O ROSTO DE GARBO
Garbo pertence ainda a essa fase do cinema em que a percepção do rosto humano lançava a maior perturbação no meio das multidões, em que as pessoas se sentiam literalmente perdidas numa imagem humana como num filtro, em que o rosto constituía uma espécie de estado absoluto da carne, que não podia ser atingido nem abandonado. Alguns anos antes, o rosto de Valentino provoca suicídios; o de Garbo participa ainda do mesmo reinado do amor cortês, em que a carne gera sentimentos místicos de perdição.
Trata-se, indubitavelmente, de um admirável rosto-objecto; na Rainha Cristina, filme que foi reposto em Paris nos últimos anos, a caracterização tem a espessura de uma camada de neve, como se fosse uma máscara; não é um rosto pintado, é um rosto de gesso, defendido pela superfície da cor e não pelas suas linhas; por sobre toda esta neve ao mesmo tempo frágil e compacta, só os olhos, negros como uma polpa bizarra, mas de maneira nenhuma expressivos, são como duas nódoas um pouco trémulas. Mesmo em toda a sua extrema beleza, esta face, que não é desenhada, mas antes esculpida numa matéria lisa e esfarelável, o que quer dizer que é simultaneamente perfeita e efémera, aproxima-se da face enfarinhada de Charlot, dos seus olhos de vegetal sombrio, do seu rosto de tóteme.
Ora, a tentação da máscara total (a máscara antiga, por exemplo) implica talvez não tanto o tema do oculto (caso das mascarilhas italianas) como o de um arquétipo do rosto humano. Garbo dava a ver uma espécie de ideia platónica da criatura, e é isso que explica que o seu rosto seja quase assexuado, sem todavia ser ambíguo. Ë verdade que o filme se presta a essa indeterminação (a rainha é sucessivamente uma mulher e um jovem cavaleiro); mas a Garbo não realiza nenhuma proeza de disfarce; ela é sempre igual a si mesma, ostentando sem fingimento, debaixo da coroa ou dos seus grandes chapéus de feltro de abas caídas, o mesmo rosto de neve e de solidão. O seu apelido de Divina visava, sem dúvida, menos a expressão de um estado superlativo da beleza do que a essência dia sua pessoa corpórea, caída de um céu em que as coisas são criadas e acabadas na maior das claridades. Ela própria tinha consciência disso: quantas actrizes consentiram em deixar entrever à multidão o amadurecimento inquietante da sua beleza! Ela, não: era preciso que a sua essência se não degradasse, que o seu rosto não conhecesse nunca outra realidade além da perfeição intelectual, mais ainda do que plástica. A Essência foi-se obscurecendo pouco a pouco, progressivamente recoberta pelo véu dos óculos, dos chapéus e dos exílios; mas não se alterou nunca.
E, contudo, sobre este rosto divinizado, algo de mais agudo do que uma máscara se desenha: uma espécie de relação voluntária, e portanto humana, entre a curva das narinas e a arcada das sobrancelhas, uma função pouco vulgar, individual, entre essas duas zonas da face; a máscara não é senão a adição das linhas, o rosto é antes de mais uma referência temática de umas às outras. O rosto da Garbo representa esse momento frágil em que o cinema vai extrair de uma beleza essencial uma beleza existencial, em que o arquétipo vai ser inflectido para a fascinação dos rostos transitórios, em que a claridade das essências carnais vai dar lugar a uma lírica da mulher.
Enquanto momento de transição, o rosto da Garbo concilia duas idades iconográficas, assegura a passagem do terror ao encanto. Como se sabe, encontramo-nos hoje no outro pólo desta evolução: o rosto de Audrey Hepburn, por exemplo, é individualizado, não só pela sua temática particular (a mulher infantil, a mulher felina), mas também pela sua própria pessoa, por uma especificação quase única do rosto, que nada mais tem de essencial, mas é constituído por uma complexidade infinita de funções morfológicas. Como linguagem, a singularidade da Garbo era de natureza conceptual, a de Audrey Hepburn de natureza substancial, O rosto da Garbo é a incarnação da Ideia, o de Hepburn a do Acontecimento.
Mitologias
Roland Barthes
Edições 70
1988