21 janeiro 2019

e e cummings / xix poemas




[viii]

algures aonde eu nunca viajei, alegremente além de
qualquer experiência, os teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frouxo há coisas que me prendem,
ou que eu não posso tocar tão próximas que estão

o teu infinito olhar há-de facilmente desprender-me
embora eu me tenha cerrado como dedos,
tu sempre me abres pétala a pétala como abre a Primavera
(tocando hábil, misteriosamente) primeira rosa

mas se teu desejo for encerrar-me, eu e
minha vida fecharemos em beleza, de repente,
como quando o coração desta flor imagina
a neve em tudo cuidadosa descendo;

nada do que existe para ser sentido neste mundo iguala
o poder da tua extrema fragilidade: cuja textura
me submete com a cor dos seus domínios,
representando a morte e para sempre em cada alento

(eu não sei o que é que há em ti que fecha
e abre, apenas alguma coisa em mim entende
a voz dos teus olhos mais profundos que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem tão finas mãos





e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & alvim
1998







20 janeiro 2019

sebastião alba / domingo




É um céu azul
de nenhuma espessura
arqueado sem detalhe
ou outra palavra

Entre as colinas e as praias
nunca miniaturas de palmeiras
mobilaram assim
os olhos das mulheres.



sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981







19 janeiro 2019

josé pascoal / a curva perigosa




Às vezes curvo-me
Como uma árvore ao vento
E falo às minhas próprias raízes,
E então choro e chupo o sangue
E a seiva
Como se estivesse feliz
E a felicidade fosse a doçura
De te sentir presente
Mesmo que à impossível distância
Da tua ausência.



josé pascoal
antídotos
editorial minerva
2018






18 janeiro 2019

carlos poças falcão / de onde é que me fala a minha língua




De onde é que me fala a minha língua
senão do esquecimento e da deriva, a língua astuta
que mais e mais se arma e desentende, predadora
que no seu próprio laço se embaraça e fica presa?
De que falamos todos, e de onde, e até quando,
seguindo e discrepando? – frases, forças, mil ciências
que um tempo acumula, outro dissipa, em guerras duras
somando feios mortos a vitórias imprudentes.

  

carlos poças falcão
sombra silêncio
opera omnia
2018






17 janeiro 2019

daniel francoy / 30




Tornei-me o recatado bluesman:
o homem que ainda busca Ítaca
mas não em águas fecundas para o heroísmo.
O homem que apenas busca Ítaca
na repetição dos gestos
na magreza dos afetos
no lento pisotear com que o tempo
transforma o rosto do meu pai
no rosto de um morto e o meu rosto
no rosto de outro homem.
As tardes – aqui, no México, em vilarejos
onde os corpos terminam
como manchas de bolor em frias paredes –
as tardes são tudo o que um homem
pode ultrapassar.

  

daniel francoy
identidade
editora urutau
2016









16 janeiro 2019

gil t. sousa / água forte, poesia reunida


Para quem estiver interessado em adquirir o meu livro, a melhor maneira de o fazer é através do site da editora Urutau que o distribui para o Brasil e para a Europa. A tiragem não é muito grande e serão postos à venda poucos exemplares em algumas livrarias de Lisboa e Porto. (em Lisboa nas livrarias Snob, Poesia Incompleta e Letra Livre; no Porto na Livraria Poetria).


É muito fácil e muito mais cómodo, basta clicar na imagem.







:





roberto juarroz / batem à porta




Batem à porta.
Mas as batidas soam ao contrário,
como se alguém batesse do lado de dentro.

Acaso serei eu quem bate?
Talvez as batidas de dentro
queiram anular as de fora?
Ou talvez a própria porta
tenha aprendido a batida
para abolir as diferenças?

O que importa é que já não se distingue
entre bater de um lado
e bater do outro.
  


roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018








15 janeiro 2019

ruth fainlight / as portas




Há o trabalho de dar à luz.
Já o conheci – às vezes
lembro até o esforço de nascer.
Para vir está ainda
o trabalho de deixar a vida. Vi como é difícil
para alguns, enquanto outros,
que estavam presentes num momento
a seguir desapareceram. Passei
a porta da carne. Agora, a espera – quanto ainda? –
para aprender a última tarefa
antes de atravessar a porta da terra.



ruth fainlight
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. ana hatherly
assírio & alvim
2001






14 janeiro 2019

marcos canteli / neve, frio




Neve, frio,
humidade no corpo; a cara
escura do monte. Uma imagem
oferecida no fim, que suaviza tudo:
árvores prateadas,
transparentes,
a brilhar na descida.

Não estavas ai
mas tinhas os meus olhos.


marcos canteli
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000







13 janeiro 2019

s. kierkegaard / o sol brilha




O sol brilha, entrando tão bela e vivamente no meu quarto. A janela do lado está aberta; na rua, tudo está quieto. É domingo à tarde. Ouço claramente uma cotovia, lá fora, diante da janela num dos pátios vizinhos, lançando os seus trinados – lá fora, diante da janela onde vive a rapariga bonita. Ao longe, de uma rua distante, ouço um homem a apregoar camarão. O ar está tão quente e, todavia, toda a cidade está como morta. Então, lembro-me da minha juventude e do meu primeiro amor – nesse tempo, eu suspirava por; agora, só suspiro pelo meu primeiro suspiro por. Que é a juventude? Um sonho. Que é o amor? O conteúdo do sonho.



s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011









12 janeiro 2019

tiago fabris rendelli / a morte dos séculos




meu amor, ninguém conhece o seu próprio universo
nem sabe qual ponto de pele
será o epicentro da sucessão de fatos
relativos ao nosso próprio desaparecimento.

meu amor, caminhar sem rumo é em si algum destino
por isso não temas a perdição da noite
ou o vasto silêncio dos lugares abandonados
tudo possui o seu bocado de milagre
e quando cultivamos o tempo
florescemos eternidades.

meu amor, não chores pelas secas
pois a água nunca acaba
ela se renova em chuva
e leva a vida a passear por novos campos.

meu amor, temos 14 bilhões de anos
e duraremos menos de um século
por isso celebres a existência
não te esqueças de que nascemos diariamente
seja ao abrir os olhos pela manhã
seja na descoberta de uma nova estrela
ou no choro do recém-nascido
estamos em todos os instantes.

meu amor, somos o princípio e o fim
aquilo que se renova pelas eras
o que não se destrói
o assassino e a vítima de mãos dadas
o desespero entrelaçado com o riso
a dor do parto e o orgasmo
futuro, passado, presente
somos, meu amor
o que ainda está por vir
os mortos enterrados
as crianças que serão geradas
e o medo que um dia termina.


tiago fabris rendelli
& wladimir vaz
terra seca
editora urutau
2017









11 janeiro 2019

ruy cinatti / enigma




A noite, o vácuo, o nevoeiro
aceso em minhas lucilentas cinzas.
O pássaro veloz que se despenha
nas águas, e um peixe abica
e nele estrebucha, de possesso,
arrebatado ainda e… – ó conquistas!
Maior avanço, ora supões causas
inadmissíveis, conquanto exactíssimas
como o quadrilátero entreaberto
num círculo – acme da vida.
O voo segue e chega-se aos astros.
Ícaro cai, os mares ressuscitam-no.

30/6/77



ruy cinatti
56 poemas
de paisagens
relógio d´agua
1981







10 janeiro 2019

jordi doce / ensaio para uma fuga




Nesta hora duvidosa que desce
entre o azul e a cinza,
com quietação de neblina e ar
encerrado, neste jardim
de inanimadas sombras
onde a humidade sabe a terra
e desenvolvidos cansaços,
deixei os olhos.

Como aquele que em terra de ninguém,
aceita uma trégua fictícia
e procura no cansaço uma certeza,
olhei em penumbra
quanto se abriga ao olhar,
quanto sustém inadvertido
o peso de uns olhos
que duvidam ou interrogam.

Conheço as razões deles: são as minhas.
Como eu, procuram
um espaço para o desejo,
um lugar de fugas e assombros
na terra de ninguém
do ar. Como eu,
chegam ao seu destino
ao demorá-lo.


jordi doce
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000