrada



A estrada cumprimentava de vivas a manhã
abria-se a claridade do dia
a noção era consequência de uma ave marinha
não se esquece as coisas que o coração compõe
com igualdade diária
por a estrada por onde nós viajamos há sinais
de brilho
uma nave inunda o sentimento do corpo
para que tudo nos seja dimanado do
anúncio do tédio
Quanto tempo passou que nós estamos à
espera que tudo nos seja propício para
que a razão alimente o vício do ar e do
céu azul
tudo por nós era uma recordação heterogénea
aqui um sinal grave
se era uma papoila abria-se o mar à nossa frente
a nostalgia duma pálpebra aberta no silêncio da noite
por nós o que o tempo lamentava de sonoramente vivido
o que de nós esperou a terna manhã
cumprida como um jamais não haver minutos
o que em nós havia de tudo estar à espera
de que se abrisse um sinal para reflectir
tudo o que havia de solícito era dado por um
não haver mais grandiloquência no que se fosse contar
estar antes era estar à espera de que tudo acontecesse
secretamente para que nada mais houvesse de imanente no fundo
ah é dizer que o tempo não esconde um prurido de que tu
também fosses igual
a estrada andante é caminhar
nós vamos tu és uma noção grande e enorme do vento
perguntas pelo tédio e não há nada igual a isso
por onde caminhar é a pergunta aberta
somos o que fomos sempre
iguais à hora ao minuto
tu comandavas eu ficava era eterno
como o destino de te ver caminhar
uma asa afastava uma intenção
era grave a hora para que tivéssemos para contar
o que fosse de extraordinariamente movido
não se indica mais nada
uma mão aberta fala uma linguagem austera.


antónio gancho
o ar da manhã
assírio & alvim
1995





26 setembro 2015

antonio gamoneda / o esquecimento é a minha pátria vigiada



O esquecimento é a minha pátria vigiada e ainda tive um país mais vasto
                e desconhecido.

Regressei no meio de um silêncio de pálpebras àqueles bosques em
                que fui perseguido por pressentimentos e propostas de homens
                enfermos.

É aqui onde o medo vê a força do teu rosto: a tua realidade no
                desaparecimento

(que se estendia como chuva no fundo da noite; mais lenta que a
                tristeza, mais húmida que lábios sobre o meu corpo).

Eram os dias grandes da traição.


Alimentava-me a fosforescência . tu criaste a mentira entre as per-
                nas da minha mãe; não existia a dor e tua criaste a compaixão.


Tu voltavas às hortênsias


e soluçaste debaixo da lente dos comissários.


Eu vi a luz da inutilidade.


A minha boca é fria nas preces. Este relato incompreensível é o que
                resta de nós. A traição prospera em corações invioláveis.


Profundidade da mentira: todos os meus actos no espelho da mor-
                te. E os carvões resplandecem sobre a pele de heróis ainda des-
                pertos no umbral da imbecilidade.


E esse alarido entre cristais, essas feridas que não são visíveis senão
                no instante do amor…

Que hora é esta, que erva cresce na nossa juventude?



antonio gamoneda
descrição da mentira
trad. vasco gato
quasi
2003



25 setembro 2015

antónio franco alexandre / syrinx, ficção pastoral



VI

As palavras pouco importam: um murro
no estômago, uma vez, alguns pontapés,
chumbo na escola a português, pra mais depressa ver
como se trama a vida, silenciosamente.
Quando se canta é diferente, a voz
pode quebrar-se contra o corpo, e quebra
alguma coisa por detrás da boca
como uma mão mirambolante e escura
que se viesse, dentro, na explosão
de pedaços de carne incandescente.
Acontece também cantar calado, ou com a boca
fundida nos lençóis, pra me esquecer de quem
agora me cavalga por um jantar no poço,
passeio de automóvel, duche morno,
e depois as moedas que se deixam
caídas no passeio como estrelas.



antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio&alvim
1999



24 setembro 2015

antónio dacosta / venho do mar



Venho do mar
Venho dos montes
Sê amiga do meu repouso

Se apeteço ser rei
Ter um barco e um cão
E dos meus amigos ser amigo

Sê benigna
Se me amas



antónio dacosta
a cal dos muros
assírio & alvim
1994



23 setembro 2015

andre breton / no teu lugar desconfiaria



No teu lugar desconfiaria do cavaleiro de palha
Essa espécie de Rogério libertando Angélica
Leitmotiv aqui das bocas do metro
Dispostas em fila nos teus cabelos
É uma encantadora alucinação liliputiana
Mas o cavaleiro de palha o cavaleiro de palha
Põe-te à garupa e ambos vos lançais na alta alameda de álamos
Cujas primeiras folhas perdidas põem manteiga nas rosas bocados de pão do ar
Adoro essas folhas tanto como
O que há de mais independente em ti
A sua pálida balança
De contar violetas
Apenas o necessário para transparecer nos mais ternos sulcos do teu corpo
A mensagem indecifrável capital
De uma garrafa há muito tempo no mar
E adoro-as quando se junta como um galo branco
Furioso na escadaria do castelo da violência
À luz dilacerante onde não se trata já de viver
Na clareira encantada
Com o caçador a apontar uma espingarda de culatra de faisão
Essas folhas que são a moeda de Danaé
Quando é possível chegar-me a ti até deixar de te ver
Estreitar em ti esse lugar amarelo devastado
O mais resplandecente do teu olho
Onde as árvores voam
Onde os prédios começam a ser sacudidos por uma alegria de mau porte
Onde os jogos do circo prosseguem na rua com um luxo desenfreado
Sobreviver
Do mais longínquo desprendem-se duas ou três silhuetas
Sobre o pequeno grupo ondula a bandeira parlamentar.


andre breton
l´air de l´eau (1934)
poemas
trad. de ernesto sampaio
assírio & alvim
1994



22 setembro 2015

amadeu baptista / o centro do mundo


7

Muito em breve irei pertencer a outra dimensão da terra.
Eu espero todos os continentes e todos os glaciares,
aguardo inequivocamente todos os céus onde hei-de
     encontrar
a impaciência do homem na solidão do mundo.
De novo anseio palavras elementares para descrever a viagem.
Todas as palavras que alguma vez usei são escassas
após o regresso para nova partida.
Procuro agora palavras cortantes como uma lâmina, inquietas
como uma ave, secretas como o olhar
de quem me julga e condena.



amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999



21 setembro 2015

alexandre o'neill / o café




                É difícil respeitar os mortos quando eles estão, positivamente, à mão de… semear. Como este.
                Vamos olhando para ele de soslaio e falamos baixo. Ora! O que temos é medo do dizque-dizque da vizinhança, ou não fôssemos uma decorosa família.
                A mãe está na cozinha, a fazer café. Cantarola, mãe, cantarola! Manda a vizinhança meter-se na vida dos outros (somos quatro inquilinos por piso, que diabo!). Cantarola, mãe, cantarola – que é o teu primeiro café de mulher livre!
                A mãe não cantarola, antes soluça. De espaço a espaço, um ganido discreto – mas o café está excelente, está forte, está CAFÉ! Pela primeira vez bebe-se café nesta casa!
                Mãe! Não era ele que estava sempre a dizer que o café o matava?


alexandre o’neill
as andorinhas não têm restaurante
publicações dom quixote
1970



20 setembro 2015

álvaro de campos / de la musique



Ah, pouco a pouco, entre as árvores antigas, 
A figura dela emerge e eu deixo de pensar... 
Pouco a pouco, da angústia de mim vou eu mesmo emergindo... 

As duas figuras encontram-se na clareira ao pé do lago.... 

... As duas figuras sonhadas, 
Porque isto foi só um raio de luar e uma tristeza minha, 
E uma suposição de outra coisa, 
E o resultado de existir... 

Verdadeiramente, ter-se-iam encontrado as duas figuras 
Na clareira ao pé do lago? 
( ... Mas se não existem?...) 
... Na clareira ao pé do lago?...

  

álvaro de campos




19 setembro 2015

alejandra pizarnik / anéis de cinza



                             a cristina campo


São as minhas vozes cantando
para que não cantem eles,
os amordaçados tristemente na aurora
os vestidos de pássaro desolado na chuva.

Há, na espera,
um rumor de lilás rompendo-se.
E há, quando vem o dia,
uma partição do sol em pequenos sóis negros.
E quando é de noite, sempre,
uma tribo de palavras mutiladas
procura asilo na minha garganta
para que não cantem eles,
os funestos, os donos do silêncio.



alejandra pizarnik
antologia poética
trad. alberto augusto miranda
edit. o correio dos navios
2002