20 dezembro 2012

kenneth koch / o circo


1

Teremos de partir, disseram as raparigas do circo,
E nunca mais voltaremos. Não há público bastante
Nesta cidadezinha. À espera contra o céu negro e azul,
Os grandes carros do circo levaram-nas para as suas entradas.
A luz esmoreceu sobre as colinas onde a caravana do circo desapareceu.
Por baixo dos vestidos as raparigas do circo transpiravam,
Mas então, com a malha cor de laranja cingida ao corpo, uma delas
Falou com olhos azuis, era jovem e linda, loira
De olhos brilhantes, falou com a boca aberta ao espirrar
Levemente contra as costas das outras raparigas que esperavam em fila,
Para rodarem a corda, ou descerem rodopiando presas pelos dentes,
E disse que o circo poderia partir - havia cartazes vermelhos
Colados ao exterior da caravana, estava a começar a
Chover - disse que poderia partir mas nunca o seu coração partiria,
Não daquela cidade, mas mesmo de qualquer outra onde tivessem estado, arriscando a
vida,
E cada um desses lugares onde estiveram devia ser festejado pelo azul rosmaninho
Num canteiro da cidade. Mas elas riram, raparigas do circo agarradas
Umas às outras enquanto a caravana se lançava pela noite.




kenneth koch
a magia dos números e outros poemas
trad. antónio franco alexandre
quetzal
1992



19 dezembro 2012

marc granell / entardecer festivo



 
Aqui sentado.
Enquanto o sol pestaneja nos charcos que ontem
quebraram a eterna simetria do pátio
onde todos os dias ao entardecer
fazíamos ginástica uniformizados,
azul e branco, entre quarenta
meninos sufocados nos seus gritos,
nos seus anseios para cada um ser
o mais hábil, mais veloz, mais forte,
para ser o mais inutilmente livre.
Aqui sentado.
Enquanto sofrias a chuva
por não ser bastante para inundar as caves
e arrastar consigo
o cavalo de arções, as barras, as paralelas
que nunca puderam sustentar-me
e apagar a sua memória, que ninguém
soubesse alguma vez que existiam
tais artefactos de tortura inocente.
Aqui sentado.
Enquanto rezavas – sem saber a quem.
Tu já não acreditavas, mas sim, era necessário
acreditar no inferno – e sentias
galopes de formigas correr pelo teu ventre
e rias, sem qualquer vontade, das piadas de algum companheiro
e esperavas.
Aqui sentado.
Enquanto observas a gente que passa
o sol pestaneja nos charcos
e já não importa. É festa
neste entardecer.



marc granell
quinze poetas catalães
tradução de egito gonçalves
ed. limiar, porto
1994


18 dezembro 2012

vitor matos e sá / companhia violenta




É preciso que saibam: este rosto
não está à venda. Há quarenta
e cinco anos que o trago apenas
para dar e receber o espanto
do amor e do tempo, do eco e da rosa
e a violenta companhia
insubstituível do mundo.

Os amigos mortos e sepultados
sob este sorriso, também não estão
à venda - é com eles que entro
na força dos versos em que falo
de nós todos. Estes olhos
já leram Platão (entre outros)
já viram chegar a noite
nas grandes cidades, corpos proibidos
homens e mulheres sem paixão
moribundos face a face com o absurdo
de um tempo já maior de quanto há neles

e casais cumpridores que não gastaram nunca
um tostão de amor a mais.

Já todos dormimos em má companhia
(mesmo se nos limitamos a dormir
inteiramente sós - e até por isso)

Meus prósperos e
devotos irmãos atarefados, deixai-me
em paz. Ou então dêem-me um pouco
de tabaco ou mandem-me
de férias um postal (mesmo
que morra). Um póstumo
postal. E sem remorso.
Já que não se morre apenas
de falta de correspondência...




vitor matos e sá
companhia violenta
centelha
1980




17 dezembro 2012

eugenio montale / traz-me um girassol




Traz-me um girassol para que o transplante
no meu árido terreno
e mostre todo o dia
ao espelho azul do céu
a ansiedade do teu rosto
amarelento

Tendem à claridade as coisas obscuras
esgotam-se os corpos num fluir
de tintas ou de músicas. Desaparecer
é então a dita das ditas

Traz-me tu a planta que conduz
aonde crescem loiras transparências
e se evapora a vida como essência
Traz-me o girassol de enlouquecidas luzes.




eugenio montale
a religião do girassol: uma antologia
tradução de jorge sousa braga
assírio & alvim
2000



16 dezembro 2012

mário henrique leiria / origem dos sonhos esquecidos




Entre a bicicleta e a laranja
vai a distância de uma camisa branca

Entre o pássaro e a bandeira
vai a distância dum relógio solar

Entre a janela e o canto do lobo
vai a distância dum lago desesperado

Entre mim e a bola de bilhar
vai a distância dum sexo fulgurante

Qualquer pedaço de floresta ou tempestade
pode ser a distância
entre os teus braços fechados em si mesmos
e a noite encontrada para além do grito das panteras

Qualquer grito de pantera
pode ser a distância
entre os teus passos
e o caminho em que eles se desfazem lentamente

Qualquer caminho
pode ser a distância
entre tu e eu

Qualquer distância
entre ti e eu
é a única e magnífica existência
do nosso amor que se devora sorrindo.

(1949)



Publicado, inédito, por Mário Cesariny na revista "MELE - International Poetry Letter", revista de Honolulu dirigida por Stefan Baciu cujo número de Março de 81 foi integralmente dedicado aos poetas surrealistas portugueses. 



15 dezembro 2012

césar vallejo / os passos remotos




O meu pai dorme. O seu nobre semblante
é como um coração apaziguado;
está tão doce agora...
se há nele algo de amargo, serei eu.

Há solidão na casa; e reza-se;
e dos filhos não houve hoje notícias.
Meu pai acorda, considera
a fuga para o Egipto e um suspenso adeus.
Está agora tão perto;
se há nele algo distante, serei eu.

E minha mãe passeia além na horta,
saboreando um sabor já sem sabor.

Está agora tão suave,
tão longínqua, tão amorosa e nítida.

Há solidão no lar sem reboliço,
sem notícias, sem verdes criancices.
E se há algo quebrado nesta tarde
que diminui e crepita
são dois velhos caminhos brancos, curvos.

A pé, por eles vai meu coração.




césar vallejo
tradução de nicolau saião



14 dezembro 2012

edgar allan poe / os sinos




1.
Escutai os trenós com sinos:
De prata, os sinos!
Que mundo de tanta alegria sua música anuncia!
E, retinindo, tilintam
No ar glacial nocturno!
Enquanto, em despique, as estrelas,
Salpicando os céus, cintilam
Com cristalino deleite;
Marcam tempo com aprumo
Como uma rúnica rima,
Nas tintibulações do ritmo—propaladas
Dos balidos dos chocalhos
Desses sinos, sinos, sinos:
Desses sinos que repicam seus badalos.

2.
Escutai das bodas os sinos:
De ouro, os sinos!
Que mundo de tanta harmonia em bonança anunciam!
No ar da noite tão fresco
Seu deleite é como um eco!
Notas de ouro se fundindo
Como um coro!
Canto dúctil que flutua
Até à rola que arrulha
Vendo a lua!
Oh, das celas onde se exala
É tremenda a eufonia que se escoa pelas salas!
Como apela!
E interpela
O futuro!—Como fala
Desse transe que impele
Ao balancear cadenciado
Desses sinos, sinos, sinos!
Dos carrilhões afinados,
Sinos, sinos, sinos, sinos:
Desses sinos que tremulam seus trinados!

3.
Escutai o alarme dos sinos:
De bronze, os sinos!
Que conto de tanto pavor sua turbulência ensina!
No ouvido ferido das Trevas,
Vociferando, gritantes,
De susto não podem falar!
Só sabem guinchar, guinchar
Dissonantes.
Num apelo clamoroso ao fogo todo-poderoso...
Numa irada reprimenda contra o fogo revoltoso,
Saltando alto, mais alto,
Com ânsia desesperada
E propósito obstinado:
Agora—ou nunca, alcançar
A face da lua pálida.
Oh, os sinos, sinos, sinos!
Que afligido conto ensinam
De terror!
Com que rugidos, furor,
Derramam o seu horror
No seio do túrgido ar!
Contudo o ouvido bem sabe,
Pelo estrídulo vibrar,
Como o perigo vaza e sobe...
Sim, o ouvido bem distingue
Pelo altercado ruído,
Por esse uivo diferido,
Que o perigo cresce e se extingue,
Pelo aplacar dos sinos ou por seu irado brado...
Desses sinos...
Sinos, sinos, sinos, sinos:
Desses sinos clamorosos com seu clangor destroçado!

4.
Escutai os dobres dos sinos:
De ferro, os sinos!
Que mundo de ideias tão graves invoca sua monódia!
E na noite sem rumor
Estremecemos de pavor
Ao sentido tão dolente desse tom!
Desse som que se decanta
Da ferrugem das gargantas
Tão rangentes.
E as gentes... ah, as gentes
Que vivem nos campanários
Solitárias,
E que dobrando, dobrando,
A monótona canção,
Se orgulham de estar rolando
A laje no coração...
Não são homem nem mulher...
Nem feras são...
São os Ghouls:
E é seu rei quem dobra os sinos,
E que com eles entoa
O Péan que assim ressoa!
E alegre enfuna o peito
Com esse Péan que ecoa!
Dança ao ritmo, e como troa!
E ao ritmo acerta o rumo,
Marca o tempo com aprumo
Como uma rúnica rima,
Ao Péan que assim ressoa
Desses sinos!
Desvairados realejam
Esses sinos, sinos, sinos...
E, redobrados, arquejam,
Regem tempo com aprumo,
E ele enfuna o peito à loa,
Álacre rima de runa
Dos sinos que vibram, ressoam,
Pulsam sinos, sinos, sinos...
Esses sinos tresloucados...
Sinos, sinos, sinos, sinos:
Sinos que rangem e plangem aos finados.



edgar allan poe
tradução de margarida vale de gato


13 dezembro 2012

martin opitz / epitáfio de um cozinheiro




Como o mundo em geral anda sempre às avessas!
Aqui um cozinheiro seu descanso encontrou,
Que em vida muitos e bons pratos cozinhou.
Comem-no agora os vermes – cru e sem travessas!



martin opitz
o cardo e a rosa
tradução de joão barrento
assírio & alvim
2002


12 dezembro 2012

andréas empeiríkos / a rapariga



  
A casa está a transbordar de alegria
Como uma bilha cheia de leite ao sol
Uma rapariga à janela ocultamente
Dá os seus seios às pombas.

Repletos palpitam os seios
Espetam-se os mamilos
Titilam-nos as aves
E subitamente o leite transborda.



andréas empeiríkos
a ternura dos seios
trad. de manuel resende



11 dezembro 2012

fernando echevarría / prólogo




Do outono que termina
nenhuma coisa é perto.
Cada uma culmina
em tudo ser aberto

e claro movimento
sem uma qualquer história.
Que ser no pensamento
é obra sem memória.

Ou, se memória fosse,
da longa caminhada
guardaria o que trouxe

- a paz de ser pensada
e uma mágoa doce
de outono e de mais nada.


Aonde formos iremos
pensando esta luz que passa.
Esta luz que, agora, vemos
molhada além da vidraça

mas que, pensada, ilumina
outro rio e outra rua
e muda mesmo à retina
o modo de se ver sua.

Sem que, por isso, no rio
mude, ou na rua, o passar.
Tudo segue o mesmo fio

em retina igual. Só o ar
tem um contorno mais frio
na margem de ver passar.



fernando echevarría
introdução à filosofia
edições nova renascença, porto
1981




10 dezembro 2012

herman de coninck / chegou com a alegria desajeitada…


  

Chegou com a alegria desajeitada de uma camponesa
de quatro anos. Tem o olhar ríspido e coquette
da minha mãe de 75 anos aos quatro.
E quando essa mãe morreu, tentou
ser tão sensata que a sua cabeça
se inclinava enquanto dizia: «quando eu
morrer, hei-de chorar imenso, sabes.»

Não precisa de pai a não ser para as bonecas.
Como é que hei-de fazer, pergunto. «Sentares-te aqui
na cadeira, e leres o jornal,», disse ela. Brinca à vida,
uma horinha, e depois a outra coisa.
Ela ensina-me o que é a poesia: de um nevão
seguir apenas um floco. Com ela aquilo que quero
é sempre possível: que seja hoje.




herman de coninck
os hectares da memória
trad. colectiva, rev., complet. e apresent. nuno júdice
poetas em mateus
quetzal
1996



09 dezembro 2012

alberto caeiro / às vezes


  
Às vezes, em dias de  luz perfeita e exacta,
Em que as cousas têm toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim próprio devagar
Por que sequer atribuo eu
Beleza às cousas.
   
Uma flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.
A beleza é o nome de qualquer cousa que não existe
Que eu dou às cousas em troca do agrado que me dão.
Não significa nada.
Então por que digo eu das cousas: são belas?

Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver,
Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens
Perante as cousas,
Perante as cousas que simplesmente existem.

Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!



alberto caeiro


08 dezembro 2012

gil t. sousa / caçar a água


  
10

caçar a água
no veludo escarlate da sede
pela madrugada
no coração tenro
da neblina
antes que a maré suba
os labirintos

aos pássaros
revelar a pedra
ensinar o lado de dentro
do musgo
a curva macia
dos seixos



porque a loucura
deve ser rasgada por dentro
com as mãos cravadas numa ponte
acesa ao abismo


gil t. sousa
água forte
2005