23 agosto 2025

ana paula inácio / 1 família feliz

  
Vamos para a praia e levamos:
 
– 1 baralho de cartas,
subtraindo as da electricidade e da água,
ficaremos com as de paus,
por uma questão de sobrevivência,
com 4 paus fazes uma canoa,
como no poema de 2000,
e as de espadas
que é arsenal bélico
de que não se desconfia
(a precaução é relativa à aparência islâmica);
 
– 1 bola de plástico
que jogaremos entre nós
sem levantar suspeitas
ou olhares a outrem
infringindo o 3.º dever
da lista deontológica cristã.
 
Não ergueremos a voz
a um decibel prejudicial ao meio ambiente,
ninguém dirá que
– e seguindo a equação agustiniana da feliciade
é dela condição necessária e suficiente um testemunho que
     a ateste –
não somos 1 família feliz.
 
 
 
ana paula inácio
2010-2011
averno
2011



22 agosto 2025

r. lino / nove instantâneos do sul

  
.quarto.
 
talvez a nora não tenha aqui
do seu tamanho o maior.
aqui.
 
Quando a vasta terra se descobre
lá mais para o sul
na primazia do deserto,
 
há enormes cegonhas poeirentas
que debicam nas raras águas
a funda alegria dos seus poços.
 
 
 
r. lino
nove instantâneos do sul
políptico
companhia das ilhas
2016
 

21 agosto 2025

maria teresa horta / laranja

  
Rosa branda na espuma
do meio-dia
com janelas abertas nas laranjas
 
E um risco de sombra
sobre o sal
traçado devagar, como uma franja
 
Meu claustro de musgo
e de fermento
onde o ferro se perde de humidade
 
Onde o tempo se inventa
noutro tempo
feito de musgo, framboesa e carne
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
educação sentimental
dom quixote
2009
 

20 agosto 2025

fernanda botelho / as coordenadas líricas

  
Desviou-se o paralelo um quase nada
e tudo escureceu:
era luz disfarçada em madrugada
a luz que me envolveu.
 
A geométrica forma de meus passos
procura um mar redondo.
Levo comigo, dentro dos meus braços,
oculto, todo o mundo.
 
Sozinha já não vou. Apenas fujo
às regras emboscadas.
Em cada esfera desenho o meu relógio
– as minhas coordenadas.
 
 
 
fernanda botelho
as coordenadas líricas  (1951)
antologia da novíssima poesia portuguesa
m. alberta menéres e e. m. de mello e castro
moraes editora
1971
 
 


19 agosto 2025

judith teixeira / a sesta



 

 

O sol em calmaria sofucante,
abrindo as grandes azas luminosas
adejou sobre a serra culminante
abrazando-lhe as faces pedregosas…
 
Subindo luminoso, mais brilhante
abrangeu as planícies argilosas
emudecendo a fonte sussurante –
sequioso, anda, a sorver as rosas!...
 
As abelhas, zumbindo nos silvados,
lembram pingos de fogo, condensados,
a refulgirem sob as suas azas…
 
E descansando á sombra dos sobreiros
o encalmado rancho dos ceifeiros
foge aos seus beijos rubros como brazas!
 
Agosto – 922
 
 
 
judith teixeira
castelo de sombras
1923
 




 

18 agosto 2025

salette tavares / dorme o meu peso de água...

  
 
Dorme o meu peso de água numa fonte
um brilho de pena que me dói
molhada, escorrida, plena
doçura de praia serena
um ainda que se foi.
 
Dorme o meu peso de pedra sob o sol
um perto de pavor em que me movo
rica, lúcida, límpida
certeza loira de trigo
na dúvida fatal que te persigo.
 
Dorme o meu peso de hera sob a chuva
um longe de aventura que me segue
escassa, pálida, breve
ternura que a tarde escreve
um sempre que nada dura.
 
 
 
salette tavares
espelho cego (1957)
antologia da novíssima poesia portuguesa
m. alberta menéres e e. m. de mello e castro
moraes editora
1971
 



 

17 agosto 2025

adília lopes / almoço do trolha

  
Pobríssimos
as cabeças cortadas
mas tão felizes
homem mulher e bebé
de um tijolo
do patrão
fizeram um assento
o Estado Novo impede-os
de tirar os sapatos
o Partido Comunista também
desce sobre eles
o Espírito Santo
do almoço
vão comer língua?
 
 
adilia lopes
clube da poetisa morta (1997)
caras  baratas
antologia
relógio d´água
2004




16 agosto 2025

natália correia / cântico do país emerso

  
I
 
ENQUANTO que no mar das Caraíbas
Os albatrozes os peixes-voadores
Os sargaços a bússola a espuma
E a nossa Senhora dos Navegadores
Se punham ao serviço de uma
Nação acabada de nascer,
 
Terra transportuguesa de longo curso
Onde os homens andam de tronco nu
E a barba produz ardor como a urtiga
Onde o instinto lê no voo das aves
Como uma sibila e o medo é abandonado
No país das sombras do urubu:;
 
Terra onde as decisões têm a rapidez
Do leopardo e a fome desenha no ar
Uma hipérbole arquejante; terra onde
A fraternidade é rude como a flor do cardo
E os homens usam a alma como um instrumento cortante;
 
Terra onde por enquanto não há
Encontro às seis horas no bar
Nem estilo de vida nova-iorquino
Nem razões para um homem se casar
Nem o fim-de-semana arrabaldino
Onde não há vivendas para alugar
Com cadeiras de verga sobre a relva;
 
Selva atónita ainda pela desfloração
O violento estupro dos machados
As panteras tensas da iniciação
O batuque dos seus sentidos alterados
Os tigres encolhidos da contracção uterina
Os gamos assustados dos seus peitos
As gazelas da sujeição à força masculina
E o elefante sossegado dos instintos satisfeitos…
 
Terra saudada ainda pelas
Estrelas-do-mar e outras estrelas
Meninas dos olhos dos marujos
Extasiados do avesso sempre
Que um português se fez ao mar
Não para descobrir a Índia
(Isso era o começo de um mundo
Com ondas por fecundar) mas
Para fazer um filho às vagas
Fêmeas de gosto salgado e de ancas
Largas. Mulheres que aderem à pele
Como a salsugem. As únicas
Que verdadeiramente se estorcem e rugem;
 
 
 
natália correia
cântico do país emerso
antologia poética
dom quixote
2018





15 agosto 2025

fiama hasse pais brandão / sistema solar



 
 
Cada voz tem o seu contraponto
num ruído natural. Cada silêncio,
no silente espaço que rodeia, por vezes,
cada coisa. À beira do berço as bocas
percutem sobre a criança. Depois, no sono,
abrem-se como qualquer flor. Sobre
os cílios da adolescente tecem frases.
 
                               *
 
À beira do berço as bocas
percutem sobre a criança. Depois no sono
adensam-se como qualquer árvore. Sobre
os cílios da adolescente tecem frases.
Cada silêncio corporiza-se no espaço.
As coisas têm eixos e rodam
com ruídos diferentes do seu nome.
E o Sol tramonta entre vestígios,
Além dos montes e vales e o mar.
 
                               *
 
E o Sol tramonta sobre as nossas casas
e os montes e vales e o nosso mar.
quando um verso marca o lugar das coisas
elas aí ficam para sempre. O Sol
que perpassa em cumes e em cristas
nasce nas arestas serranas do nascente
e vai até ao mar em sete versos.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
cenas vivas
relógio d'água
2000




 

14 agosto 2025

natércia freire / hoje, mãe, chega o verão

  
 
                        «Hoje, Mãe, à meia-noite e trinta e cinco,
                        Chega o Verão. Eu vou esperá-lo na varanda.»
 
                        Luís Manuel – 8 anos

 

 
Sobre as copas das árvores da mata
É que o vias chegar
Deus generoso, antigo
A navegar
Desdobrando os navios coloridos
Dessas manhãs sulinas
A mergulhar nas águas submarinas
Verdes, verdes de jóias e sargaços.
 
E sob a tarde em brasa
E cantos roucos
De pássaros com sede
Fogem-te azuis os olhos de criança
Para as viagens que se chamam Espanha.
E Julho, Verão, Baviera, são cometas
E carrocéis em límpidas clareiras.
 
Ouves bronzes de anúncios musicais
No Verão que te pertence e que te abraça
No Verão que tu abraças como Irmão
No Verão dos frutos, teus Irmãos também.
 
Nos somos passageiros, sob tendas
De nómadas, cegando à claridade…
 
Mas para ti, as lendas
É que são a Verdade.
 
 
 
natércia freire
foi apenas ontem (1977-1987)
antologia poética
assírio & alvim
2001
 

13 agosto 2025

tereza balté / a folha não é livre

  
 
A folha não é livre tem um caule
uma raiz suposta a que se prende
à terra à atmosfera confluente
que lhe traz alimento imponderável
 
no interior do quarto a folha verde
cativa empalidece transparente
ao pouco sol que a janela consente
volta para a luz a face mais atreita
 
aceita humilde a réstia que aproveita
afila o caule subtiliza a sede
subsiste planta verde por uns meses
 
até ao tempo da ternura extrema
em que não é mais flor fica semente
e em silêncio encontram-na liberta
 
 
tereza balté
horizontes portáteis
editorial inova
1977


12 agosto 2025

eduarda chiote / inteireza

  
De obsessivo sol, surgia, na praia,
a inteireza severa
de um rochedo
se oferecendo à voracidade do magma
e ao que nele, de mais fundo,
almejava
sangrar.
 
O mênstruo das águas
coroava-o,
e era por essa cor tingida de pulmões
que algo de muito agudo,
um bicho, de um ocre indistinto
da sua natureza,
deslizava. Respirando-lhe, nos interstícios,
um silêncio
possesso de morte.
 
Em inesgotável nudez, a pele de um homem
escalava-o
e tão de dentro para fora, tão inteira e exacta,
que o gesto
lhe apagava a sugestão
de eternidade.
 
 
 
eduarda chiote
a celebração do pó
asa
2001
 



11 agosto 2025

sophia de mello breyner andresen / inicial

  
 
O mar azul e branco e as luzidias
Pedras – O arfado espaço
Onde o que está lavado se relava
Para o rito do espanto e do começo
Onde sou a mim mesma devolvida
Em sal espuma e concha regressada
À praia inicial da minha vida.
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
dual
caminho
2004