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17 abril 2015

fiama hasse pais brandão / fim de manicure



A voz destas palavras ondula.
Vejo o plano da página por ilusão
superficial. Um artifício sem
repouso. O fim que ainda espera
uma forma. O ciclorama entre
as páginas da leitura e o vácuo.


fiama hasse pais brandão
três rostos
âmago II (nova natureza) 1985-1987
assírio & alvim
1989



06 janeiro 2015

fiama hasse pais brandão / do raio de sol



Raio de Sol na ombreira da porta,
na trave da cadeira, vindo da gelosia,
peço-te para amanhã voltares
mais arqueado pela esfericidade da Terra,
um raio não tão decididamente recto
cravado no meu tórax côncavo,
mas no meu coração curvo como um globo.



fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002




10 julho 2014

fiama hasse pais brandão / nada tão silencioso como o tempo




Nada tão silencioso como o tempo
no interior do corpo. Porque ele passa
com um rumor nas pedras que nos cobrem,
e pelo sonoro desalinho de algumas árvores
que são os nossos cabelos imaginários.
Até nas íris dos olhos o tempo
faz estalar faíscas de luz breve.

Só no interior sem nome do nosso corpo
ou esfera húmida de algum astro
ignoto, numa órbita apartada,
o tempo caladamente persegue
o sangue que se esvai sem som.
Entre o princípio e o fim vem corroer
as vísceras, que ocultamos como a Terra.

Trilam os lábios nossos, à semelhança
das musicais manhãs dos pássaros.
Mesmo os ouvidos cantam até à noite
ouvindo o amor de cada dia.
A pele escorre pelo corpo, com o seu correr
de água, e as lágrimas da angústia
são estridentes quando buscam o eco.

Mas não sentimos dentro do coração que somos
filhos dilectos do tempo e que, se hoje amamos,
foi depois de termos amado ontem.
O tempo é silencioso e enigmático
imerso no denso calor do ventre.
Guardado no silêncio mais espesso,
o tempo faz e desfaz a vida.


  
fiama hasse pais brandão
cenas vivas
relógio d'água
2000






08 maio 2014

fiama hasse pais brandão / da terra


Amar o mar completa a minha vida
com o tacto de um amor imenso.
Amar ateia a margem
arrebata-me de júbilo e paixão.
Mas veio o vento e, por momentos,
amargurou o meu corpo, o oscilar.
E está o sol aqui, depois de uns dias
de jardim obscurecido, a beber sombra.
E sei que os átomos zumbem
e dançam como os insectos
ébrios em redor do pólen.

  

fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002




26 abril 2014

fiama hasse pais brandão / o nome lírico



Esta manhã
hoje
é um nome

Nem mesmo amanheceu
nem o sol
a evoca

Uma palavra
palavra só
a ergue

Com um nome
amanhece
clareia

Não do sol
mas de quem
a nomeia


fiama hasse pais brandão
líricas portuguesas
edições 70
1983 





11 janeiro 2014

fiama hasse pais brandão / da figura das coisas




Hoje, os vendavais
que dão novos ângulos
à figueira nua de folhas,
cujos troncos se desencontram
como riscos feitos no azul
pelo Deus ignoto,
começaram, ou recomeçaram,
o que é o mesmo,
porque ano após ano,
o deus risca nos céus
traços diversos únicos.



fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002



18 dezembro 2013

fiama hasse pais brandão / as espécies de mortos



Há aqueles que morrem
com muitas espadas
no sangue coalhado

Há aqueles na cama
que morrem no corpo
consigo deitado

Há aqueles que morrem
com cavalo e sela
e fato completo

Há aqueles de amor
que morrem de tiro
com o coração

Há aqueles que morrem
por já ter caixão
e ser a idade

Há aqueles de luto
que morrem também
como o defunto

Há aqueles que morrem
com navalha certa
por causa do gume

Há aqueles de armas
que morrem em fila
organizados

Há aqueles que morrem
por não terem cura
e têm parentes

Há aqueles doentes
que morrem no fim
e depois há missa

Há aqueles que morrem
com a mesma morte
e a vida pior

Há aqueles de fome
que por isso morrem
e nem trazem vida

Há aqueles homens
que não têm vida
e morrem pior

  
fiama hasse pais brandão
barcas novas
1967



17 agosto 2013

fiama hasse pais brandão / o podador



Devagar a tesoura poda o arbusto
tornando-o de realidade em desejo
da forma. O que me atrai, a flor,
a folha de fuligem, os troncos curvos
para  os pardais escuros e ocultos.

Devagar os ramos caem e os que o
podador despreza vão entrar na gé-
nesse da nova terra. É inevitável
que tudo isto me crie nostalgia.
Não há um estalido simples, corte só,

nem morte só, a morte daqueles
ramos estendidos pelo gradeamento
a viver naturalmente entretanto.
O podador escolhe assim a aparên-
cia da obra que devagar executa,

na ordem e no capricho da folhagem
para sempre jovem e ágil.



fiama hasse pais brandão
três rostos
âmago II (nova natureza) 1985-1987
assírio & alvim
1989



11 março 2013

fiama hasse pais brandão / o miradouro


  

Temi o verão, o tempo. Aproximava-se.
Vi-o transparecer do que é parado,
de bermas e de vistas.
As pedras de Marvão estavam ligadas,
no miradouro, às pedras
de paisagem. Em tudo era a passagem
da temperatura, o verão
que começava - eu vi - entre muralhas, as aves,
as gralhas de alentejo transmudavam-se
tão quentes, como poderiam ser os fogos
da vila mais vorazes?
esses fogos nas lajes, a mesma combustão
das pedras, a denegrida pele dessas lareiras
em redor.

O temor - era o poente - então reverberava
sobre as partes do horizonte, o monte só
da vila, logo a extensão das terras
baixas, brenhas, os tumultos
de um miradouro alto despenhado
sobre sopés, profusos
traços de uma estação de tempo
que me deteve,
tépida, no miradouro, assim como
temendo a posição de ver
temia a vez
da solidão.




fiama hasse pais brandão
líricas portuguesas
edições 70
1983



08 maio 2012

fiama hasse pais brandão / pequeno uso para a dor






Até a dor
já tem palavras certas
expressão pequena
seja ou não seja breve


Seja ou não
por mais palavras
postas
não cede a dor
ao som

Mas dizem-se palavras
uma expressão pequena
a dor não sendo já
ou até deixar de ser




fiama hasse pais brandão
o texto de João zorro
nome lírico
editorial inova
1974



  




13 março 2012

fiama hasse pais brandão / analogia silenciosa





Emocionava-me a analogia silenciosa
do tumulto do comboio
e do cortejo das nuvens. Via-os
e ouvia-os segundo o princípio de identidade
entre a natureza superior e inferior. Imagino
a passagem monocórdica e invisível dos ventos
que desfazem, uivam e arrastam.
Os sons nocturnos e diurnos fundem-se.
Assim como os volumes e os sulcos
no céu eram perfeitas formas celestes
que obsessivamente me lembravam
os caminhos ao rés da terra.






fiama hasse pais brandão
três rostos
âmago II (nova natureza) 1985-1987
assírio & alvim
1989


  

07 junho 2011

fiama hasse pais brandão / da radioterapia

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A mais radical solidão,
eu, com todo o meu corpo apenas,
pela primeira vez. Eu, que sempre
levava comigo somente os olhos, primeiro,
depois, o ouvido e o tacto. Ali,
naquela câmara do absoluto, do vazio,
do amplo – amplidão que multiplicava o vazio,
atenta enfim, a um cheiro ácido,
do grande Universo invisível.
 



fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002
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14 junho 2010

fiama hasse pais brandão / idade








Conheci dias duradouros,
o sol tão longo entre manhã e tarde.
Um levantar súbito de luz
por trás da crista das heras no muro velho,
e depois descer no verão entre grades verdes
e para além do portão como a cair no Hades,
no inverno. Não havia tempo
nos dias longos, mas a passagem diária
do sol abençoado.







fiama hasse pais brandão
três rostos
poemas revistos 1985-1987
assírio & alvim
1989









19 maio 2010

fiama hasse pais brandão / do amor IV





Esta vista de mar, solitariamente,
dói-me. Apenas dois mares,
dois sóis, duas luas
me dariam riso e bálsamo.
A arte da Natureza pede
o amor em dois olhares.






fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002





27 julho 2009

fiama hasse pais brandão / estradas







1

Esta é a estrada
que me atravessa o tórax
com os seus marcos leves.
Vagarosa vida em terraplanagem,
vivo medo. Tem o cascalho,
o pó, o macadame negro
que nos esmaece. Vai cortar-nos
o som com que gritámos.
Abater a colina clara,
que percorríamos, amantes solitários.
Vai esquecer-se dos passos
de parentes e pássaros.
É a estrada que esventra.
Estivemos no começo
e no fim do seu tempo.







fiama hasse pais brandão
cenas vivas
relógio d'água
2000




22 outubro 2008

fiama hasse pais brandão / do outono II






Sem vento, a minha voz secou
aqui, neste parque de cedros quietos.


Tudo é como ontem era, mas a minha
voz, na minha face, calou-se,
porque só o vento me trazia a fala,
vinda de algures, com notícias de alguém,
indo para além, para outros ouvidos, num país.






fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002





04 outubro 2007

da voz das coisas





Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho

Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.





fiama hasse pais brandão
as fábulas
edições quasi
2002





20 janeiro 2007

fiama hasse pais brandão (1938-2007)




Resposta





"Eu vinha para a vida, e deram-me dias"
vivos com os seus lugares e espaço.

Ontem nasci sem fim, e alimentei-me
nesta mesa que em duas se reparte.
Uma aba no mar, vagante à toa,
trouxe os sabores de ondas, de orlas.
Outra aba na terra mostrou-me as pedras
polidas, úberes, gastas. Pedras
densas que me encheram o ventre
e me criaram similar à Terra.
No mar tive cristais quebrados, jóias;
na terra, tão nítida poeira branca
que fundi as formas das flores visíveis.

E hoje é este olhar profundo,
deriva das imagens pelo mundo.





fiama hasse pais brandão
cenas vivas
relógio d’ água

2000