23 novembro 2008

m. fernanda silva / ele paira








ele paira
entre dois céus de arame
ele paira
no leito das loucuras ambulantes
sobre os folhos dos louros rios
universais
entre duas mãos que se aglutinam
dois pensamentos enfeitados
de florescentes canduras

ele corta o volume
da estátua de pedra entalada
nos longínquos cenários
do seu espaço adormecido
enquanto paira

as nuvens roçam a pele dos pégasos
perdidos entre mercúrio
e o sol
rutilante sedutor dos temerários
devorador das ambições filiais
deus dos esfriados meninos
sem mamã

ele paira entre ele e ele
no exíguo leito de espelhos
estilhaçados








m.f.s.





20 novembro 2008

fernando pinto do amaral / segredo





Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento,
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projectou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome — essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.







fernando pinto do amaral
às cegas
relógio d´ água
1997





16 novembro 2008

antonio gamoneda / ainda







Há uma erva cujo nome não se sabe; assim foi a
minha vida.


Regresso a casa atravessando o Inverno: esquecimento
e luz sobre as roupas húmidas. Os espelhos estão
vazios e nos pratos cega a solidão.


Ah a pureza das facas abandonadas.









antonio gamoneda
livro do frio
(3-ainda)

trad. de josé bento
assírio & alvim
1999







13 novembro 2008

andre breton e paul éluard / tentativa de simulação da debilidade mental





Entre todos os homens, com vinte e quatro anos, reconheci que para nos elevarmos à categoria de homem considerado não era preciso ter mais do que eu a consciência do seu valor. Sustentei há muito tempo que a virtude não é estimada, mas que meu pai tinha razão quando queria que eu me elevasse muito alto acima dos seus confrades. Em absoluto não compreendo que se conceda a Legião de honra a personalidades estrangeiras de passagem em França. Acho que esta condecoração devia estar reservada para os oficiais que fazem actos de bravura e para os engenheiros de minas saindo da Politécnica. De facto é preciso que o grande mestre da Ordem de Cavalaria não tenha bom senso para reconhecer mérito onde ele não existe. De todas as distinções, oficial é a mais lisonjeira. Mas não se pode passar sem diploma. Meu pai deu aos seus cinco filhos rapazes e raparigas a melhor instrução e urna boa educação. Não é para aceitar um emprego sem retribuição muna administração que não paga. Aqui está a prova: quando se é capaz, como meu irmão mais velho, que várias vezes concorreu nos jornais para obter o fim desejado contra bacharéis em Letras e Ciências, pode dizer-se que se tem a quem fazer frente. Mas em cada dia seu trabalho, diz o provérbio. Trago na algibeira de dentro do meu casaco de Verão os planos de um submarino que quero oferecer à Defesa Nacional. A cabina do comandante está desenhada a vermelho e os canhões lança-torpedos são do último modelo hidráulico, com comando artesiano. Os ases da estrada não apresentam mais energia do que eu. Não me sinto constrangido por garantir que esta invenção deve triunfar. Todos os homens são partidários da Liberdade, da Igualdade, da Fraternidade e, eu acrescento, da Solidariedade mútua. Mas isto não é uma razão para não nos defendermos daqueles que nos atacam pelo mar. Escrevi ao Presidente da República uma carta secreta em papel ministro pedindo para o ver. A esquadra mediterrânica cruza neste momento ao largo de Constantina, mas o almirante concede poucas licenças. Um soldado por mais que faça tem de se pôr de joelhos por humildade diante do seu superior, ordens são ordens. A disciplina beneficia quando o chefe é justo mas firme. Não se dão gaIões a torto e a direito e o Marechal Foch merecia ser realmente o Marechal Foch. O livre-pensamento tem estado errado em não se pôr ao serviço da França.

Apoio também que se mude o nome aos fuzileiros navais, fiz uma diligência nesse sentido junto da Liga dos Direitos do Homem. Este nome é indigno do seu colarinho anil. Cabe-lhes a eles, aliás, fazerem-se respeitar. A Grécia da Lacedemónia era orgulhosa de urna maneira diferente. Enfim o homem crê em Deus e viram-se grandes cabeças pedirem a extrema-unção, é já um ponto importante.





andre breton e paul éluard
as possessões
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972




05 novembro 2008

sylvia plath / colosso








Nunca conseguirei juntar-te todo,
compor-te, colar-te e unir-te devidamente.
Zurros de machos, grunhidos de porco e cacarejos
[obscenos
saem dos teus lábios.
É bem pior que num curral.

Talvez te consideres um oráculo,
porta-voz dos mortos, ou de um outro deus.
Há trinta anos que trabalho
para dragar o lodo da tua garganta.
Pouco mais sei!

Trepando pequenas escadas com frascos de cola e baldes
[de lisol
rastejo como uma formiga de luto
sobre as terras cobertas de erva da tua fonte
para reparar as imensas placas do teu crânio e limpar
os túmulos brancos, vazios dos teus olhos.

Um céu azul saído da Oresteia
arqueia-se sobre nós. Ó pai, tu só
és vigoroso e histórico como o Forum Romano.
Abro a minha merenda numa colina de ciprestes negros.
Os teus ossos estriados e os teus cabelos como o acanto
[estão espalhados

na sua velha anarquia até à linha do horizonte.
Seria preciso mais que o golpe de um relâmpago
para criar tal ruína.
De noite escondo-me na cornucópia
do teu ouvido esquerdo, abrigada do vento,

contando as estrelas, rubras ou cor-de-ameixa.
O sol ergue-se sob o pilar da tua língua,
as minhas horas casam-se com a sombra.
Já não escuto o raspar de uma quilha
nas brancas pedras do desembocadouro.



sylvia plath
pela água
tradução de maria de lurdes guimarães
assírio & alvim
1990





03 novembro 2008

pier paolo pasolini / as cinzas de gramsci







IV



O escândalo de me contradizer, de estar
contigo e contra ti; contigo no coração,
à luz do dia, contra ti na noite das entranhas;

traidor da condição paterrna
- em pensamento, numa sombra de acção –
a ela me liguei no ardor

dos instintos, da paixão estética;
fascinado por uma vida proletária
muito anterior a ti, a minha religião

é a sua alegria, não a sua luta
de milénios: a sua natureza, não a sua
consciência; só a força originária

do homem, que na acção se perdeu,
lhe dá a embriaguez da nostalgia
e um halo poético e mais nada

sei dizer, a não ser o que seria
justo, mas não sincero, amor abstracto,
e não dolorida simpatia…

Pobre como os pobres, agarro-me
como eles a esperanças humilhantes,
como eles, para viver me bato

dia a dia. Mas na minha desoladora
condição de deserdado,
possuo a mais exaltante

das poses burguesas, o bem mais absoluto.
Todavia, se possuo a história,
também a história me possui e me ilumina:


mas de que serve a luz?










pier paolo pasolini

poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005