10 janeiro 2005

quatro estações #crónicas de inverno


Brueghel, provérbios populares flamengos



Lua em escorpião


É Natal e tenho os pés frios,
não genialmente frios como Pessoa,
apenas uns vulgares pés frios.
*
*
Nesta época há uma vontade especial
de desfigurar a cidade...
*
*
Belém seria um imenso tabuleiro de xadrez
só com peças pretas
exceptuando dois cavalos,
seriam de mármore dando um certo ar
de castelo medieval ao Mosteiro,
que acolheria a escola dos domadores de luas.
*
*
Ao Tejo decretava pena máxima:
uma planície de nevoeiro futurista
daquele com arco-íris por baixo
e inúmeras pontes para o pote de ouro,
todo sonorizado com jazz low-profile
para as árvores e plantas consumirem alegremente.
(principalmente as plantas)
*
*
No meio a consciência colectiva,
no meio, a grande alma decepada de vida,
no meio, os olhos e as bocas secas,
no meio, a fonte de fumo sem fogo,
no meio, a guitarra de doze cordas,
o coração do poeta aberto como uma melancia,
no meio, entre paredes fortificadas,
no meio era a cidade
os sexos virgens, a fome
e a cegueira.
No meio era a cidade
entre paredes fortificadas.
*
*
Com o dedo passava as tardes a descrever vertigens
e breves desenhos
num imóvel espelho de água.
Eu e aquela coisa que surgiu
éramos só um espaço dentro do poema
onde dois sorrisos fugiam em cumplicidade, do rosto.
E no entanto, um espaço tornou-se tudo...
Bastou para descrever-lhe os seios,
cozer-lhe uns olhos de mel e
um sorriso mariposa vermelho,
plantar-lhe sementes de cio e
de tempestade no sexo de areia,
remendar-lhe as lágrimas.
*
*
“Your time has come”
*
*
No limiar do milénio irá lembrar-se...
Como eu lembro, o nosso amor, um amplexo no cérebro
sob a forma de explosões de uma guerra
perdida no tempo, masoquista.
*
*
Ontem implorei a devolução da paisagem,
das barreiras
das grandes bebedeiras de verde,
e enviei-te para debaixo do nevoeiro
encaminhada para o teu tesouro.
*
*
O espelho de água solidificou, é verdade...
Mas agora quero saltar as paredes do meio
e tomar chá com a rainha,
montar os cavalos de mármore
e ensinar aos artistas o ofício dos sonhos,
fixar a lua em escorpião
e provar o seu veneno contigo.
*
Boneca de trapos
*
vou fazer-te uma confidência:
o Tejo é infiel... fui eu que o criei...



Tiago Alexandre Belejo Correia

1 comentário:

Instantes Perdidos disse...

Pois,

Pois, um enorme texto poetico que toca o fundo do coração, espelhos de prata reflectem as tuas alvas palavras em calmas desmedidas.
É muito tranquilo este poema, muito nostalgico e ao mesmo tempo está na superficie do nosso ser em sonoridade... Sim é um contra-senso mas é mesmo um contra-senso agradável.

Sendo mais simples, digo que gostei muito.

Comentado por Artur Rebelo (Versejador)