08 maio 2015

carlos de oliveira / visão de josé gomes ferreira no vanderman



Nos cimos,
Onde a água esperava o momento de vir lavar os homens,
Você viu
por um súbito rasgão da insónia
os animais miúdos comidos pelos maiores, os maiores comidos pelos homens,
          os homens roídos pela antropofagia e pelos dentes amarelos das estrelas.
Desde então,
o seu remorso brota de cada gota-recordação do Vanderman
e o tempo, devorando as estrelas, engorda mais com as grandes patas fulvas
          atoladas em nossos corações,
essa lama de sangue.



carlos de oliveira
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa
organizada por herberto helder
assírio & alvim
1985





07 maio 2015

fernando pessoa / o amor é que é essencial



O amor é que é essencial.
O sexo é só um acidente.
Pode ser igual
Ou diferente.
O homem não é um animal:
É uma carne inteligente,
Embora às vezes doente.
  


fernando pessoa



06 maio 2015

györgy somlyó / jogo, gato 7



Põe o mesmo ardor para brincar
com o rato e com a folha de prata
e quer com a folha quer com o rato
o seu combate é caso de vida ou morte
trata das suas necessidades
e da sua limpeza em busca de vitaminas
segundo o mesmo ritual exacto
do mesmo modo faz cair da mesa
com leves toques o maço de cigarros
não executa nada que não seja importante
e nada que não constitua um prazer
nada que não seja necessário
e nada que não seja belo
ele é o felix catus ludens
que faz desaparecer pela sua simples essência
o grande dilema
da história da cultura e da genética
desde há centenas de milénios
é brincando que ele reproduz
as regras estritas do seu jogo existencial.


györgy somlyó
poemas
tradução de egito gonçalves 



05 maio 2015

carla diacov / amanhã alguém morre no samba



significar o osso da coisa queridinha
os enfeites da casa gritam comigo
ombreiras esquadrias agulhas gatinhos da china
decoram as margens do meu amor
o osso
me afundo na tua reminiscência
o osso e as antenas
gritam
como se tudo fosse o grande do tempo
as esquadrias dos óculos gatinhos da china
omoplatas de prata queridinha
o bafo da trilha
a carne da coisa
tão necessária insignificante
na estrutura superfície da aberração amor



carla diacov
amanhã alguém morre no samba
douda correria
2015



04 maio 2015

michális ganas / perplexidade



Passas junto aos outros,
Medes-te às ocultas,
Dão-te por cima da tola.
Onde escondem eles
o corpo ajoelhado?
Na mala de couro
ou na alma de palha?

Disparam baixo as metralhadoras
ou te esquivas ou levantas voo.


michális ganas
(n. 1943)
«akáthistos deipnos»
atenas, 1985
tradução de manuel  resende




03 maio 2015

hugh macdiarmid / vejam! nasceu uma criança



Pensei numa casa em que as pedras pareciam de súbito mudadas,
Tornando-se prenhes de esperança, uma esperança tão sólida como elas,
E a atmosfera, quente desse amoroso calor,
O calor da ternura e de almas que anseiam, a sorridente ansiedade
Que rege uma casa onde uma criança estás prestes a nascer.
As paredes estavam cheias de ouvidos. Todos falavam em voz baixa.
Só a mãe tinha o direito de gemer ou de queixar-se.
Então pensei no mundo inteiro. Quem cuida das suas dores
E procura abraçá-las em igual carinho e paz?
O que há é o fragor monstruoso dos estéreis, que em nada contribuem
Para o grande fim em vista, e o futuro tacteia,
Um mau parto, não como a criança nessa grácil casa,
Ouvida na quietude a virar-se no útero da mãe,
Feita já um espírito estratégico, em busca do melhor modo
De se apresentar à vida, e por fim, resoluto,
Saltando para a história a tremer como um peixe,
Caindo no mundo como um fruto maduro em tempo certo. ─
Mas onde está o Passado, a quem o Tempo, por entre lágrimas sorrindo
Ao filho recém-nascido, se dirige e diz: “amo-te”?



hugh macdiarmid
leituras, poemas do inglês
tradução de joão ferreira duarte
relógio de água
1993




02 maio 2015

paul verlaine /lucien létinois – V



Tenho o furor de amar. Meu coração é louco.
O quando e o onde, e a quem, importa pouco.
Que um clarão de beleza, virtude, ou pujança
Brilhe, e ele se precipita, e voa, e se lança.
E, enquanto a posse dura, de mil beijos cobre
O objecto ou o ser que o seu entusiasmo dobre
De um valor que não tem. Quando a ilusão se encolhe,
Regressa triste e só, mas fiel, como quem escolhe
Deixar de si aos outros, ele, alguma cousa
De sangue ou carne. Mas não morre, nem repousa,
E o tédio o faz partir para a terra das Quimeras,
De onde nada trará, só lágrimas severas
Que saboreará. Desesperos de um instante,
E logo se reembarca. Teimoso segue avante,
Sem sequer se dar conta que na infinidade,
Navegador casmurro, há sempre um escolho que há-de
Fazê-lo naufragar antes que aporte à margem
A que apontara o rumo da perdida viagem.
Mas trampolim ele faz do escolho, e logo nada
Para a praia. Lá está. Mas estranha vezada
Será que avidamente não corra e percorra,
Desde que o sol é nado até que o poente morra,
De lés a lés o promontório inteiro.
E nada! Árvore ou erva ou fonte no braseiro,
Mas fome só, e a sede, e o sol como metal,
E nem vestígio humano, um coração igual!
A ele não - jamais há-de encontrar alguém -
Mas coração humano, um coração também,
Que esteja vivo, ainda que falso, palpitante!
E espera, sem perder a força latejante
Que a febre lhe sustenta, e que o amor lhe ganhe,
Que um barco o mastro erecto ao longe lhe desenhe,
A que faça sinais, e venha, e que o recolha:
Assim ele raciocina. E quem se fia? Olha!...
Apóstolo tão estranho, um dia há-de acabar.
Se a morte o deixa sempre, aos outros quer matar.
Os mortos, os seus mortos, mais morto ele está!
Uma fibra qualquer, sempre nas tumbas há,
Do seu fogoso ser, que aí vive docemente.
Aos mortos ama como uma ave o ninho quente.
Lembrá-los - almofada em que adormece e vai
Sonhar com eles, vê-los e falar-lhes. Sai,
Ainda embebido deles, pra uma aventura horrenda.
Tenho o furor de amar. E então? Não tenho emenda.


paul verlaine
poesia de 26 séculos, segundo volume
de bashô a nietzsche
antologia, tradução de jorge de sena
editorial inova
1972




01 maio 2015

henry thoreau / fumo



Ligeiro fumo alado! Ó ave de Ícaro,
Fundindo as asas na ascensão da fuga,
Pássaro mudo, anúncio da alvorada,
Sobre as aldeias como em torno a um ninho;
Ou sonho a despedir-se, impura forma
De nocturna visão, erguendo a túnica;
Pela noite, as estrelas encobrindo,
E pelo dia denegrindo o sol;
Vai tu, incenso meu, suplica aos deuses
Que nos perdoem tão formosa chama.


henry thoreau
poesia de 26 séculos, segundo volume
de bashô a nietzsche
antologia, tradução de jorge de sena
editorial inova
1972




30 abril 2015

lawrence ferlinghetti / não dormi com a beleza toda a vida



Não dormi com a beleza toda a vida
fazendo inconfidências a mim próprio
dos seus encantos planturosos

Não, não dormi com a beleza toda a vida
mas com ela menti
fazendo confidências a mim próprio
de como ela nunca morre
mas jaz à parte
no meio dos aborígenes
da arte
e paira por cima dos campos de batalha
do amor

Está acima de tudo isso
muito acima
Está sentada no mais selecto dos assentos
da Igreja
lá em cima onde os administradores da arte marcam encontros
para escolherem o que há-de ficar para a eternidade
Eles, sim, dormiram com a beleza
durante toda a vida
Eles, sim, alimentaram-se da ambrósia
e beberam o vinho do Paraíso
e por isso sabem exactamente como é que
uma coisa bela é uma alegria
para sempre e para sempre
e como é que ela nunca nunca
pode inteiramente desvanecer-se
num nada que leve à bancarrota

Oh não, nunca dormi
em Regaços de Beleza como esses
receando levantar-me de noite
com medo de perder nesses segundos
qualquer belo movimento que ela esboçasse
E contudo dormi com a beleza
à minha estranha maneira
e fiz uma ou duas cenas terríveis
com a beleza na minha cama
de onde transbordou um poema ou dois
de onde transbordou um poema ou dois
para este mundo tão parecido com o de Bosch



lawrence ferlinghetti
a coney island of the mind
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972





29 abril 2015

herberto helder / descobrimento


(...)

Dizem que Ghoete escreveu e rescreveu os seus poemas.
Leonardo era mortalmente paciente diante das cores.
E que sabemos dos outros, os mais antigos?
Tudo é eternamente recomeçado. Não se sabe
o que acharam. Acharam alguma coisa - os antigos, os modernos?

O que esse homem procurava e achou não é exemplo.
E embora toda a poesia seja uma proposta ou solução moral,
nós, os desta nação, mal podemos imaginar as alegrias
e dores do homem estrangeiro, ao frio e à névoa,
na grande solidão dessa rua circular que talvez não exista em Antuérpia
nem noutra qualquer cidade de um tão grande, tão grande mundo.

Mas quem pode confiar em nós, que somos desta terra,
e por isso tão pouco a conhecemos?

(...)


herberto helder
os passos em volta


28 abril 2015

madou lamine sall / amantes de auroras



Procurei-te por todo o lado e em nenhum
entre a flor e o caule
entre o dia e a noite
por entre os risos do sono
por entre as carícias da ausência
Onde estás filha da noite
já o poema perde o fôlego
e as palavras se esquivam
a caneta dança em arabescos ébria do seu vinho negro
as vogais estão distraídas
e as consoantes teimosas erram em procissão
sobre o vazio da página que boceja
Serás a única a compreender esta noite porque
escrevo este poema de sexo e de azeitona de sangue e de amor
Gostaria de te falar no ventre da noite
à hora em que migalhas de estrelas dançam na tua boca
de mel e de febre
Onde estás rapariga da noite
sei que voltarás
porque sou a fera da tua toca
o réptil que te serpenteia e te traz para a luz
do dia.



madou lamine sall 
poemas
tradução de rosa alice branco 




27 abril 2015

paul mills / procris



Agora ela usa um roupão azul
Que lhe cobre os tornozelos
E sandálias vermelhas
E um colar
Enfeitado com conchas. Agora ela sorri,
Um sorriso largo, um oceano de luz,

Agora ela olha fixamente para lá da porta.
Agora ela põe em soslaio os olhos vagos.
Agora ela usa um secreto sorriso
Que por vezes muda
Em secreto torpor.

Agora ela dorme, como Procris
Sob as mãos de Pã.
Que achou um leopardo
Numa forma de jovem, adormecida
No travesseiro de suas mãos.

Mas agora ela tenta cobrir-se
De sono. Agora tenta
Lutar para sair dos sonhos.
Agora ela está cerrada como um punho.

A porta abre-se e ela entra na sala.
Não aqui. Ela senta-se, sorri.
Não aqui. Agora ela usa um rosto novo.



paul mills
leituras, poemas do inglês
tradução de joão ferreira duarte
relógio de água
1993





26 abril 2015

wilfred owen / insensibilidade



I
Felizes são aqueles que mesmo antes de mortos
Podem deixar arrefecer as veias.
De quem nenhuma paixão escarnece
Nem faz magoar os pés
Nas ruas calcetadas com os irmãos.
A linha da frente fraqueja,
Mas são tropas que murcham e não flores
Para o pranto tonto dos poetas:
Os homens, brechas para preencher,
Baixas que podiam ter durado
Mais no combate, mas ninguém se importa.

II
E alguns deixam de sentir
Mesmo a si próprios ou por si próprios,
Embotados, resolvem melhor
A irritante incerteza das granadas,
E a estranha aritmética do Acaso
Surge mais simples que o cálculo do seu soldo.
Não conferem o dizimar dos exércitos.

III
Felizes são aqueles que perdem a imaginação:
Já têm fardos a mais com a munição,
E o espírito não puxa cargas.
Só o frio faz doer as velhas feridas.
Tendo visto vermelho em toda a parte,
Livram-se-lhe os olhos
Da dor da cor do sangue para sempre.
E passado o primeiro aperto do terror,
Os corações ficam contraídos.
Cauterizados há muito os sentidos
No ferro em brasa da batalha,
Podem rir com indiferença entre os que morrem.

IV
Feliz o soldado em sua casa, sem saber
Que algures, de madrugada, homens atacam,
E são muitos os suspiros que se esvaem.
Feliz o moço de mente não treinada:
Os seus dias são vendo bem, para esquecer.
Canta ao compasso da marcha
Que marchamos, taciturnos, pelo escuro,
O longo, desesperado, inexorável curso
Do maior dia à noite mais imensa.

V
Nós, sábios, que com um só pensamento
Manchamos de sangue a alma toda,
Como havemos de ver a nossa missão
Senão pelos seus olhos cegos e sem cílios?
Vivo, ele não chega bem a ser vital;
A morrer, não chega bem a ser mortal;
Nem triste, nem altivo,
Nem sequer curioso.
Não distingue
Da sua a placidez dos velhos.

VI
Mas malditos sejam os broncos que nenhum canhão aturde,
Que se tornassem em pedras.
Desgraçados são, e vis,
Com uma pobreza que nunca foi simplicidade.
Por própria escolha tornaram-se imunes
À piedade e a tudo o que no homem se condói
Antes do mar final e das estrelas desditadas;
Tudo o que se condói quando tantos deixam estas praias;
Tudo o que partilha
A eterna reciprocidade das lágrimas.


wilfred owen
leituras, poemas do inglês
tradução de joão ferreira duarte
relógio de água
1993