22 julho 2013

joyce kilmer / árvores



Parece-me que nunca ninguém há-de
Ver poema tão belo como a árvore.

Árvore que sua boca não desferra.
Do seio doce e liberal da terra.

Árvore, sempre de Deus a ver imagem
E erguendo em reza os braços de folhagem.

Árvore que pode usar, como capelo,
Ninhos de papo-ruivo no cabelo;

Em cujo peito a neve esteve assente;
Que vive com a chuva intimamente.

Os tontos, como eu, fazem poesia;
Uma árvore, só Deus é que a faria.


joyce kilmer
oiro de vário tempo e lugar
trad.  a. herculano de carvalho
asa
2003


21 julho 2013

almeida garrett / as minhas asas



Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.

-Eram brancas, brancas, brancas,
Como as do anjo que m'as deu:
Eu inocente como elas,
Por isso voava ao céu.
Veio a cobiça da terra,
Vinha para me tentar;
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.
-Veio a ambição, cóas grandezas,
Vinham para m'as cortar,
Davam-me poder e glória;
Por nenhum preço as quis dar.

Porque as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.

Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra,
Ia voar para elas,
-Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas...
Vi entre a névoa da terra,
Outra luz mais bela que elas.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao céu.

Cegou-me essas luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!

-Tudo perdi n'essa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu.

  

almeida garrett



20 julho 2013

alberto caeiro / eu nunca guardei rebanhos



Eu nunca guardei rebanhos, 
Mas é como se os guardasse. 
Minha alma é como um pastor, 
Conhece o vento e o sol 
E anda pela mão das Estações  
A seguir e a olhar. 
Toda a paz da Natureza sem gente  
Vem sentar-se a meu lado. 
Mas eu fico triste como um pôr de sol  
Para a nossa imaginação, 
Quando esfria no fundo da planície  
E se sente a noite entrada 
Como uma borboleta pela janela. 
Mas a minha tristeza é sossego 
Porque é natural e justa 
E é o que deve estar na alma 
Quando já pensa que existe 
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso. 

Como um ruído de chocalhos 
Para além da curva da estrada, 
Os meus pensamentos são contentes. 
Só tenho pena de saber que eles são contentes, 
Porque, se o não soubesse, 
Em vez de serem contentes e tristes,  
Seriam alegres e contentes. 

Pensar incomoda como andar à chuva 
Quando o vento cresce e parece que chove mais. 

Não tenho ambições nem desejos  
Ser poeta não é uma ambição minha  
É a minha maneira de estar sozinho. 

E se desejo às vezes 
Por imaginar, ser cordeirinho  
(Ou ser o rebanho todo 
Para andar espalhado por toda a encosta 
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo), 

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol, 
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz 
E corre um silêncio pela erva fora. 

Quando me sento a escrever versos 
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos, 
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento, 
Sinto um cajado nas mãos 
E vejo um recorte de mim 
No cimo dum outeiro, 
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias, 
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho, 
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz 
E quer fingir que compreende. 

Saúdo todos os que me lerem, 
Tirando-lhes o chapéu largo 
Quando me vêem à minha porta 
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro. 
Saúdo-os e desejo-lhes sol, 
E chuva, quando a chuva é precisa, 
E que as suas casas tenham 
Ao pé duma janela aberta 
Uma cadeira predilecta 
Onde se sentem, lendo os meus versos. 
E ao lerem os meus versos pensem 
Que sou qualquer cousa natural - 
Por exemplo, a árvore antiga 
À sombra da qual quando crianças 
Se sentavam com um baque, cansados de brincar, 
E limpavam o suor da testa quente 
Com a manga do bibe riscado.



alberto caeiro
o guardador de rebanhos



19 julho 2013

manuel antónio pina / theo



Às vezes o gato fitava
com estranheza
o que de nós (um excesso)
se interpunha entre nós e o gato,
a nossa presença.



manuel antónio pina
moradas
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012


18 julho 2013

luís filipe parrado / natureza morta com maçãs



É triste
o espectáculo do amor
apodrecendo aos poucos,
na fruteira
as maçãs que te trouxe
têm agora a pele seca e enrugada.



luís filipe parrado
entre a carne e o osso
2012



17 julho 2013

carlos de oliveira / sobre o lado esquerdo



De vez em quando a insónia vibra com a
nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas
uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas
da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme
pensa: «o melhor é voltar-me para o lado esquerdo
e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração».



carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
1968



16 julho 2013

antónio ramos rosa / mar



Para além dos signos
O ponto de partida
O mesmo arco
As estradas leves
Quem escreve
Um mundo
A palavra
A delicada majestade
O horizonte das palavras

  

antónio ramos rosa


15 julho 2013

ruy belo / espaço preenchido




Somos todos de aqui. Basta-nos a pátria
que uma tarde de domingo -nos consente
entre folhas de outono e frases de abandono
E abrem-se-nos ruas
para ir a sítios demasiado precisos
quando um só sítio se encontra
ao fim de todas as ruas e de todos os rios
Somos todos da raça dos mortos
ou vivos mais além
Mensagens de outra pátria não as traz
arauto algum que o nosso tempo vestisse

O que é preciso é dar lugar
aos pássaros nas ruas da cidade



ruy belo
relação
todos os poemas I
assírio & alvim
2004



14 julho 2013

herberto helder / gárgula



Gárgula.
Por dentro a chuva que a incha, por fora a pedra misteriosa
que a mantém suspensa.
E a boca demoníaca do prodígio despeja-se
no caos.
Esse animal erguido ao trono de uma estrela,
que se debruça para onde
escureço. Pelos flancos construo
a criatura. Onde corre o arrepio, das espáduas
para o fundo, com força atenta. Construo
aquela massa de tetas
e unhas, pela espinha, rosas abertas das guelras,
umbigo,
mandíbulas. Até ao centro da sua
árdua talha de estrela.
Seu buraco de água na minha boca.
E construindo falo.
Sou lírico, medonho.
Consagro-a no banho baptismal de um poema.
Inauguro.
Fora e dentro inauguro o nome de que morro.



herberto helder
le poème continu
somme anthologique
institut camões / chandeigne
paris, 2002



13 julho 2013

ricardo reis / uns, com os olhos postos no passado



Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Por que tão longe ir pôr o que está perto-
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.




ricardo reis



12 julho 2013

sharon olds / a linguagem da bazófia



Desejei ser a primeira a fazer pontaria com a faca,
desejei usar os meus braços extraordinariamente robustos e certeiros
e a minha postura erecta e os músculos ágeis e eléctricos
para alcançar algo no centro da multidão,
o fio da navalha perfurando profundamente o casco,
o punho vibrando lento e pesado como o caralho.

Desejei uma função épica para o meu excelente corpo,
um qualquer heroísmo, uma qualquer proeza americana
para além do ordinário para a minha pessoa extraordinária,
magnética e tênsil, junto ao campo de terra batida
vi os rapazes jogarem.

Desejei bravura, pensei em fogo,
em atravessar cataratas, arrastei por toda a parte

a barriga cheia de cobardia e segurança,
a minha bosta negra com as ampolas de ferro,
as minhas grandes mamas exudando muco,
as minhas pernas inchando, as minhas mãos inchando,
a minha cara inchando enegrecida, o meu cabelo
caindo, o forro do meu sexo
esfaqueado vezes sem conta por uma dor terrível como um punhal.
Jazi estendida.

Jazi estendida e suei e tremi
e expeli sangue e fezes e água e
devagar sozinha no centro de um círculo
expeli a nova pessoa
e eles ergueram a nova pessoa já livre do acto
e limparam a nova pessoa já livre
dessa linguagem de sangue tal louvor sobre todo o corpo.

Fiz aquilo que quisestes fazer, Walt Whitman,
Allen Ginsberg, fiz isto,
eu e as outras mulheres este acto
excepcional com o corpo excepcional e heróico,
este dar à luz, este verbo brilhante,
e deponho aqui a minha jactante bazófia americana
em pé de igualdade com outras.


sharon olds
satanás diz
trad, margarida vale de gato
antígona
2004




11 julho 2013

antónio maria lisboa / varech



Eu estimo sobre tudo os teus olhos incolores
as tuas mãos inúteis, a tua boca verde

Eu falo somente dos relógios caídos, dos autocarros

Eu falo somente dos pés vermelhos

Eu falo... eu falo... eu falo...

No vigésimo século as nuvens são árvores
e os pássaros mais pequenos grandes paquidermes

Sim, é verdade, os cabelos loiros

Então, meia-noite!

Senhora, se me dá licença, este dia acabou
por este dia
simplesmente

A criança é porca, é inútil

Muito obrigado.



antónio maria lisboa
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985


10 julho 2013

ievgueni ievtuchenko / imagem de infância



  Rompendo caminho com os cotovelos,
                                                  íamos correndo.
  Espancavam alguém no mercado.
  Seria possível ver aquilo?
  Para chegar ao barulho apressámos o passo,
  Ensopámos as botas de feltro
  E esquecemo-nos de limpar o monco.
  De repente parámos...
                                     E apertou-se-nos o coração
  Ao vermos como se fechava
  O cerco dos sobretudos, dos casacos de peles
                                                             e dos gorros.
  Como o homem estava de pé,
                                    junto ao lugar da hortaliça,
  Defendendo com os ombros a cabeça das pedradas,
  Das chapadas, bofetadas, escarros, pontapés.
.
  Súbito, à direita, dão-lhe um soco em cheio na boca.
  Súbito, à esquerda, esmagam-lhe na testa
                                            uma mão cheia de gelo.
  O sangue aflorou, brotou depois com força.
  E todos se irritaram. Todos à uma começaram
                                                                    a berrar,
  Batendo no homem com rédeas e cacetes,
  Com os eixos de ferro das rodas.
  Em vão ele implorava, rouco: "Que fazeis, irmãos?"
  A multidão queria ajustar contas a sério.
  A multidão ensurdecedora, em fúria.
  A multidão repontava com os que batiam mal.
  E calcava aos pés qualquer coisa
                                          semelhante a um corpo
  No meio da neve primaveril, feita lama.

  Batiam com gosto. Com imaginação. Em cheio.
  Eu vi a pressa e a exactidão com que
  Umas botas lhe davam pontapés e pontapés,
  A ele, deitado, que mal podia respirar
  Arrastando-se na lama e no estrume.

  O dono das botas, rapagão de focinho honesto,
  Terrivelmente orgulhoso da sua honestidade,
  Continuava a bater, dizendo: "Patife!".
  Batia com inocência convicta, pesada,
  E a transpirar, rosto vermelho e satisfeito,
  Gritou-me: "Chega-lhe tu também, miúdo!"

  Não me lembro de quantos gritavam,
  Talvez cem, talvez mais de cem,
  Mas eu, o miúdo, chorei de vergonha.
  E podem ser cem a bater à bruta,
  Podem mesmo bater com razão -
  Não serei nunca o cento e um.




  ievgueni ievtuchenko
  ievtuchenko em lisboa (1967)
   dom quixote
   1968