30 setembro 2021

alberto pereira / catálogo para desabar

 
 
V
 
Da catedral à erva,
de Beethoven ao soneto final,
basta apenas a dança
de um teorema fugaz.
 
O amor,
velha raposa
aguardando o primeiro comboio para a neve.
 
 
 
alberto pereira
como num naufrágio interior morremos
editora urutau
2019






29 setembro 2021

tomás sottomayor / veio nocturno onde o outono

 
 
Veio nocturno onde o Outono
Repousa dormente
E as folhas
Num murmuro tépido
Fazem as suas vozes brancas
Assomar do leito do adeus.
 
Delicados luzeiros cativos
Transplantados para as cidades
Onde, por sobre as lajes
Alumiais as cabeças fatigadas
Da turba com as vossas
Luzes frias.
 
Pirilampos sem memória
Cobertos de cera
Entristecem, entontecem
A pele das estrelas.
 
 
 
tomás sottomayor
auberge ravoux
língua morta
2021





 
 

28 setembro 2021

joan margarit / perde-se o sinal

 
 
Não tenhas piedade do que foste,
porque a piedade é demasiado breve:
não dá tempo para construir nada.
De noite, num pequeno aeroporto,
vês um avião que vai subindo.
Vai-se perdendo o sinal.
E convences-te de que vives
uma época que, sem esperança,
é já a mais feliz da tua vida.
Há uma outra poesia, haverá sempre,
como há uma outra música.
A de Beethoven surdo. Quando se perde o sinal.
 
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020






27 setembro 2021

john freeman / correio

 
 
Naquele tempo escrevíamos muito
um ao outro, longas cartas
enredadas que cruzavam um país, onde
eu lhe perguntava se sabia da minha gratidão;
as suas respostas tão generosas
que só agora me apercebo
que não era gratidão a minha
gratidão, mas novo pedido.
 
 

john freeman
mapas
trad. miguel cardoso
tinta da china
2019







26 setembro 2021

jorge de sena / l' été au portugal

 
 
Que esperar daqui? O que esta gente
não espera porque espera sem esperar?
O que só vida e morte
informes consentidas
em todos se devora e lhes devora as vidas?
O que quais de baratas e a baratas
é o pó de raiva com que se envenenam?
 
Emigram-se uns para as Europas
e voltam como se eram só mais ricos.
Outros se ficam envergando as opas
de lágrimas de gozo e sarapicos.
 
Nas serras nuas, nos baldios campos,
nas artes e mesteres que se esvaziam,
resta um relento de lampeiros lampos
espanejando as caudas com que se ataviam.
 
Que Portugal se espera em Portugal?
Que gente ainda há de erguer-se desta gente?
Pagam-se impérios como o bem e o mal
- mas com que há-de pagar-se quem se agacha e mente?
 
Chatins engravatados, pelenguentas fúfias
passam de trombas de automóvel caro.
Soldados, prostitutas, tanto rapaz sem braços
ou sem as pernas - e como cães sem faro
os pilhas poetas se versejam trúfias.
 
Velhos e novos, moribundos mortos
se arrastam todos para o nada nulo.
Uns cantam, outros choram, mas tão tortos
que a mesquinhez tresanda ao mais singelo pulo.
 
Chicote? Bomba? Creolina? A liberdade?
É tarde, e estão contentes de tristeza,
sentados em seu mijo, alimentados
dos ossos e do sangue de quem não se vende.
 
(Na tarde que anoitece o entardecer nos prende).
 
 
                                           Lisboa, Agosto de 1971
 

jorge de sena
exorcismo (1972)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972





25 setembro 2021

pedro loureiro / há uma voz que nunca fala

 



 
há uma voz que nunca fala
uma voz de segredo
que no calor da ferida hiberna
rasgam-lhe o corpo
e somente brota um rumor
eco de um grito
é obstinada esta voz
sem nenhum ouvido
que a consiga parar
e o segredo cresce, denso
por trás da tela de projecção
enquanto a falsa moeda
inunda demasiadas bocas
a inviabilizar o repouso
em ritual de oposição
à pureza de um fogo
que incendeia
que consome
que ultrapassa
a hipotermia cerebral
das gentes contínuas
 
 
 
 
pedro loureiro
negro silêncio
(uma série a partir da obra de Rui Chafes)
editora urutau
2020





24 setembro 2021

nuno dempster / fisgas

 
 
Desconfio que as tias,
descidas de Amarante
para viverem na Foz,
saberiam da minha gula
por que ia visitá-las alternadamente,
e também deveriam calcular
que, a um puto insubmisso,
dono de várias fisgas,
teria de adoçar-se a boca
de vez em quando
com moedas de dez tostões;
ou então condoíam-se do meu destino
e do fado da minha mãe,
que viera com elas das margens do Tâmega,
mais os seus papos-de-anjo.
De qualquer modo,
continuava a ser um puto,
 senhor de várias fisgas,
guerrilheiro contra a injustiça
e a ternura adversa
que julgo nos unia, a mim, à minha mãe
e às minhas alternadas tias.
Com esses dez tostões,
conseguia comprar um croissant
e ainda um pão-de-leite
na Tavi da Senhora da Luz.
A diferença agora é que,
trazendo ainda fisgas,
não tenho quem me dê os dez tostões,
as minhas tias morreram
e os croissants e pães-de-leite
custam quarenta vezes mais
e não os acho bons.
 
 
 
 
nuno dempster
nervo/12
colectivo de poesia
setembro/dezembro 2021
 





 

23 setembro 2021

ángél gonzález / porvir

 
 
Chamam-te porvir
porque nunca vens.
 
Chamam-te: porvir,
e esperam que tu venhas
como um animal manso
comer-lhes à mão.
 
Mas tu continuas
para lá das horas,
agachado não se sabe onde.
… Amanhã!
                       E amanhã será outro dia calmo,
um dia como hoje, quinta ou terça-feira,
qualquer coisa e não aquilo
que esperamos não obstante, ainda, sempre.
 
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018

 





22 setembro 2021

charles bukowski / amor

 
 
já vi velhos casais
sentados em cadeiras de baloiço
um diante do outro
sendo congratulados e celebrados
por estarem juntos há cinquenta ou sessenta
anos
que teriam
tanto tempo atrás
aceitado qualquer outra
coisa
mas o destino
o medo e
as circunstâncias
uniram-nos,
e enquanto lhes dizemos o
quão fantásticos são
nesse amor gigante e duradouro
somente eles
sabem na verdade
mas não nos podem dizer
que desde o seu primeiro
encontro
em diante
nada teve tanto
significado assim
como
esperar agora pela
morte.
é mais ou menos a mesma
coisa.
 
 
 
 
 
charles bukowsky
sobre o amor
trad. de valério romão
alfaguara
2021

 





21 setembro 2021

josé carlos barros / em segredo

 
 
Mas temos o vinho
e temos as cartas:
essas que uma vez marcámos
em segredo
para que ambos perdêssemos
quando jogássemos
um
contra o
outro.
 
 
 
 
josé carlos barros
o uso dos venenos
língua morta
2018

 





20 setembro 2021

egito gonçalves / nenhum amor é total

 
 
Nenhum amor é total, nenhum amor desenha a latitude e longitude como linhas ideais; na massa em fusão há sempre uma impureza, todo o amor tem as suas fissuras a vigiar constantemente. O dia, raro atinge a sua ponta extrema.
 
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020








 

19 setembro 2021

luís filipe parrado / o verbo amar

 
 
Tão inútil. Conjuguei-o
na primeira pessoa tantas vezes
naquele verão e
nem assim me mostraste
os seios.
 
 
luís filipe parrado
roma não perdoa a traidores
língua morta
2021






18 setembro 2021

luca argel / falando no diabo

  
é preciso dizer que ele há muito saiu de cena
e no Inferno já mal se lembram dele.
desde então deixou de haver
(último refúgio de satisfação!)
Alguém em quem jogar a culpa.
 
 
 
luca argel
fui ao inferno e lembrei-me de ti:
averno
2019