13 junho 2019

josé tolentino mendonça / escarpas



Cruzámos os dias de Verão
o destino perseguia-nos com um ímpeto relutante
a listar calamidades
numa ascensão
por escarpas que tínhamos julgado a salvo


Corríamos o litoral com a nossa turbulenta forma
ou deixávamo-nos imóveis a ponto de parecer mortos
entre beleza, sobreposição e perigo
sem grande esclarecimento
a noite despenhava-se
no silêncio da corrente


O vento do mar já conseguiu acalmar muitos corações
mas os nossos não


josé tolentino mendonça
estação central
assírio & alvim
2012






12 junho 2019

ana hatherly / 463 tisanas



319

O mar é a minha mais antiga obsessão. Vive sempre perto do mar e dum mar que encheu a minha infância de alterosas vagas povoando de terror os meus sonhos. Mas longe do mar ainda hoje sinto um inexplicável exílio. Penso nisto lendo um livro de A. S. De repente, na página 289, está escrito: envelhecer é multiplicar-se interiormente.


ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006








11 junho 2019

herberto helder / aos amigos




Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
— Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.


herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996










10 junho 2019

jorge de sena / camões dirige-se aos seus contemporâneos



Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.



jorge de sena
metamorfoses (1963)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972






09 junho 2019

josé de almada negreiros / férias



Nas ruas da aldeia
as casas fechadas nos seus segredos
(como mudos que só não têm fala para dizer)
como figuras d´altar aureoladas pelo fluido de cada destino
e a brisa avoluma-se de mistério
e a paisagem pinta-se de cores parecidas
com o que podia ter sido
a tingirem os pensamentos em cadeia
ou em girândola de glória ao Deus-dará
a fingirem significação connosco pessoalmente
a animarem-nos
a ajudarem-nos a levarmos o peso do corpo
uns dias mais
uns anos mais
até quando for
até se engelhar a carne e terminar o serviço
e não ter acontecido o que afinal vivemos
e ficar uma coluna lisa no ar, sem nenhum tecto apoiado
ou uma pedra rasa do chão
sem um sentido senão para cada qual
um sinal para não pisarem ali




josé de almada negreiros
poemas
assírio & alvim
2017





08 junho 2019

antero de quental / mea culpa



Não duvido que o mundo no seu eixo
Gire suspenso e volva em harmonia;
Que o homem suba e vá da noite ao dia,
E o homem vá subindo insecto e seixo.

Não chamo a Deus tirano, nem me queixo,
Nem chamo ao céu da vida noite fria:
Não chamo à existência hora sombria;
Acaso, à ordem; nem à lei desleixo.

A Natureza é minha mãe ainda...
É minha mãe... Ah, se eu à face linda
Não sei sorrir; se estou desesperado;

Se nada há que me aqueça esta frieza;
Se estou cheio de fel e de tristeza...
É de crer que só eu seja o culpado!


antero de quental
sonetos






07 junho 2019

sophia de mello breyner andresen / aqui



Aqui, deposta enfim a minha imagem,
Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem,
No interior das coisas canto nua.

Aqui livre sou eu – eco da lua
E dos jardins, os gestos recebidos
E o tumulto dos gestos pressentidos,
Aqui sou e em tudo quanto amei.

Não por aquilo que só atravessei,
Não p´lo meu rumor que só perdi
Não p´los incertos actos que vivi,

Mas por tudo de quanto ressoei
E em cujo amor de amor me eternizei.



sophia de mello breyner andresen
dia do mar
obra poética
assírio & alvim
2015







06 junho 2019

francisco brines / por um incumprimento do presságio



     Não me envies dor. Já, minha vida,
me despedi há tempo do transtorno
que nos infundes cega. Muitos anos
o desejei supondo que ainda vinha.
Continuo a merecê-lo, mas agora
gostaria de desistir de sua vinda.
Despedir-me do mundo, com a ventura
que suspende os olhos do amante
seria graça maior que ter nascido.
Mas débil ante a dor e conhecendo
a matéria desprezível de que és feita,
não pares ante meus anos os teus passos,
não me ofereças aquilo que arrebatam
de tuas mãos os jovens. Dá-lhes,
a eles, com seu sabor, conhecimento;
se são agradecidos, vão amar-te
para sempre. Eu quero que os corpos
deixem seu belo fogo entre meus braços,
em troca de moedas ou palavras.
Mas o que já vivi, fique vivido;
Estou desabitado; não me tentes
Para ser infeliz tão fora de horas.


francisco brines
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé bento
assírio & alvim
2001






05 junho 2019

armando silva carvalho / a cabeça escuta



Que mais pode este dia?
Em cada ligação a morte fala baixo
e arrefece as pernas das telefonias.
Em cada pulsação
escondemos o rosto embriagado
pelo tédio ou pelo terror
de mãos desfeitas.
Por vezes o silêncio ainda nos salva
e com que gratidão
banhamos a pele clara dos sentidos
na luz dos seus relâmpagos
mortais.

Porque a cabeça escuta,
escuta e nunca mais.



armando silva carvalho
sentimento de um ocidental 1981
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007







04 junho 2019

joaquim manuel magalhães / aluviões


31

Findou o poente nas paredes.
Breves e desconhecidos
os pássaros
assomam ao repouso dos telhados.
As últimas enxadas levantam
pela penumbra dos aroeiros
a maresia musgosa dos terrenos.
Nos quelhos com rebanhos
voltam os tractores.
Arvoredo rasteiro, cila marítima,
marcos geodésicos, a despedida,
a devastação.


joaquim manuel magalhães
segredos, sebes, aluviões
editorial presença
1985






03 junho 2019

luís miguel nava / basalto




Agora que se o mar ainda
rebenta é por acção da memória, arrancam-me
basalto ao coração ondas fortíssimas.

Ainda o vejo às vezes por aí, olhamo-nos
então como se à boca
nos viesse o sabor do nosso próprio coração,
mas pouco há a dizer acerca disso.


luís miguel nava
como alguém disse
desenhos de manuel cargaleiro
contexto editora
1982







02 junho 2019

reinaldo ferreira / um sossego mais largo



Um sossego mais largo
Que o esquecimento dos homens
Me seja a morte…
Como um veleiro abandonado
No silêncio do mar;
Como, antes do Tempo,
Como, depois do Tempo,
O não haver ninguém para o contar…

Como não ter existido
Me seja a morte!
Mas não já…



reinaldo ferreira
poemas
vega
1998





01 junho 2019

antonin artaud / entre o corpo e o corpo não há nada



Entre o corpo e o corpo não há nada,
a não ser eu.
Não é um estado,
nem um objecto,
nem um espírito,
nem um facto,
e ainda menos o vazio de um ser,
absolutamente nada de um espírito, nem do espírito,
nem um corpo,
é o eu intransponível.
Mas não um eu,
pois não tenho tal.
Eu não tenho um eu, mas não há senão eu e ninguém,
nenhum encontro possível com o outro,
o que eu sou não tem diferenciação nem oposição possível,
é a intrusão absoluta do meu corpo, por todo o lado.



antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
e outros textos finais (1946-1948)
trad. pedro eiras
flop
2019