Escrevi um longo conhecimento do desespero.
Um dia abri na noite as razões silenciosas.
Senti o cérebro torcer-se lentamente e depois
parar, toldado pelo esquecimento. E na amnésia,
entre alguns rios lisos de cores escuras, dias
e noites permaneci. Ao fim de alguns meses
recordei uma cidade, que um rio atravessava,
onde eu conhecera outrora todas as pessoas
destruídas pela sua própria vida e onde só
pessoas assim eu conhecera. Lembrei-me da
maneira estranha como tantas delas tinham
morrido. O alcoolismo era então uma enorme
razão. Alguns dos amigos fumavam marijuana.
O seu riso rachava o muro da noite e descobria,
para trás, lentos cemitérios onde o luar
tingia. Os livros consumiam-me os olhos e
a cabeça doía-me. Pude assim lembrar-me
de ter escrito poemas sobre a doença de
imensa gente, uma espécie de febre, ou uma
coragem constantemente estrangulada, um
último oferecimento do seu desejo à vertigem
e depois, uma manhã em que se sabia dos
suicídios.
Mortos, os seus dedos floresciam a penumbra
dos quartos, os seus lábios apodreciam já
sob poeira azulada, as praças inclinavam-se
uma vez mais como sítios de uma única
ternura. Os seus quartos estavam sempre cheios
de lixo quando os encontravam, e alguns
ainda sorriam daquilo que os tinha feito
dizer: amo-te e podemos tentar ser muito
felizes e depois, quando o desespero os elucidava:
amávamo-nos, poderíamos ter sido felizes.
Escrevi este longo conhecimento dos amigos
mortos e eu próprio escapei a uma noite
qualquer. Mas nesta amnésia de só algumas coisas
ainda mais permaneci.
Essa cidade e esses nomes dissolveu-os o
que pude lembrar: poentes nas esplanadas,
tomando aperitivos e rindo e vendo
a multidão descendo os espessos lugares.
Noites nos dancings ou nos quartos, fumando
a desolação, escrevendo poemas sobre ruínas
e vidas que se consumiam em abandonos
e viagens.
Tudo era estéril como a doença que nos
movia, de lugar para lugar, uma fome pura
e quase construída, uma indiferença que
compreendia tudo e os anos através das
caras e dos corpos e mais tarde o desalento
e estarmos vivos.
Escrevi sobre as tardes e a sua lenta solidão
e depois as vozes vindas através dos sítios
essa cidade em que esqueci o que poderia
escrever ainda, a minha recordação talvez
dos anos, nas bocas azuladas, no repouso
com sangue, com lentos sonhos dentro
dos olhos lívidos, com o último olhar de
esquecimento, o mais árido lugar,
a insuportável solidão.
E repeti dias e dias o desassossego. Os nomes
que poderia lembrar. A cidade com os seus
lugares de desespero o que me foi sendo
possível recordar. E neste desolado hospício,
hoje, vi todo o meu enlouquecimento – um
propósito de me lembrar de todas essas coisas
e o seu lento e doloroso sabor. Um
obsessivo crescer do sofrimento – maior amor.
rui diniz
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987
1 comentário:
Donde é esse poema, meu caro?
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