14 abril 2009

álvaro de campos / nunca conheci quem tivesse levado porrada






Nunca conheci quem tivesse levado porrada
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irresponsavelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infama da vileza.






álvaro de campos
poemas
“sê plural como o universo…”
fernando pessoa , antologia

ambar
2008







3 comentários:

Lídia Borges disse...

Este poema revela uma característica da condição humana muito interessante.
Os olhos não nos desnudam, ao ponto de podermos ver as nossas falhas, debilidades e insuficiências que são, no fundo o que nos torna humanos.

Álvaro de Campos - sempre uma boa escolha.

Delírios de Maria disse...

PRAZER

Que prazer é este estacionado em tua mente,
Que me deixa fincada nessa gazua,
gelada
silenciosa.

OBRIGADA PELO PRAZER DE ESTAR AQUI

Anónimo disse...

Épa, só ontem cheguei à blogosfera e tudo isto para mim é novo... Enfim, andei às voltas com os conteúdos para adultos, mas a verdade é que a pornografia pode tornar-se bastante monótona! Entretanto lá me lembrei de procurar alguma coisa sobre o herberto, que é o meu poeta, e descobri o teu blog... Neste momento não tenho muito para dizer porque ainda estou atónito com a quantidade de informação literária que dispensas, mas não quero deixar passar a oportunidade de escrever o meu primeiro comentário num blog, agradecendo imensamente toda a tua dedicação à causa da literatura. Muito Obrigado!

Renato