17 janeiro 2025

raffaele carrieri / um só fruto

 
 
 
Com o vermelho dum só fruto
Poderia beber comer
E pintar uma bandeira.
Com os bagos duma romã
Poderia acender fogueiras
Na língua
Ou abrir uma ourivesaria.
Entro como um ladrão
Neste mundo
De esferas e anéis
E não sei sair.
 
 
raffaele carrieri
dez poetas italianos contemporâneos em selecção
trad. albano martins
dom quixote
1992





 

16 janeiro 2025

maria sousa / o passado é cada instante

 



 
o  passado é cada instante
em que a casa te parece cheia
 
há uma porta que ninguém abre
uma máquina de inventar vozes
 
e tu vives na solidão até
as lágrimas te cortarem a voz
 
 
 
maria sousa
não abras a porta a estranhos
do lado esquerdo
2019




15 janeiro 2025

maria f. roldão / fragilidade

 
 
 
No cesto das conquistas
coloco ovos de luz e ébano.
As dores bem arrumadas ao centro
e à volta o cansaço, em calibre mais pequeno.
No cimo, ervas de respostas,
em jeito de resguardo,
evitando que o pulso dispare outra vez.
 
Disponho camadas de ócio:
ferro das manhãs quezilentas.
Um papel vegetal de prudência.
 
E na asa tantos destemperos
que a mão mal consegue unir-se,
tão febril e trémula. Cheia de pavor
d’estilhaçar a vida.
 
 
 
maria f. roldão
pequeno sangue
volta d´mar
2021
 




14 janeiro 2025

maria gabriela llansol / LV. eu sei

 
 
 
Um piano pode crescer como uma criança? Pode, nos nossos ou-
vidos formados, ser esse instrumento de sussurro, como dom
_______ também o urso se tornou minúsculo e o elefante se reduziu
à visão que eu tinha do marfim.        Se o desconhecido que havia de
entrar fosse órfão,
eu considerá-lo-ia mais livre do que só,
ou só era apenas a imagem do liberto.
 
 
 
maria gabriela llansol
amigo e amiga
curso de silênco de 2004
assírio & alvim
2006




13 janeiro 2025

gastão cruz / de cada vez

  
 
Contínua realidade que me sorves os dias
como hei-de responder-te se vives incluída
dos meus olhos abertos nas ávidas e frias
pedras incertas vida
 
prisioneira do espelho que embacias
de cada vez que a turva suicida
torna ao morrer visíveis
as formas com que comes os meus dias
 
 
 
gastão cruz
rosa do mundo, 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




12 janeiro 2025

nina gorlanova / tercetos

 
 
 
As crianças não gastaram o seu dinheiro
Para os gelados
E deram-no ao pai para a cerveja.
 
A filha do meio
Desenvolveu o gosto pela leitura
Devido às minhas orações.
 
É só em sonhos que
Hoje em dia vejo
Pessoas que o conseguiram.
 
Tudo melhorou
Mesmo quando estávamos furiosos um com o outro
Nunca partimos um prato…
 
O meu filho mais novo
Lê como os Romanos antigos
Em voz alta e reclinado.
 
Ao ler a prosa de Brodsky
Descobri uma afinidade espiritual:
Uma intensa paixão pelo pó…
 
 
 
nina gorlanova
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022
 




11 janeiro 2025

fernando ortiz / outra divagação

 
 
 
Onde estão os que o silêncio oculta?
Pergunta ao silêncio, se for a tua hora,
e com seus lábios o silêncio te falará.
Ao silêncio não podes responder-lhe
se não for com o silêncio que tu sabes
onde encontrar. Aí o silêncio habita
e nele estão os que  ao silêncio ouviram.
 
 
 
fernando ortiz
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997





10 janeiro 2025

louise glück / lago na cratera

 
 
 
Houve uma guerra entre o bem e o mal.
Decidimos que o corpo era o bem.
 
Isso fez da morte o mal.
E virou a alma
inteiramente contra a morte.
 
Como um soldado raso desejoso
de servir um poderoso guerreiro, a alma
desejou aliar-se ao corpo.
 
Virou-se contra as trevas,
contra as formas de morte
que reconhecia.
 
De onde provém a voz
que diz: e se a guerra
for o mal? Que diz:
 
e se foi o corpo que nos fez isto,
nos deixou com medo do amor?
 
 
 
louise glück
averno
tradução de inês dias
relógio d´água
2020




09 janeiro 2025

emanuel jorge botelho / claro/escuro

 
 
 
faço o quê com a amargura?
guardo-a no bolso,
ou ponho sobre ela o peso de um dia aziago?
talvez o mar me salve, ou me converta,
talvez a terra seja o meu arado.
 
quando o tempo passar à minha frente,
peço-lhe uma folha de tília,
e um pedaço de céu.
 
 
 
emanuel jorge botelho
sombras e outros disfarces
averno
2022
 



08 janeiro 2025

miguel bonneville / livro do daniel

 
 
 
XLI.
 
depois de um dia inteiro
a lutar individualmente pela sua sobrevivência
os pássaros reúnem-se para criarem
em conjunto
um momento de beleza.
 
é esse o sentido de comunidade –
 
de todas as teorias que conheço,
é esta a que prefiro.
 
 
 
miguel bonneville
livro do daniel e outros textos
editora urutau
2024
 



07 janeiro 2025

pedro tamen / a água

 
 
1.
 
Agora muitos montes; e o rio
se levanta e corre nos intervalos
dos gestos. Saber sentir o frio
de todos os ribeiros é amá-los.
 
Agora é ir correndo os dedos
pela pele; abrir o peito
a todos os cuidados e segredos,
amar-me já refeito.
 
Agora perder tudo; ter aberta
a carne de aventura naufragada.
Agora receber e estar alerta,
 
agora ter razão na mão molhada.
Agora desnudar a lama certa
e esperar vê-la escorrida e bafejada.
 
 
 
pedro tamen
o sangue, a água e o vinho
tábua das matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995
 


06 janeiro 2025

r. lino / outro círculo

 
 
 
1.
 
Certo é que outras palavras poderiam
transtornar estes dizeres
NAVIOS DE NEVOEIRO APONTADOS PARA O MAR
COM A TERRA NOS SEUS SONHOS.
Não se sabe para que olharam
ou do que viram o que contaram:
o esquecimento guiou alguns
para o futuro; de outros pouco mais sabemos
senão o peso que deixaram nas cidades,
apostas mais ou menos eficazes
e perversas sob o peso das nações.
Um fôlego enorme nasce com os dias
por notícias devastadas sobre a terra:
somos uns e somos outros
consoante as esquinas em que viramos.
De que modo nos apanha o corpo
o pensamento, este cheiro, aquela casa
uma tarde ou uma bala
é um tempo
marcado pelo ritmo de uma voz.
 
 
 
r. lino
paisagens de além tejo
políptico
companhia das ilhas
2016
 



05 janeiro 2025

jaime rocha / poema

 
 
 
Ao fundo, as nuvens chocam com as
casas. Os pássaros gritam e há homens
que se atiram das varandas como se
fossem vasos empurrados pelo vento.
Os carros esmagam os bichos que correm
pelo alcatrão. É quase Primavera, o frio
anuncia uma culpa antiga, a solidão
dos guerreiros. E há outro homem
que diz: gosto das árvores, do seu tronco
e das raízes que rasgam as calçadas. Esse
homem decidira viver porque pertencia
à humidade das paredes, aos telhados de
barro, às bétulas. Era dali que lhe vinha
a força dos braços, a claridade que se lhe
prendera à pele. Era esta a sua confissão.
Mas, após ter dito aquelas palavras lançou-se
para o espaço, seguindo a trajectória da chuva.
 
 
 
jaime rocha
resumo, a poesia em 2011
assírio & alvim
2012